'Notas sobre a Militarização do Espaço Urbano: elementos para o debate' (Thiago Sardinha)
Outros pontos visíveis da crise do capital são as condições mais degradantes possíveis em que o conjunto da classe trabalhadora se encontra, e a intensificação sistemática da produção de mortes em territórios que não vivem uma guerra declarada, como o caso brasileiro.
Por Thiago Sardinha para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
A partir de discussões mais amplas acerca da segurança pública no Brasil e especificamente em alguns estados, em que o aprofundamento da violência policial e dos conflitos entre grupos armados nacionalizados resultam na era das mega chacinas focalizadas periferias da cidade onde concentra a maioria da população pobre e negra, queria contribuir com algumas reflexões sobre esta triste realidade.
1) Utilizo militarização do espaço urbano como forma de demarcar as diferenças com outras análises que destacam o processo de militarização, como por exemplo, restringindo apenas ao caráter institucional do processo. Neste sentindo, minha análise extrapola estas concepções ao usar a categoria miltoniana de espaço (social). E por que utilizar militarização do espaço? Note que a militarização contemporânea significa uma série de expressões que perfazem um fenômeno social afetando a vida social de forma generalizada. Até aqui, só se falava em militarização associada às Operações Policiais e das forças de segurança como um todo. Porém, o que venho destacando através de breves reflexões é que, militarização vai além das políticas públicas, tornando-se um ente cotidiano, ou seja, a militarização do espaço urbano é um processo que expressa em diferentes camaradas da vida social, por exemplo, a separação das esferas civil e militares estatal. Sendo assim, defino a militarização do espaço urbano como 1) um processo social caracterizado pela ampliação do controle social com uso da violência direta recorrendo às práticas militares. 2) a militarização do espaço urbano significa o controle armado, rigoroso e ostensivo da sociabilidade urbana, formando territórios hostis recorrendo à violência, ao desaparecimento forçado, usando-se de práticas militares; 3) a militarização virou um modelo para a sociedade de maneira geral como forma imediata no tratamento de questões sociais. Escolas, Igrejas, organização familiar, grupos sociais de cultura etc. vem adotando uma espécie de lógica militar como única maneira de socialização.
2) A militarização constitui como parte de um processo modernizador que serviu para expansão da sociedade moderna e também na formação dos Estados nacionais. No entanto, o que venho chamando a atenção é que a militarização e sua intensificação contemporânea tem assumido contornos dramáticos por conta da crise do capitalismo que vem se aprofundando desde à década de 1970. Assim, a militarização do espaço urbano forma uma espécie de circuito que atravessa outras formas de sujeição condicionada a um contingente populacional do qual o próprio capitalismo já não consegue integrar, aliás, este contingente que alguns países do centro vêm conhecendo recentemente, ele já é esgarçado como parte da formação social brasileira, é o que o saudoso Clóvis Moura chama de Franja Marginal. A militarização do espaço urbano, em linhas gerais, consiste numa resposta dada pelo capitalismo em crise estrutural e profunda, direcionada para a classe trabalhadora sobrante e excluída do processo produtivo direto. Por conseguinte, junto com a militarização, temos o encarceramento em massa desta mesma população; o controle rigoroso com uso de tecnologias de territórios em guerra adaptadas para o espaço urbano; o extermínio brutal e permanente desta classe trabalhadora, sendo ainda pior para a população negra da cidade; e a militarização do espaço através do uso das Forças de Segurança (polícias civil, militar e federal) e Forças Armadas para a realização de policiamento ostensivo. Estas formas de tratamento dadas pelo capitalismo para o conjunto da classe trabalhadora não funcionam de forma isolada ou sucessiva, pelo contrário, funcionam de forma concatenada, formando circuitos de violência levada ao extremo.
A crise estrutural do capitalismo avança de maneira intensa, levando a sociedade a um completo colapso social perceptível em diferentes ordens, como a destruição ambiental e a precarização da vida social do segmento mais pobre, contudo, seu traço marcante é a incapacidade de manter as contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção, isto é, na valorização do valor e, portanto, sua capacidade integradora. Assim, suas esferas orgânicas desmoronam objetivamente, sendo impossível tentar extrair ainda algo novo de uma forma social em ruínas. Outros pontos visíveis da crise do capital são as condições mais degradantes possíveis em que o conjunto da classe trabalhadora se encontra, e a intensificação sistemática da produção de mortes em territórios que não vivem uma guerra declarada, como o caso brasileiro; fatos que motivam alguns pensadores a ainda insistirem em ignorar sua relação com o modo de produção da vida material apenas para entoar panaceias progressistas sustentadas pela ética do trabalho ou medidas compensatórias sem aprofundar no que realmente é central para a superação do problema. Assim, já passou da hora das sucessivas tentativas de tentar administrar a democracia de mercado do tipo humanizado, o que nos interessa é destruir este estado de coisificação. E não são poucos os que ainda acreditam numa retomada de um “novo ciclo de acumulação”, como foram os anos pós Segunda Guerra até a crise de 1970, deixando para trás este sombrio passado recente de sobreacumulação. Portanto, a distribuição da renda no capitalismo dependente contemporâneo é insuficiente como medida de superar problemas concretos, principalmente o de segurança pública; na verdade, esta perspectiva indica um tempo histórico já esgotado.
Essa classe trabalhadora historicamente esgarçada de forma violenta pela acumulação de capital e de caráter estrutural, como indiquei outrora, a meu ver, extrapola a categoria do exército industrial de reserva. Tratando-se de um capitalismo em ruínas, a produção de trabalhadores descartáveis também extrapolou a superpopulação relativa de Marx e se intensificou mundo a fora, com contornos catastróficos para países de capitalismo dependente e periférico. Ou seja, existe hoje uma classe trabalhadora formando um contingente populacional bastante significativo, mas que não serve para os processos produtivos do capital, precisando sobreviver de alguma forma que é sempre de maneira subjugada, precarizada e inepta.
Alberto Guimarães (1982), analisando esse processo no Brasil, vai chamar essa massa de trabalhadores supérfluos de “classes perigosas”. As classes perigosas ou dangerous classes segundo ele representam um conjunto social formado à margem da sociedade civil que surgiu na primeira metade do século XIX, num período em que a superpopulação relativa ou o exército industrial de reserva atingia proporções exponenciais na Inglaterra. As classes perigosas eram formadas por pessoas que tivessem passagem pela prisão ou não, notoriamente pessoas que dependiam da pilhagem, roubos e trapaças, convencidas de que poderiam, para o seu sustento e o de sua família, ganhar mais praticando furtos do que trabalhando.
Em linhas gerais esse são apontamento que merecem maiores investigações aprofundadas, mas que para esta ocasião ajuda na compreensão do momento histórico. É nesse contexto que agora vou adentrar no que considero elementos fundamentais do processo de militarização do espaço urbano.
A) Como característica da militarização do espaço urbano encontra-se a difícil demarcação do que é período de Guerra e o que é período de Paz no capitalismo contemporâneo. Isto é, há muito mais mortos em períodos de paz, por exemplo, no caso da cidade do Rio de Janeiro entre 2009 e 2016, 22 mil pessoas foram mortas em decorrência de operações policiais, não coincidentemente, período em que se aplicou a chamada política de pacificação tendo como maior expressão as Unidades de polícia pacificadora (UPP). O projeto de Paz mais recente é do Governo Cláudio Castro chamado de cidade integrada. Projeto implantado após a ocorrência de uma das maiores chacinas da cidade, na favela do Jacarezinho. Portanto, um projeto de paz militarizado que está diretamente associado ao extermínio sistemático. Além disso, ao que parece, isto faz com que o paradigma da guerra clássica também sofra mudanças em que no lugar de guerras regulares impera as guerra irregulares, sem ideologias, sem regras estabelecidas e sem tempo para acabar.
B) Uma outra característica é a confusão (ou o fim da separação conforme adiantei) em delimitar as fronteiras precisas das esferas civis e militares. Por isso, a definição de grupos armados como expressão dessa forma de militarização é importante, considerando a complexidade do fenômeno. Ademais. temos por exemplo, a CORE (uma espécie de tropa de elite da polícia civil) que é totalmente militarizada do ponto de vista da militarização e compõe os grupos especiais das forças de segurança do Estado que realizam operações em favelas. Foi a CORE que realizou a chamada Operação Vingança provocando a chacina do Jacarezinho. Outro exemplo são as Guardas Municipais que no Brasil todo vem se armando e seguindo uma formação militar rigorosa, além de já possuírem suas tropas de elite no formato do BOPE. Entre 2009 e 2019 houve um aumento de 21,3%, isto é, 1.188 dos 5.570 municípios com Guardas Municipais armadas. Em uma plenária realizada em 2021 o STF garantiu o porte de arma para todas as guardas municipais do Brasil.
C) A também confusa política de segurança interna e externa. Neste caso pode-se citar o fato de as Forças Armadas (FA’s) serem utilizadas inúmeras vezes para realizar policiamento urbano interno, no interior do território do Estado-nação. Neste sentido, técnicas militares exclusivas para um potencial inimigo externo são deslocadas para o próprio território contra um inimigo forjado pela luta de classes, contra as classes perigosas. Em linhas gerais passamos do paradigma de segurança nacional para a segurança urbana. Stehpen Graham chama isto de “guerra securocrática”, ou seja, uma guerra sem data para acabar onde o principal local é o espaço urbano das cidades. Cabe mencionar também, a proliferação de grupos especiais militarizados aos moldes do BOPE, além da polícia militar a polícia civil (CORE) que já mencionei, a Polícia Rodoviária Federal também possui tropas especiais, a NOE (Núcleo de Operações especiais) e o GRR (Grupo de Resposta Rápida), neste sentido, cada vez mais policiais vem se transformando de um policial soldado para um policial guerreiro, pronto para promover mega chacina. É preciso enfatizar, porém, a compreensão cada vez mais naturalizada de que há um envolvimento objetivo numa guerra cria a subjetividade de guerreiro. Há uma mentalidade militarizada de que você não é um policial servindo a uma comunidade, você é um soldado em guerra”
D) O total solapamento da diferença de quem é o inimigo e de quem é aliado. É por isso que, todos são inimigos potenciais embora o peso recaia para as classes perigosas. Trata-se de uma Guerra Civil difusa em que ocorre uma reconfiguração das alianças. Aqui há um debate controverso a respeito do monopólio legítimo da violência, pois a confusão se generaliza quando o Estado não possui mais o monopólio da violência, e portanto, precisa acionar acordos ilícitos de ocasião diante dos conflitos armados no espaço urbano. Embora esta prática seja apenas direcionada aos grupos milicianos, isto ocorre com a grandes facções do varejo, como o PCC e o Comando Vermelho, para ficar nos casos mais comuns.
E) As rupturas do ponto de vista dos processos legais e ilegais. É o caso por exemplo, do Estado de exceção na tentativa de implementar novas leis, mas que as práticas destas leis são possuem um lastro social evidente. Vide por exemplo o caso da GLO, em que nas favelas e periferias as operações de garantia de lei e de ordem nunca foram suspensas.“Numa situação de exceção, o cumprimento de uma lei anda ao lado de
sua própria violação, legalmente amparada: “para aplicar uma norma é necessário, em
última instância, suspender sua aplicação, produzir uma exceção conforme conclui o professor Maurilio Botelho.
F) A ampliação da sociedade do controle com uso de tecnologias aplicas em territórios declaradamente em guerra. Nano robores e microrrobores voadores que identificam o inimigo pelo seu DNA. Ou mesmo o software israelense utilizado pela polícia civil do Rio de Janeiro chamado de Cellebrite. Essas tecnologias são de circulação global operacionalizada pelos complexos industriais militares dos EUA e Israel. Portanto, as mesmas armas e tecnologias aplicadas aos palestinos em Gaza e a população negra e latina nos EUA são usadas nas favelas brasileiras.
Em linhas gerais tentei abordar brevemente elementos que possam servir como início de uma reflexão geral. Espero que estes elementos cumpram este papel. Também estou convencido de que segurança pública, para os comunistas, precisar assumir o expediente mais urgente assim como a questão ambiental e as reformas de ataque à classe trabalhadora nos últimos anos. Ora se essas reformas prejudicam a vida da classe trabalhadora promovendo mais desemprego e precariedade, isto me permite voltar ao início desta reflexão quando a hipótese que lancei indicava um aumento de um contingente de pessoas excluídas e sobrantes por essa forma social capitalista em fim de linha, evidentemente que a população carcerária deve continuar aumentando, as operações policiais produtoras de mega chacinas devem se intensificar; grupos armados vão crescer e se expandirem como já acontecendo; cada vez mais o Estado irá recorrer ao armamento geral para resolver problema sobre a violência. Portanto, esses são os desafios!