Nota política - O parasitismo privatista avança sobre os transportes: por um serviço estatal, com passe livre universal!
Defendemos a gratuidade universal em toda rede de transporte coletivo, sob a bandeira do Passe Livre, compreendendo que essa medida promove impactos positivos imediatos na vida cotidiana e nas condições de organização da classe trabalhadora.

Nota política da Comissão Política Nacional do Comitê Central do PCBR
Estamos diante da crise do sistema de financiamento do transporte coletivo urbano no Brasil. Em uma crise, uma contradição ou um conjunto de contradições se acirra a tal ponto que uma solução precisa ser encontrada. Independente do grau de preparação ou da disposição dos atores envolvidos para buscar e dar cabo a um caminho de saída, os efeitos concretos das contradições os empurra a agir. A solução, no entanto, nunca é única e o acirramento da luta que decidirá o caminho de saída da crise será maior na medida em que a classe trabalhadora seja capaz de apresentar a solução de seu interesse, já que a burguesia invariavelmente apresentará a sua.
A crise decorre do chamado “ciclo vicioso da tarifa”: a principal receita das empresas é a passagem paga pelos usuários, contrariando o que se convencionou chamar de transporte “público”, o que as leva a pressionar constantemente por aumentos, sem contrapartida em qualidade. Cada aumento expulsa passageiros, reduzindo a receita e forçando novos reajustes. Esse modelo empurra milhões de trabalhadores para o transporte individual, enquanto os ônibus se tornam cada vez mais superlotados e caros. Enquanto o lucro cresce se aumenta o número de passageiros pagantes, o custo da operação do serviço pouco se altera pelo nível de lotação (sobretudo, o custo da força de trabalho permanece o mesmo), o que explica que os usuários sejam levados a se espremer nos ônibus como se fossem latas de sardinha. A cada aumento de passagem, que agrava as já terríveis condições de mobilidade nas cidades, mais e mais pessoas são levadas a abandonar o transporte coletivo e adotar o transporte individual. Com a redução da receita tarifária, as empresas voltam a pressionar por novos aumentos, reproduzindo o ciclo.
Essa dinâmica não é recente. Desde os anos 1990, a demanda vem caindo de forma constante, processo agravado pela pandemia de Covid-19 em 2020. Entre 2018 e 2023, o número de passageiros caiu 29% em todo o país, chegando a 55% em Recife e quase 50% em cidades como Fortaleza, Manaus e Curitiba. Mesmo com o fim do isolamento sanitário, o índice de usuários não se recuperou e o sistema de financiamento entrou em um quadro de esgotamento irreversível.
Sob risco emergente, os empresários do transporte coletivo têm empreendido esforços de toda sorte para acabar com a insegurança relativa à demanda e reduzir o atrito político que se instaura quando há aumento da tarifa. Para combater a crise, esse setor da burguesia tem como principal pauta a alteração da forma de remuneração do serviço por meio de fontes extra-tarifárias, abrindo o caminho inclusive para políticas de tarifa zero.
Pouco mais de uma década depois das jornadas de junho, que tiveram os aumentos de passagem dos ônibus como estopim, observamos um crescente número de municípios adotarem políticas de tarifa zero no Brasil, que hoje se destaca como o país com mais iniciativas desse tipo em todo o mundo. Ao longo de 28 anos, entre 1992 — quando se implementou a gratuidade na rede de ônibus em Conchas (SP), a primeira experiência que se tem mapeada no país — e 2020, 38 municípios adotaram a medida. Em setembro de 2025, totalizam-se 136 municípios que se desfizeram da tarifa (universal ou parcialmente), o que corresponde a um aumento de 260% em apenas 5 anos.
Para efetivar a gratuidade, os municípios recorreram a uma variedade de alternativas extra-tarifárias, como subsídios públicos municipais; redirecionamento de recursos obtidos com multas e estacionamentos em vias públicas; venda de créditos de carbono; aplicação do IPTU progressivo para esse fim; e, até mesmo, utilização de emendas parlamentares em casos específicos. Dentre elas, destacamos a taxação direta de médias e grandes empresas, em substituição ao Vale-Transporte, como tem se articulado nas primeiras capitais que debatem a tarifa zero na rede de ônibus, como Belo Horizonte e Fortaleza.
No quadro de gestões municipais que adotaram a medida no último período, lideram o PSD, PSDB e PP, enquanto as mobilizações populares pelo transporte se arrefeceram. A análise econômica permite compreender como o passe livre, bandeira que marcou as manifestações de 2013, hoje enfrenta muito menos resistência, inclusive no campo da direita, já que se trata de uma resposta direta aos interesses empresariais do setor, diante da crise que enfrenta. Isso não significa alimentar a ilusão de que a burguesia teria se convencido sobre os benefícios da gratuidade do transporte público para a classe trabalhadora, que nos grandes centros urbanos chega a gastar mais em passagens do que em alimentação, sem contar as horas de deslocamento que se somam às já extensas jornadas de trabalho.
Os benefícios da tarifa zero já podem ser verificados nos municípios que adotaram a política: para além de ampliar o acesso à cidade, cultura e lazer, a gratuidade do transporte tende a fortalecer e dinamizar as economias locais, reduzir o uso de automóveis individuais e, consequentemente, a emissão de gases poluentes, o trânsito e os acidentes, desafogando também os sistemas de saúde. Nessas cidades, na contramão da tendência geral da queda da demanda, verifica-se um aumento significativo no uso da rede de transporte coletivo — aqui, reside o principal interesse dos empresários.
Nos últimos meses, inclusive se apoiando na onda de experiências municipais de tarifa zero, a proposta de gratuidade do transporte tem aparecido como uma das possíveis bandeiras eleitorais de Lula para 2026. Em agosto deste ano, o presidente solicitou ao Ministro Fernando Haddad estudos técnicos sobre alternativas extra-tarifárias de financiamento para o transporte coletivo a nível federal, dois anos após o PT incorporar a tarifa zero em seu programa partidário. No final deste mês, o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) apresentou à Câmara Federal o Projeto de Lei 4.327 de tarifa zero nacional. Em setembro, o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), atual presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Tarifa Zero articulada em 2023 por Washington Quaquá (PT-RJ), reuniu-se com a equipe econômica do governo federal para debater a pauta. Nesse encontro, a proposta de gratuidade universal já demonstrou alguns recuos, como por exemplo a possibilidade de restrição aos finais de semana. Neste ponto, é incontornável a denúncia de que Tatto, na ocasião em que tentou justificar o seu voto favorável à PEC da Blindagem, já demonstrou a sua disposição em utilizar a tarifa zero como moeda de troca na mesa da conciliação, ao lado de pautas como o fim da escala 6x1 e a taxação dos super-ricos.
A tendência é a cooptação da pauta com objetivos puramente eleitorais: a proposta tende à ampla adesão popular e é, ao mesmo tempo, um aceno aos empresários do transporte, que recentemente embarcaram numa verdadeira corrida atrás de recursos públicos como forma de assegurar as suas taxas de lucro, diante da crise do sistema. É curioso observar como, por exemplo, no último ano o prefeito de Salvador mudou de posição sobre a tarifa zero: no período das eleições municipais de 2024, Bruno Reis (União Brasil) descartava essa possibilidade, até que mais recentemente passou a considerar a sua viabilidade, desde que a implementação se dê a partir de subsídios federais. O rápido crescimento do número de cidades que adotaram o passe livre, correspondente ao aumento de subsídios públicos para financiamento das empresas de ônibus, não é qualquer raio em céu azul: o levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) encontrou, em maio de 2025, 395 cidades com subsídios para as empresas de ônibus, sendo que 127 dessas implementaram a gratuidade. Antes da pandemia, o número de cidades com subsídio era 161, sendo 40 com tarifa zero.
Enquanto isso, na Câmara de Deputados, está em trâmite o Projeto de Lei do Marco Legal do Transporte Público Coletivo que prevê a “responsabilidade compartilhada entre os entes federados para a efetividade do serviço” e a “distinção entre custo de remuneração pela prestação do serviço e a tarifa cobrada pelo uso do serviço”. Em outros termos, a burguesia do transporte deixaria de depender da tarifa enquanto principal fonte de financiamento e passaria a ter garantido como alternativa os fundos públicos federais, desonerando também os cofres municipais, que em muitos casos já têm assumido uma parcela dos custos através de crescentes subsídios. O texto do PL 3.278/2021 foi aprovado no Senado em dezembro de 2024 e conta com o apoio da NTU, da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e do Conselho das Cidades, órgão do Ministério das Cidades.
Desde 2023, também tramita a Proposta de Emenda Constitucional do Sistema Único de Mobilidade (SUM), “aos moldes do SUS”, apresentada por Luísa Erundina (PSOL-SP) com co-autoria de outros 170 deputados do Avante, Cidadania, MDB, Patriota, PCdoB, PDT, PL, Podemos, PP, PSB, PSD, PSDB, PSOL, PT, PV, REDE, Republicanos, Solidariedade e União. A PEC 23/2025, impulsionada pelo Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) por meio da Coalizão Mobilidade Triplo Zero, tem como diretrizes principais a articulação metropolitana e intermunicipal das redes, com integração entre as esferas municipal, estadual e federal para a subsidiação do transporte, inclusive com a proposta de criação de um tributo para custear a tarifa do transporte urbano.
O avanço das diversas formas de subsídio tornam cada vez mais flagrante a contradição entre o caráter privado das empresas de transporte e o financiamento público do serviço. Nesse modelo, parcelas crescentes dos subsídios se tornam lucro no bolso dos empresários, que além disso não investem na melhoria dos serviços, já que o investimento na renovação das frotas e na infraestrutura das cidades também provém do poder público. Mantida a privatização, mesmo a ideia de que se está criando um “SUS da mobilidade” não passa de uma enganação: a analogia deve ser feita com a criação do PROUNI e do FIES, que formou poderosos monopólios privados na educação a partir do parasitismo do fundo público, criando um setor da burguesia que apoiou o golpe de 2016 e todas as contrarreformas da última década. A estatização dos transportes não só criaria as condições para o aprimoramento do sistema, como enfraqueceria um setor da burguesia comprometido com o programa reacionário desta classe. Sob qualquer perspectiva, com exceção do ponto de vista dos empresários, é preciso estatizar o transporte coletivo para acabar com a transferência do fundo público para a burguesia deste setor.
Ao invés disso, o Governo Lula, em aliança com os governos estaduais de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, atua para fortalecer esse mesmo parasitismo do fundo público através da privatização dos metrôs. O caso de Belo Horizonte é emblemático e antecipou o modus operandi que está sendo reproduzido com a Trensurb em Porto Alegre e a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) em Recife, à revelia das promessas de campanha do atual governo. Desde a privatização da Metrô BH, com a chancela de Alckmin ainda durante o governo de transição no final de 2022, mais de mil trabalhadores foram demitidos, a passagem aumentou em 41,45% e o número de passageiros reduziu em cerca de 63%, de 230 mil para 85 mil usuários por dia. Para completar o ciclo privatista, em agosto o governo federal anunciou R$ 1 bilhão em subsídios para a ampliação de linhas do Metrô BH, a serviço dos lucros privados.
Defendemos a gratuidade universal em toda rede de transporte coletivo, sob a bandeira do Passe Livre, compreendendo que essa medida promove impactos positivos imediatos na vida cotidiana e nas condições de organização da classe trabalhadora, para quem sempre a política de mobilidade urbana foi restrita aos deslocamentos entre casa e trabalho.
No entanto, pautar a tarifa zero sem denunciar que a tendência atual é o aprofundamento do modelo neoliberal é um erro. Diante do avanço das privatizações no setor, e também do exemplo de luta dos metroviários de Recife e Porto Alegre, utilizaremos desse momento para agitar em alto e bom som que nenhum vagão de metrô e nenhum ônibus deve estar em mãos privadas! É preciso falar a verdade, sem subterfúgios e sem tentar conciliar interesses antagônicos. A conjuntura que permite a tarifa zero no país apresenta a possibilidade de conquistas imediatas para a classe trabalhadora e pode significar ainda mais, com o enfraquecimento da ideologia privatista e o fortalecimento da categoria dos trabalhadores de transportes, estratégico para a organização da classe, desde que a disputa seja feita sabendo apontar quais interesses estão em jogo.