Nota política: Por que precisamos de um sindicato?
“A indústria de games está me matando”: a exploração capitalista nos estúdios de desenvolvimento de jogos.

Nota política do PCBR em São Paulo
“A indústria de games está me matando”, denuncia um desenvolvedor em um novo relatório da Game Developers Conference (GDC). E sim, isso é verdade.
No mercado de videogames, a maior parte dos trabalhadores é submetida a jornadas extenuantes, muito além das 44 horas semanais, mesmo que as empresas insistam em negar; e muitas vezes, sequer recebem pagamento adicional pelas horas extras – situação já encontrada por 76% dos desenvolvedores mundo afora, segundo a pesquisa IGDA Developer Satisfaction Survey de 2023. Essa realidade não é um acidente, mas sim o resultado de uma lógica perversa do capitalismo, que explora a paixão dos trabalhadores para maximizar os lucros das grandes corporações. Como bem afirmou Lênin em “O Estado e a Revolução”: “O capitalismo transforma tudo em mercadoria, até mesmo o tempo e a alma dos trabalhadores.”
Essa é uma situação predominante em âmbito internacional. Nacionalmente, a situação se agrava com a falta de regularização da profissão (que será sanada com o Marco Legal dos Games), a consequente inexistência de sindicatos e a posição do Brasil nas cadeias de valores globais, que nos coloca como mão de obra barata para extração de mais-valor para os países centrais do capitalismo. Na indústria de games esse fenômeno é chamado de outsourcing, isso é, a terceirização do trabalho dos estúdios que, por tamanha demanda de produtividade e achatamento dos salários, contrata empresas especializadas nesse serviço em mercados onde a mão de obra é mais barata, sendo o Brasil um dos maiores mercados de outsourcing no mundo. Segundo a Pesquisa da Indústria Brasileira de Games de 2023, cerca de 58,8% das empresas prestam serviços para terceiros, sendo as principais atividades nesse setor os serviços de arte (28%), gamificação (24%), animação (24%) e desenvolvimento de softwares e serviços de TI (23%).
A estratégia das empresas: Exploração disfarçada de “sonho”
A estratégia das empresas é sempre a mesma: recrutar gente nova, apaixonada por games, que aceita trabalhar por um salário abaixo da média e que coloca muito de si no trabalho e no produto. Apropriam a falsa ideia do “trabalho dos sonhos” para romantizar longas jornadas, baixos salários e assédio, além de criar um clima de “família” onde críticas são suprimidas. Assim, se estabelece uma forma de pressão entre pares, onde os próprios colegas reforçam a ideia de que reivindicar condições dignas é trair o coletivo. Isto ajuda a engendrar a escala 6x1 (e piores!) na cultura da indústria.
Esse cenário de exploração e dominação ideológica é bem descrito no artigo Quem não sonhou em ser um jogador de videogame?, que trata principalmente do cenário de competição profissional, os eSports, mas pode ser aplicado ao cenário geral da indústria de games que sofre dos mesmos problemas:
“O trabalho de esperança presumivelmente é ainda mais nocivo e eficaz em contextos de precariedade, onde jogadores não estão equipados com as estruturas de bem-estar familiarizadas no Norte. Isso favorece uma maior longevidade do trabalho baseado em esperança em processos de exploração de mão de obra digital, porque é perseguido como uma chance de ser alçado para fora do devir precário, como meio e trilha de superá-lo.”
Como escreveu Marx em “O Capital”: “O capitalismo não apenas explora o trabalho, mas também corrompe as relações humanas, transformando colegas em cúmplices involuntários da própria exploração.” Com isso, as empresas pagam menos, extraem o máximo de trabalho e ainda fazem as pessoas se sentirem culpadas por não darem o suficiente. O resultado é que estas permanecem nesse ambiente até os 30/35 anos e, depois, ou se tornam gerentes ou migram para outra área. Se viram gerentes, acabam se tornando aquilo que odiavam: opressores. É o capitalismo forçando o antigo sonhador a se enquadrar em um sistema opressivo para sobreviver.
O crunch: A materialização da exploração capitalista na indústria de jogos
Isso tudo sem contar o crunch, uma prática abusiva onde trabalhadores são forçados a fazer horas extras extenuantes, muitas vezes sem remuneração adicional, para cumprir prazos irreais. Essa prática acontecia nas últimas fases de desenvolvimento, mas atualmente, com os jogos levando cada vez mais tempo para serem feitos, o crunch se tornou uma constante no dia-a-dia do trabalhador. A jornada de trabalho semanal durante esse período pode passar de 80 horas.
“Trabalhar até tarde, ir pra casa, dormir preocupado com os bugs, sonhar com o código do jogo, voltar pro trabalho e repetir o processo”, relato de um programador anônimo, vítima do crunch, numa matéria do The Guardian sobre o assunto em 2015.
O crunch é a materialização da exploração capitalista, onde o tempo e a saúde dos trabalhadores são sacrificados em nome do lucro. Como disse Engels em “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”: “A ganância do capital não conhece limites, e o trabalhador é reduzido a uma mera engrenagem na máquina de produção.” Segundo a IGDA Developer Satisfaction Survey de 2019, 40% dos desenvolvedores relataram ter passado por crunches. Desse número apenas 8% receberam pagamento extra por essas horas trabalhadas a mais.
Escalas desumanas: 6x1 e 7x0
A maior parte dos trabalhadores de games, no fundo, trabalha em regimes como 6x1 (seis dias de trabalho por um de descanso) ou até 7x0 (sete dias de trabalho sem folga). Essas escalas desumanas são justificadas pela ideia de que é necessário “fazer sacrifícios” para produzir jogos que realmente valham a pena. No caso de estúdios “AAA”, por exemplo – os de maior orçamento – é comum ver jogos que priorizam fidelidade gráfica acima de tudo, movidos não pelo design ou por um projeto artístico, mas por planos definidos em uma reunião de investidores. Isso “força” os trabalhadores a passar meses e mais meses em escalas desumanas, a fim de criar produtos cujo “diferencial” é justamente o esforço despendido neles.
Assim, fica claro que as escalas 6x1 e 7x0 poderiam ser extintas sem prejudicar a produção de jogos. Além de realinhar projetos para de fato atender a demandas artísticas e do grande público, ao invés de fabricar uma corrida por números cada vez maiores, também é possível que as empresas contratem mais funcionários, distribuam melhor as tarefas e respeitem os limites humanos; mas isso não acontece porque o objetivo não é produzir bons jogos, mas sim maximizar os lucros às custas da exploração dos trabalhadores. Como argumentou Lenin em “O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”: “A acumulação de capital não busca o bem-estar social, mas a perpetuação do poder e do controle sobre a força de trabalho.” Por isso, lutar contra a escala 6x1 é mostrar que a produtividade não precisa ser oposta a boas condições de trabalho, que a cultura do crunch não deverá ter lugar no Brasil neste momento de crescimento da indústria no país e que outras pautas importantes para a categoria não serão esquecidas pela classe trabalhadora.
Assim como em qualquer outro mercado, a indústria de games também passou por uma grande concentração e caminha para monopólios cada vez maiores. Nos últimos anos ficaram famosas as dezenas de aquisições da Microsoft, principalmente da ZeniMax Media (dona da Bethesda, id Software e Arkane) por $8,1 bilhões e da Actvision/Blizzard por $68,7 bilhões, controlando atualmente mais de 30 estúdios de grande orçamento. Além dessa rápida concentração que se alinha com as tendências gerais do capitalismo, a pandemia de Covid-19 exerceu um efeito reverso na indústria de games comparada ao resto dos mercados que afundavam. Vendo um crescimento de demanda acentuado durante os dias de quarentena, a indústria se expandiu, permitiu trabalho remoto e flexibilizou a jornada de trabalho. Com o fim da pandemia, milhares de empresas começaram a obrigar que seus funcionários retornassem aos estúdios e em seguida vimos a maior leva de demissões da história da indústria.
Demissões em massa: O capitalismo em crise
Demissões massivas não acontecem apenas na indústria de videogames, e você pode ler mais sobre isso nesta nota sobre os trabalhadores de TI. Elas são uma prática comum ao neoliberalismo. Vale notar, contudo, o caráter específico que está associado a trabalhadores de games.
A partir de 2023 e continuando até 2024, a indústria de videogames viveu uma onda de demissões em massa. Mais de 10.500 empregos foram perdidos em 2023, outros 14.600 em 2024 e mais de 4.400 em 2025, segundo o site Game Industry Layoffs, que monitora o setor. Essas demissões atingiram tanto estúdios grandes quanto empresas emergentes, resultando no cancelamento de projetos, fechamento de estúdios e no desemprego de milhares de trabalhadores. Grandes empresas como Embracer Group, Unity Technologies, Microsoft Gaming, Electronic Arts, Sony Interactive Entertainment, Epic Games, Take-Two Interactive, Ubisoft, Sega e Riot Games foram responsáveis por esses cortes.
Segundo a GDC, mais de um em cada dez (11%) criadores de jogos foi demitido em 2024, e 29% tiveram colegas desligados. Além disso, 4% dos entrevistados trabalhavam em estúdios que foram fechados. Profissionais de narrativa (19%), produção e gestão de times (16%) e artes visuais (16%), foram os mais afetados. Programadores (12%), game designers (9%) e profissionais de negócios e finanças (6%) foram outras áreas afetadas. Cerca de 16% dos demitidos decidiram trabalhar por conta própria após as demissões em massa.
As justificativas para as demissões variam: reestruturações (22%), queda de receita (18%) e mudanças no mercado global de games (15%) foram as principais razões apontadas. No entanto, 19% dos trabalhadores não receberam nenhuma explicação após serem demitidos. Enquanto isso, as empresas voltaram a lucrar em 2023. O mercado global de games gerou $188 bilhões em 2023, um aumento de 2,1% em relação ao ano anterior, superando as indústrias de cinema e música combinadas. Mesmo assim, esse crescimento, segundo os investidores do grande capital, foi menor do que o esperado, vide as demissões em massa.
Quem está contratado? Desigualdades estruturais
O estudo da GDC citado anteriormente revela que a maioria dos desenvolvedores são homens (66%), com idades entre 25 e 44 anos (69%). Mulheres representam apenas 25%, e pessoas não-binárias, 6%. Em termos raciais, 59% são brancos, 16% asiáticos, 10% latinos e apenas 3% negros. A maioria trabalha como desenvolvedor independente (32%), sozinho (21%) ou em estúdios pequenos com 2 a 5 pessoas (14%). Outros atuam em estúdios AAA (15%) ou AA (10%).
No Brasil, segundo o mesmo relatório da ABRAGAMES citado anteriormente, o número de homens desenvolvedores é ainda maior (70,3%), sendo mulheres (28,1%) e pessoas não-binárias (1,6%). Essa desigualdade reflete a estrutura opressiva do capitalismo, que marginaliza mulheres, negros e outras frações minorizadas da classe trabalhadora.
Financiamento dos jogos: Autofinanciamento e a falácia do “sucesso individual”
O financiamento dos jogos também reflete as desigualdades do sistema. Mais da metade (56%) dos desenvolvedores relataram usar o autofinanciamento para criar seus jogos (ou seja, o dinheiro vem de seu emprego regular e, logo, fazem jornada dupla), quase o dobro da próxima opção, que são acordos de publicação (28%). Enquanto 89% consideram o autofinanciamento “bem-sucedido”, métodos como crowdfunding e capital de risco foram vistos como menos viáveis, com 31% e 32% dos entrevistados, respectivamente, considerando-os “nada bem-sucedidos”.
Vale notar que, mesmo em iniciativas públicas, como os editais da Secretaria de Cultura de São Paulo, os recursos são insuficientes. Apenas 0,39% do orçamento é destinado a projetos culturais, quando o previsto seria 3%, sendo que metade disso deveria ir para projetos criados nas periferias. Essa falta de investimento reforça as desigualdades e marginaliza ainda mais os criadores independentes.
Como resolver? A resposta é a organização coletiva: A força do sindicato
A resposta é clara e urgente: nos unir, nos organizar e construir um sindicato forte e destemido. A exploração na indústria de games não é um problema individual ou um "mal necessário", mas sim o resultado de um desequilíbrio de forças. Enquanto estivermos isolados, seremos apenas indivíduos negociando contra corporações multimilionárias. Juntos, seremos uma classe organizada, capaz de impor respeito e garantir direitos.
A inexistência de um sindicato próprio e específico para a categoria de games no Brasil nos deixa completamente vulneráveis. Estamos expostos aos abusos de donos de negócio e investidores que, preocupados apenas com os lucros, importam e reproduzem as piores condições de trabalho vistas internacionalmente, sem qualquer freio ou contrapeso. A mera existência de um sindicato já é um primeiro passo fundamental, um dique de contenção contra a exploração desenfreada.
No entanto, sabemos que a simples criação de um sindicato não é uma varinha mágica. É comum encontrar exemplos no exterior, como alguns ramos do Game Workers Unite nos EUA ou acordos questionáveis de outros sindicatos europeus, que por vezes fecham acordos que não punem estúdios pela prática de crunch ou aceitam níveis altíssimos de terceirização. Esses exemplos não são um argumento contra os sindicatos, mas sim um alerta sobre que tipo de sindicato precisamos construir: um que seja autêntico, controlado pela sua base e sem medo de lutar.
O surgimento recente de sindicatos de games no mundo todo é a prova definitiva de que os trabalhadores desta indústria não encontram amparo completo em organizações de categorias adjacentes, como TI ou artistas. Embora compartilhemos lutas em comum, nossas demandas específicas - como o combate ao crunch culturalmente enraizado, a regulamentação de direitos para game designers e artistas de VFX, ou a luta contra a escala 6x1 em estúdios - ficam diluídas e sem a força necessária dentro de sindicatos maiores, cujo foco central naturalmente não é a nossa realidade única.
Portanto, a solução está em nossas mãos. O crunch, as jornadas 6x1 e 7x0, as demissões em massa e a precarização do trabalho só se tornarão cada vez mais comuns se continuarmos atomizados. A nossa força virá da nossa união. Um sindicato nosso, feito por nós e para nós, é a ferramenta que dará o peso e a voz necessários para transformar nossas demandas em conquistas reais. Ele será o espaço para nos apoiarmos juridicamente, para negociarmos coletivamente com poder de fogo igualitário e para construirmos uma comunidade de trabalhadores que se protege mutuamente.
Convidamos todos os trabalhadores e trabalhadoras, me e mei da indústria de games - programadores, artistas, designers, QA, produtores, writers, sound designers, estagiários e freelancers - a participarem ativamente desta construção. Junte-se à discussão, participe das assembleias, contribua com suas ideias e sua força. Vamos, juntos, fundar o instrumento de luta que vai mudar os rumos da nossa categoria e garantir que a paixão por games não seja explorada, mas sim valorizada com dignidade, respeito e direitos.
A hora de se organizar é agora! Entre no nosso servidor de Discord!