Nota Política: A situação na Venezuela e seus desdobramentos internacionais

Se ambas alternativas em jogo apontam para uma tendência de fechamento do regime burguês, urge mais do que nunca a independência política do proletariado.

Nota Política: A situação na Venezuela e seus desdobramentos internacionais

Nota política do PCBR

Há mais de duas décadas a Venezuela é palco da assim chamada Revolução Bolivariana. Tal fenômeno político, iniciado ainda no final dos anos 90 do século passado, e que sofreu seu primeiro teste de fogo com o golpe frustrado de 2002, representou um relevante processo de reformas políticas e econômicas que tiveram um significativo impacto nas condições de vida de grandes parcelas do proletariado e do povo pobre venezuelano.

Através de um processo de nacionalização de suas imensas riquezas petrolíferas e aproveitando-se de uma favorável janela histórica de alta dos preços do petróleo, a Venezuela de Hugo Chávez conseguiu, através do controle estatal da produção e da exportação de sua principal riqueza natural, financiar seu projeto político e garantir um significativo respaldo social, tendo êxito em isolar politicamente os setores mais reacionários da burguesia venezuelana. É importante destacar que, diferente das demais experiências do mal chamado “progressismo” na América Latina, a ampla mobilização das massas proletárias e populares na defesa do projeto político em questão foi uma constante ao longo de todo o processo bolivariano capitaneado por Chávez, sendo essa agitação e organização um fator chave para deslocar a correlação de forças interna e para gerar coesão na defesa contra qualquer ameaça externa.

Os países latino-americanos e caribenhos ocupam um papel subordinado e dependente dentro da divisão internacional do trabalho no modo de produção capitalista. Isso é verificável na permanência de uma estrutura produtiva preponderantemente primário-exportadora, na dependência quanto às tecnologias e inovações técnicas produzidas nos centros imperialistas do sistema, na constante transferência de valor, no domínio dos monopólios estrangeiros e em um padrão de acumulação assentado na superexploração da força de trabalho.

A única exceção neste quadro geral é Cuba, que, a despeito das limitações impostas por sua condição geográfica e territorial e principalmente pelo bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos, é o único país do continente que direciona sua dinâmica produtiva para as necessidades da maioria trabalhadora do povo. Tal constatação é explicável pelo fato de que o desenvolvimento de sua economia é dirigido pelo proletariado cubano em defesa de seus interesses: o socialismo.

Já o processo bolivariano, a despeito de seus avanços sociais e de uma importante contestação da política externa do imperialismo, jamais rompeu com o modo de produção capitalista. É preciso reiterar contra a demagogia de direita e de esquerda, como tantas vezes fez o Partido Comunista da Venezuela: não existe socialismo na Venezuela. Os interesses políticos e econômicos que dirigem o país são, em essência, burgueses, sendo o próprio Estado venezuelano um Estado burguês. Este é um elemento fundamental que deve amparar qualquer compreensão que se pretenda marxista. 

Ao longo de seu processo histórico de desenvolvimento, sem caminhar para a expropriação dos grandes meios de produção e para a reorganização socialista da sociedade, a experiência bolivariana foi incapaz de superar sua dependência em relação à renda petroleira e sempre buscou uma relação “pacífica” com a burguesia comercial e bancária, com setores da burguesia agrária e das classes dominantes de outros países, como as boas relações mantidas pela Federação das Indústrias de São Paulo com o governo venezuelano até 2016.

Nos deparamos com um fenômeno característico ao longo da história geral da América Latina: um projeto político reformista que, sem romper o quadro do modo de produção capitalista, consegue mobilizar por meio de concessões e reivindicações imediatas amplos setores do proletariado e de demais classes trabalhadoras, como o campesinato e a pequena-burguesia, dialogando diretamente com as principais mazelas que sofrem cotidianamente. A agitação nacionalista e os atributos pessoais de uma liderança forte unificam e concatenam o amálgama de interesses díspares no interior do povo pobre, modificando o equilíbrio relativo da correlação de forças entre as classes sociais em desfavor de algumas camadas da burguesia monopolista, mas sem nunca confrontar seriamente sua existência e seu predomínio social.

Tal projeto busca modificar a posição que o país ocupa dentro da divisão internacional do trabalho sem romper com o modo de produção capitalista, oferecendo por meio disso um alívio relativo às condições de vida e trabalho das massas. Mas a esse período de melhorias sobrevém um inevitável estágio de exaustão do ciclo econômico, dada as limitações impostas pelo desenvolvimento capitalista característico na América Latina.

Sendo incapaz de compreender, por sua própria natureza de classe, que tais limitações só serão superadas com a superação do modo de produção capitalista, não resta a tal projeto outra alternativa que não adotar uma postura burocrática frente ao movimento espontâneo das massas, buscando assegurar o controle político sobre as massas por meio de medidas anti-proletárias e anti-comunistas – uma vez que esse projeto político não deseja, efetivamente, radicalizar o processo à esquerda em direção a uma ruptura com o poder burguês.

Diferente de qualquer outra experiência latino-americana em que as forças armadas desempenharam um papel reacionário, na Venezuela a experiência bolivariana conseguiu, de forma inédita, realizar uma profunda reforma ideológica em suas forças armadas, de tal sorte a convertê-las em um bastião de sustentação do projeto político bolivariano. Tal elemento deve ser objeto de uma análise crítica e marxista de qualquer força que se proponha revolucionária, dado o papel histórico que as forças armadas desempenham em nossa região.

Outro aspecto a ser destacado são as experiências pontuais de autogestão de fábricas e cooperativas que vicejavam durante os primeiros anos da experiência bolivariana, e a forma como as mesmas foram sucumbindo ao longo do aprofundamento das contradições do desenvolvimento capitalista do país. Compreender as potencialidades que as mesmas carregavam, num eventual papel de ampliação e diversificação das forças produtivas e de fortalecimento do proletariado na correlação de forças internas do país, nos parece ser um importante objeto de estudo crítico. A escolha de não priorizar tais potencialidades por parte do processo bolivariano aponta para o seu caráter de classe e suas limitações, que só poderiam ser superadas com a hegemonia do proletariado, e não a hegemonia da pequena burguesia ascendente expressa atualmente no PSUV e em seu governo.

Próximo de sua morte, Hugo Chávez chegou a falar sobre os limites do processo bolivariano e defender o aprofundamento das transformações a partir do fortalecimento das comunas populares. Tal avanço nunca aconteceu.

Desde o primeiro governo Chávez, iniciado em 1999, a Venezuela viu sua economia triplicar de tamanho. De 2000 até 2008, a taxa de crescimento médio anual do PIB foi 4,2% (com crescimento de 10% entre 2004-2008). A Organização da ONU para agricultura e alimentação (FAO) apontava a Venezuela como o país com maior segurança alimentar da América do Sul até 2014. No mesmo período, a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) apontava a Venezuela como o país que mais reduzia as desigualdades sociais na América Latina. Ampliou-se como nunca o acesso à serviços públicos de saúde, educação, cultura, assistência social etc. Mas as sanções dos Estados Unidos e a queda do preço do petróleo colocaram o processo bolivariano em cheque.

A classe trabalhadora da Venezuela tem diante de si, portanto, uma difícil tarefa histórica: resistir à ofensiva do imperialismo e das alas fascistas hegemônica na oposição venezuelana e, ao mesmo tempo, não se acorrentar aos limites do Governo Maduro, criando as condições para e emergência de uma alternativa política proletária independente. O Partido Comunista da Venezuela (PCV), organização irmã em solo venezuelano, buscou construir tal alternativa, em primeiro lugar, lutando contra o liquidacionismo daqueles que desejavam dissolver o PCV no interior do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV). Baseando-se numa tática de Frente Única Proletária, firmou em abril de 2018 o Acordo Marco Unitário PSUV - PCV com o Governo Maduro e o bloco de organizações em torno do PSUV, compreendendo o papel que cumpria naquele momento o governo na luta contra a oposição, bem como os seus limites, buscando empurrar as forças chavistas para além de uma política reformista vacilante nos marcos do capitalismo dependente venezuelano.

Foto: EFE/MIGUEL GUTIÉRREZ

O Governo Maduro e o PSUV nunca colocaram em prática o programa pactuado com os comunistas do PCV. Considerando que a Venezuela é quase um paraíso fiscal para a burguesia, os comunistas defendiam enfrentar o déficit fiscal do estado por meio de uma reforma tributária, combatendo a sonegação e a elisão fiscal e desonerando o consumo popular. Junto a essa mudança, o PCV também defendia um plano nacional de agricultura que garantisse mais crédito, apoio técnico, direcionamento nas compras governamentais e melhora na infraestrutura e logística para os camponeses, pequenos e médios agricultores e cooperativas rurais. Outra iniciativa de vulto no programa defendido pelo PCV é o fortalecimento dos sindicatos, comitês de fábrica e autogestão operária como forma de combater a corrupção e a ineficiência, aumentar a produtividade e combater o desabastecimento potencializado por ações especulativas de empresas privadas.

Tais marcos de política econômica citados acima buscavam responder aos problemas e gargalos econômicos do país desde uma perspectiva operária e popular, enfraquecendo o poder dos monopólios privados e da lógica capitalista que facilita dinâmicas de especulação, corrupção, ineficiência e aumento de preços. A partir de 2014 o país viveu uma gigantesca crise humanitária que resultou na imigração de milhões de venezuelanos, crise humanitária potencializada pelo aumento da agressividade do imperialismo durante o governo de Donald Trump.

Depois que o PSUV rompeu, na prática, o acordo firmado em 2018, o PCV acertadamente rompeu sua aliança com Maduro em 2020. Buscando responder a esse cenário, os comunistas do PCV, e outras organizações aliadas, fundaram a APR - Alternativa Popular Revolucionária. Frente à ofensiva do imperialismo, os ataques da extrema-direita e as incursões de mercenários com apoio do então presidente da Colômbia Iván Duque, era fundamental fortalecer as organizações operárias e camponesas, combater as ações especulativas da burguesia comercial e bancária e avançar em formas de planificação da economia para reduzir a dependência de importações em cenário de escassez de dólares, hiperinflação e crise de abastecimento.

Mas Maduro e o PSUV escolheram outro caminho. Com o início da Guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, os Estados Unidos e a Europa Ocidental cortaram a compra do gás e petróleo russo e passaram a precisar de uma nova fonte de petróleo. A partir disso e já no começo da guerra o governo Biden buscou uma reaproximação gradual com a Venezuela. As sanções foram abrandadas, monopólios imperialistas como a Chevron receberam licença especial dos Estados Unidos para voltar a negociar com a Venezuela e a PDVSA (estatal de petróleo do país), o petróleo venezuelano voltou a circular no mercado mundial e a produção petrolífera passou a uma recuperação relativa, chegando a 700 mil barris produzidas por dia (ainda que em 2002 a Venezuela produzisse cerca de 3 milhões de barris por dia). É também nesse quadro que deve ser compreendida a movimentação aventureira de Maduro sobre a Guiana, que busca consolidar a Venezuela como um titã petrolífero inconteste em mares caribenhos, mesmo que às custas do risco de arrastar a América do Sul para uma guerra generalizada.

A escolha de Maduro foi clara: aproveitar da brecha na ofensiva do imperialismo para selar um novo pacto de classes com a burguesia venezuelana e internacional. Para isso o PSUV realizou uma dura política de ajuste fiscal sobre os serviços públicos e as políticas sociais, jogando no colo da classe trabalhadora o ônus da redução do assim chamado déficit público. Operou-se o rebaixamento sistemático dos salários, o fortalecimento da precarização laboral e o enfraquecimento dos sindicatos e dos acordos coletivos. No mesmo caminho, o governo Maduro patrocinou uma reforma monetária rumo à dolarização da economia e liberalizou sem critérios as importações.

A desigualdade social explodiu no país que, em 2021, passou a ser o mais desigual na América do Sul, superando o Brasil. A dolarização da economia potencializou a criação de uma nova elite, com crescimento do consumo de luxo (que ocorre exclusivamente em dólar) e mais de 60% da força de trabalho no mercado privado já recebe parte dos seus rendimentos em dólar, em contraste com 20% da força de trabalho no setor público que tem seu salário pago em bolívar, com menor poder de compra.

Hoje, a própria base social do PSUV está rachada. Além das políticas econômicas antipopulares e da busca de repactuação com a burguesia, Maduro promove uma centralização cada vez maior da capacidade decisória, aliena setores críticos do chavismo, burocratiza ainda mais as dinâmicas de participação popular e estimula expurgos dos críticos no partido e no governo. Mas para seguir o rumo de uma política econômica cada vez mais rebaixada e liberal e um modelo de governança de aprofundamento da burocratização e do autoritarismo, não basta calar as vozes críticas no PSUV e no bloco chavista. É nesse contexto que devemos entender a perseguição ao PCV e às demais organizações da APR, bem como as manipulações nas eleições sindicais etc.

É fundamental, para a manutenção dos setores do PSUV ligados a Nicolás Maduro, que não exista qualquer alternativa à esquerda. A despeito de seus recuos e sua reconciliação cada vez mais flagrante com a burguesia, Maduro precisa apresentar a si próprio como a única alternativa viável para “manter” o legado de Chávez, no sentido das transformações sociais realizadas, mas principalmente como alternativa à ingerência estrangeira e para o “combate” ao imperialismo (entenda-se: negociações com os EUA).

Quando o PCV rompeu com o governo Maduro em 2022 e, de forma correta, buscou organizar a unidade junto às forças proletárias e revolucionárias críticas ao governo na já mencionada APR, igualmente de imediato iniciaram-se movimentações de assédio, intimidação, perseguição política e agressões físicas aos seus integrantes por iniciativa das Instituições do Estado, de organizações e grupos vinculados ao governo.

Destacaram-se nesse contexto inicial a perseguição aos candidatos da APR na eleição parlamentar de 2020. A APR foi completamente sabotada na sua participação nas cadeias de rádio e televisão, numa nítida tentativa de isolar ao máximo possível qualquer voz dissidente à esquerda do PSUV. É importante destacar que todas as candidaturas da APR foram lançadas sob a legenda eleitoral do PCV, dado que as das demais organizações já se encontravam inabilitadas pelo poder eleitoral venezuelano.

Em meio à contínua campanha anticomunista, o PCV concluiu seu XVI Congresso em novembro de 2022 reafirmando uma firme política de combate às políticas liberais e de austeridade implementadas pelo Governo Maduro, ao mesmo tempo dando o mais firme combate a qualquer pretensão de intervenção estrangeira imperialista. Oscar Figuera, Secretário-Geral do PCV e deputado no parlamento venezuelano, que vinha sendo censurado contínuas vezes em plenário, foi apontado novamente ao Comitê Central, sendo o mais votado entre os delegados. Neste momento o PCV já recebia manifestações de solidariedade de dezenas de Partidos Comunistas de todo o globo no Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários (EIPCO). Tal contexto fez com que o PSUV aumentasse ainda mais sua ofensiva contra o PCV.

Recentemente foi dada ampla visibilidade e cobertura midiática a uma demonstração pública nacional do PSUV, em que supostas bases do PCV estiveram presentes. O governo, utilizando-se de seus poderes institucionais, mobilizou as mídias públicas e privadas para difundir tal feito como se fosse uma ruptura dentro do próprio PCV. Três grandes meios de comunicação privados, como o Globovisión, Televen e Venevisión atenderam ao chamado psuvista, e esses mesmos meios privados negaram o direito de resposta exigido pelo Comitê Central do PCV, demonstrando a unidade de ação entre o governo e os setores burgueses da telecomunicação venezuelana contra os comunistas. Logo depois foi realizado, sob forte financiamento material e logístico, o chamado “Encontro de resgate do PCV”, que se demonstrou mais uma manobra na intensificação da ofensiva anticomunista e na manufaturação de um fato político para justificar uma intervenção judicial contra o partido. 

Ao longo dos meses seguintes, se sucedeu uma série de reuniões das supostas “bases descontentes” do PCV, que comprovaram-se ser compostas por militantes do PSUV, de suas organizações satélite e de ex-militantes oportunistas do PCV, como Henry Parra, expulso por romper com a política dos comunistas no ano de 2021 e apoiar o PSUV no estado de Táchira. A despeito das contínuas denúncias internacionais, em agosto de 2023, o PSUV é vitorioso em sua ofensiva e consegue intervir judicialmente no PCV, retirando das mãos de seu Comitê Central legítimo a legenda e qualquer reconhecimento legal do Partido, atribuindo tais elementos a um bando farsesco de oportunistas, montado exclusivamente para apoiar as políticas do governo e retirar qualquer possibilidade de crítica à esquerda ou alternativa revolucionária nas eleições presidenciais de 2024.

Esse é o contexto que precede a eleição de 2024. O Acordo de Barbados, previa uma pactuação entre o governo e a oposição de direita, com o compromisso de ambas as partes de uma eleição limpa, sem violência e com a aceitação do resultado pelo derrotado. A principal figura da oposição é Edmundo González Urrutia. Urrutia, figura política sem expressão e peso na Venezuela, participou das ações de terrorismo estatal do Plano Condor em El Savaldor, quando era o número dois da diplomacia venezuelana no país na década de 1970 e parte da década de 1980. O peso político e a popularidade de Urrutia se relacionam diretamente ao apoio conferido por María Corina Machado.

Corina Machado é uma figura de extrema-direita que tem como histórico o apoio ao golpe de 2002 contra Hugo Chávez, a defesa das sanções dos Estados Unidos contra o seu próprio país e a promessa de privatização da PDVSA e de todo petróleo da Venezuela, além do apoio às guarimbas que entre 2014 e 2017 mataram centenas de venezuelanos. Ao contrário do discurso oficial da mídia burguesa, ela não é uma perseguida política, impedida por uma manobra ilegal de ser candidata.

Corina Machado e seu avatar oficial, González Urrutia, representam a busca por parte das potências imperialistas de se apoderar diretamente do petróleo da Venezuela para reforçar sua posição de domínio na América Latina. Representam também setores da burguesia venezuelana que, mesmo com todas as concessões e políticas favoráveis do Governo Maduro, buscam uma contrarrevolução completa no país.

Mas o Governo Maduro e o PSUV não podem ser colocados como o completo oposto do que representa María Corina Machado e sua quadrilha. O Governo Maduro segue buscando apoio e sustentação em largos setores da burguesia interna venezuelana, ainda que sem sucesso absoluto. Também busca extrair máximas vantagens para o desenvolvimento capitalista do país equilibrando-se diplomaticamente entre a reconciliação com os EUA e a manutenção dos laços com Rússia e China, buscando nesses últimos a sua sobrevivência econômica e alívio do efeito das sanções dos Estados Unidos.

O Governo Maduro é, ao mesmo tempo, um entrave nos planos dos setores mais golpistas da burguesia venezuelana e do imperialismo sem ser, contudo, a personificação de um pólo político anti-burguês e anti-imperialista, uma situação que não é inédita na história da América Latina.

Reconhecemos que a situação na Venezuela é dramática e muitíssimo delicada. Em termos gerais, pode-se notar que a classe trabalhadora está sendo empurrada para duas alternativas de blocos burgueses com interesses distintos: de um lado, o PSUV com sua autodenominada “burguesia revolucionária”, que busca desesperadamente manter-se na direção do país aplicando a já mencionada política econômica burguesa e de perseguição aos movimentos proletários e populares não-alinhados; do outro lado, os setores burgueses mais reacionários e golpistas, representados por Corina Machado, que, se forem vitoriosos, representarão uma vitória estratégica aos interesses do imperialismo estadunidense, fortalecendo este lado da disputa interimperialista em curso no mundo. Nenhuma das duas alternativas é do interesse do proletariado venezuelano e cada uma a seu modo quer reconciliar a Venezuela com os ditames dos Estados Unidos.

O PCV posto na ilegalidade sob o Estado burguês venezuelano foi um duro golpe contra os interesses das forças revolucionárias e proletárias e desde o princípio expressamos a nossa mais irrestrita solidariedade aos comunistas venezuelanos.

Vale frisar, contudo, que acreditamos ser imprescindível distinguir nitidamente o proletariado revolucionário em relação a ambos os campos em disputa. Por inúmeras vezes, na história da luta de classes em nosso continente, os Partidos Comunistas se depararam com governos e situações semelhantes, restando entre a cruz e a espada e, na dificuldade de constituírem uma alternativa independente, estiveram a reboque de uma ou outra ala da burguesia dependente. Se na maior parte das vezes optou-se pelo reboquismo aos reformistas, também não faltaram vezes de casos inversos, em que a oposição dos PC aos reformistas não logrou diferenciar-se nitidamente da postura das “oposições democrático-liberais” burguesas – como no caso do PCB diante de Vargas e do PCA frente a Perón.

Isso não significa que a alternativa correta seria apoiar um candidato que, ao invés de demarcar nitidamente as fronteiras entre as classes, ajudou a borrá-las. Como afirmamos anteriormente, entendemos que a política de perseguição ao PCV, e as demais organizações que compuseram a APR, tem como único objetivo destruir a construção de qualquer alternativa à esquerda de Maduro. Em nossa visão, portanto, caberia justamente intensificar os trabalhos para o fortalecimento de um bloco de organizações revolucionárias, e não a expansão deste bloco para um chamado amplo às organizações “além da esquerda”, “patrióticas e democráticas” em palavras e entreguistas e reacionárias na prática. É preciso denunciar que a ausência do PCV/APR nas eleições presidenciais de 2024 já constituiu, desde o início, o maior ataque ao povo venezuelano, pois silenciou a única voz capaz de dar expressão aos interesses de classe do proletariado e seu programa de recuperação econômica e social. Se, dada a perseguição promovida pelo governo, parece impossível “apoiar um fuzil sobre os ombros de Maduro para combater a direita, e depois acertar-se com Maduro”, também o caminho contrário nos parece ainda mais arriscado, uma vez que a oposição ao governo não pavimenta o caminho para a ampliação da democracia em favor dos trabalhadores, pelo contrário. Se ambas alternativas em jogo apontam para uma tendência de fechamento do regime burguês, urge mais do que nunca a independência política do proletariado.

Nesse sentido, vemos com bons olhos o esforço o PCV em, nas últimas semanas, diferenciar-se da oposição direitista por meio da Frente Democrático-Popular, composta pela plataforma La Otra Campaña, pelo Partido Centrados en la Gente, Voces Antiimperialistas, pelo Movimiento Popular Alternativo, pelo Bloque Histórico Popular, pela Frente Nacional de Lucha de la Clase Trabajadora, pelo Colectivo EnComún e pelo PPT-APR, bem como por meio da condenação às ações de violência cometidas contra membros do PSUV e do governo por membros da chamada Plataforma Unitária da burguesia entreguista.

Ademais, nas condições atuais, nos parece que é urgente a agitação mais intensa possível de que o programa econômico de Maduro ou de Corina, ainda que diferentes, não representam uma alternativa e que a luta do proletariado deve se dar única e exclusivamente numa intensa agitação de seu próprio programa com a máxima independência política e unidade das forças revolucionárias. Mesmo que, sob o ponto de vista democrático, exigir a auditoria das atas eleitorais possa parecer a tática acertada, realizar essa agitação na ausência de uma forte agitação do programa do proletariado é uma forma de ficar a reboque de interesses burgueses e pequeno-burgueses.

O próximo período será crítico para o proletariado venezuelano, e seu país tem papel de destaque na disputa entre os blocos em conformação na disputa interimperialista mundial. Muito será exigido das forças revolucionárias do país, principalmente na dificílima tarefa de concatenar a luta anti-imperialista e anticapitalista com a necessária luta, sob a hegemonia dos interesses do proletariado venezuelano, contra o crescente fechamento do regime burguês de Maduro. Neste cenário, a luta pela retomada da legalidade do PCV tem um papel tático importantíssimo, mas é imprescindível não restringir tal luta sob uma estratégia democrática-nacional, apontando nitidamente na direção da revolução socialista proletária.

Por fim, deixamos inconfundivelmente claro que consideramos inaceitável qualquer intervenção imperialista na Venezuela. Não cabe a qualquer um que se diga comunista, “de esquerda” ou progressista, por mais difusas que tais últimas denominações soem, legitimar quaisquer ingerências no país, seja por meio de organismos internacionais (como no caso da Organização dos Estados Americanos), seja pela própria potência hegemônica, os Estados Unidos, cujos interesses no país latino-americano não podem ser dissimulados ou subestimados. Da mesma forma, é urgente a denúncia contra as sanções econômicas impostas à Venezuela, que prejudicam fundamentalmente a classe trabalhadora e já mataram mais de 40 mil venezuelanos.

Conselho Editorial do Órgão Central
Comitê Central
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR)