'Nota crítica ao texto “A luta contra a privatização dos presídios e pelo desencarceramento – novembro antirracista”' (Camarada Doni)
Os conceitos “criminalidade” e “impunidade” não podem ser utilizados por nós sem reconhecer que carregam um significado de opressão da classe trabalhadora negra e periférica, ou seja, não podemos dar a entender que a “criminalidade” é algo a ser combatido e que devemos nos opor à “impunidade”.
Por Camarada Doni para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, recentemente o texto “A luta contra a privatização dos presídios e pelo desencarceramento – novembro antirracista” foi postado em nosso website, e uma frase do texto me deixou reflexivo acerca da posição que nós, comunistas, defendemos em oposição ao caráter indissociavelmente repressivo do Estado burguês (uma ferramenta de opressão de classe), do qual o aparato de persecução penal (judiciário, polícia, ministério público, sistema penitenciário, mídia burguesa, etc.) é apenas uma faceta.
Em razão disso, deixo comentários breves para nossa reflexão coletiva acerca do tema.
A frase em questão é a seguinte: “Vale destacar que hoje já existem amplos estudos que mostram que o aumento de pena não diminui a criminalidade nem a impunidade.”
Sem entrar no mérito do que a frase diz (ou queria dizer), acho importante refletirmos sobre o que entendemos por “criminalidade” e “impunidade”.
Em princípio, crime é uma categoria histórica, ou seja, passageira, o mesmo se dando com as ações que são taxadas de criminosas – ambos estão atrelados a um tempo e espaço específicos.
O que não podemos nunca esquecer é que é justamente a classe dominante, a burguesia, quem define o que é crime e quem serão ês criminoses, ou seja, o crime é a ação contra os interesses da burguesia e criminoses são ês perpetradores, membres das classes trabalhadoras.
Não por acaso, camaradas, a maioria de brasileires preses está trancafiade por ter cometido furto (subtrair algo sem violência), roubo (subtrair algo com violência) ou tráfico de drogas, condutas diretamente contra o patrimônio/a propriedade (furto e roubo) ou com efeitos/ganhos patrimoniais (tráfico de drogas) [1].
Aqui o texto acerta ao definir a classe trabalhadora, em especial trabalhadores negres e perifériques, como o alvo dessa repressão, todavia deixa de mencionar o vertiginoso aumento do encarceramento feminino no país, que quadruplicou em 20 anos [2], e o próprio caráter do aprisionamento de mulheres cis e trans, principalmente mulheres negras, que reflete a divisão sexual do trabalho que as subjuga e lhes impõe as piores e mais arriscadas tarefas também na prática do tráfico, como servir de mulas para o transporte de entorpecentes.
Logo, precisamos qualificar o debate sobre “criminalidade” e lembrar que embora a própria classe trabalhadora também seja atingida por furtos e roubos, por exemplo, a existência desses conflitos é consequência direta da miséria imposta a partir da expropriação dos meios de produção das classes trabalhadoras que, no Brasil, conforme ressalta o texto, é fruto de um processo de modernização conservadora que ocultou por um véu jurídico de “igualdade” a situação de opressão extrema vivida pela população negra e por povos originários [3] e permitiu sua continuidade.
Em relação ao termo “impunidade”, o próprio texto fala na seletividade dos aparatos estatais de punição, ou seja, a polícia persegue pobres e invade bairros periféricos e escolhe fechar os olhos para o que se passa nos condomínios de “pessoas abastadas”.
Não podemos usar esse termo no país com a terceira maior população carcerária do mundo, pois assumir esse discurso seria o mesmo que dizer que precisamos punir cada vez mais trabalhadores por ações que vão contra os interesses burgueses, ou seja, defender o Estado burguês e reproduzir ideologia burguesa.
Portanto, camaradas, os conceitos “criminalidade” e “impunidade” não podem ser utilizados por nós sem reconhecer que carregam um significado de opressão da classe trabalhadora negra e periférica, ou seja, não podemos dar a entender que a “criminalidade” é algo a ser combatido e que devemos nos opor à “impunidade”, mas qualificar esses termos de forma crítica e reforçar que apenas a luta política contra o Estado burguês forjará um Brasil sem mais de 800 mil presas, uma vez que apenas a garantia efetiva de dignidade nos permitirá responder radicalmente e verdadeiramente a essas questões urgentes.
[1] Podemos pensar nessas ações como entraves à reprodução do capital, seja por atingir diretamente a produção ou circulação de mercadorias (como um furto em um supermercado) ou por buscar fugir do domínio juridicamente e economicamente imposto pela sociedade burguesa (o tráfico de entorpecentes);
[2] Pesquisa mostra que o Brasil tem terceira maior população carcerária feminina do mundo: https://jornal.usp.br/radio-usp/pesquisa-mostra-que-o-brasil-tem-terceira-maior-populacao-carceraria-feminina-do-mundo/;
[3] Aqui podemos ressaltar, p. ex., a Lei de Terras que já em 1850 exclui escravizades, alforriades e povos originários da posse de terras ao estabelece-las como propriedades a serem compradas e nega qualquer possibilidade de uma reforma agrária – evidentemente que não por acaso;