'Nossa prática e nossos princípios' (Machado)

Creio ser necessário reafirmar como fundamento do marxismo-leninismo, como princípio, que é possível a construção de um Partido forte, bem estruturado e amplamente inserido nas massas trabalhadoras sem abandonar uma linha política revolucionária, fundada em princípios.

'Nossa prática e nossos princípios' (Machado)
"Não há programa perfeito, linha política perfeita, acima da luta de classes, que referencie o Partido histórico. Os bolcheviques construíram um Partido revolucionário de vanguarda com o mesmo programa do que os mencheviques, não porque defendiam uma linha política contra seus ataques, mas porque adicionaram um princípio ao programa: a hegemonia proletária."

Por Machado para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, acompanho com atenção os debates que se iniciaram com o texto do camarada Zenem, que apresenta uma crítica não exatamente a um texto ou ao pensamento geral de Francisco Martins Rodrigues, mas à uma ideia, que ficou sintetizada na frase:

“Na situação contrarrevolucionária como a que se vive hoje na Europa, um partido de esquerda não pode ser um partido de massas. Ou goza das vantagens de se instalar no sistema, ou sofre as consequências de ser revolucionário. As duas coisas juntas é que não pode ser. […] Amanhã, quando surgir uma situação revolucionária, então sim, a esquerda poderá e deverá crescer. Por agora, é bom não entrarmos em pânico por sermos olhados como um partido “marginal.” (Três Doenças da Esquerda)

Creio que ambos os camaradas Pedro e Vasco apresentaram uma boa defesa da obra de Francisco Martins Rodrigues e contra a ideia de que ele possa ter defendido um “espírito de seita” ou o “aguardo paciente do movimento espontâneo”. Porém, creio que ao mesmo tempo, os camaradas, nas palavras do camarada Pedro, “bateram no espantalho” e deixaram parte da crítica do c. Zenem intacta. Justamente a crítica àquilo que já era nossa debilidade ainda no PCB unido: o “conformismo revolucionário”.

O que chamo aqui de "conformismo revolucionário" é justamente a postura de que “somos pequenos porque somos revolucionários”, afastando uma autocrítica rigorosa da completa incapacidade de influenciar e dirigir a classe trabalhadora que, nesta visão, seria reformista de qualquer modo pela própria conjuntura. Essa postura continua existindo em nossa organização (como também no PCB e, via de regra, em diversas outras organizações de esquerda), e geralmente vêm acompanhada de frases como a de FMR: “quando surgir uma situação revolucionária”, “no momento de crise”, "seremos muitos", mas agora "um partido de esquerda não pode ser um partido de massas".

O “conformismo” é desvio profundamente prejudicial para nossa atuação política e orgânica que leva, na prática, à postura permanentemente principista (e, também, esquerdista), afastando o trabalho de massas e ignorando a urgência revolucionária. Digo isso não de forma condenatória, mas porque frequentemente olhamos “por cima” para essa postura, que vem inclusive de camaradas bem ativos e disciplinados, e acreditamos que isso pode “passar em breve”, sem verificar que ela leva diretamente a erros políticos.

A meu ver, é um dos princípios do leninismo, provado e repisado na prática, de que, sem abdicar dos princípios do marxismo revolucionário, é possível e necessário construir um partido revolucionário capaz de organizar e dirigir amplas massas, inclusive fora de momentos revolucionários, e foi essa tarefa, a de construir um Partido revolucionário grande, forte e inserido na classe, que Lenin cumpriu durante os 15 anos de construção do Partido Bolchevique e defendeu durante toda sua atividade na Internacional Comunista.

Esse princípio deve ser firmado contra a mentira de que o Partido Bolchevique, antes da revolução, seria apenas uma pequena seita sem inserção de massas, e somente no momento revolucionário conseguiu dirigir a classe trabalhadora para a revolução. Na realidade, o trabalho de Lenin foi justamente o de manter um Partido inserido amplamente na classe trabalhadora, capaz de dirigir movimentos e campanhas mesmo na mais rígida clandestinidade, capaz inclusive de eleger parlamentares revolucionários e controlar seu trabalho, mesmo com diversos erros.

Foi esse Partido forte, organizado, disciplinado e experiente nos mais diversos métodos de luta que permitiu o êxito da Revolução Socialista na Rússia e sua vitória na Guerra Civil, não apenas porque se manteve firme aos princípios do marxismo revolucionário à sua época, mas também porque conseguiu conscientizar e dirigir amplas massas sem abdicar de cada um desses princípios.

Foi, também, o que permitiu o sucesso dos PCs da China e do Vietnam em suas revoluções, mesmo que estas tenham adotado táticas extremamente distintas, as quais são incorretamente descartadas por FMR como se fossem “a mesma massa reacionária” após o VII Congresso da IC (e reconhecer a revolução nesses países não significa adotar acriticamente suas bases ou acreditar que prosseguiram sem erros).

O fundamento de que é possível um partido revolucionário grande, que dirija amplas massas, decorre diretamente da compreensão comunista sobre a consciência. Se é possível um trabalho político partidário capaz de elevar a consciência da classe trabalhadora, se a consciência pode ser desenvolvida, e não é apenas um traço natural ou espontâneo, então é certo de que um trabalho consequente pode desenvolver a consciência de uma fração expressiva da classe trabalhadora mesmo nas conjunturas mais difíceis. Admitir o contrário seria admitir a incapacidade do Partido em influenciar a classe trabalhadora, seria, justamente, admitir uma posição espontaneísta de desenvolvimento da consciência, que só seria possível no "momento correto".

Afinal, qual foi a política dos bolcheviques após a derrota da Revolução de 1905 e o descenso do movimento de massas? Foi justamente se alçar com ainda mais ênfase ao trabalho de massas mesmo nos espaços mais reacionários. Foi defender a necessidade da participação na Duma reacionária e nos sindicatos, chegando mesmo a expulsar aqueles esquerdistas que combatiam esse trabalho e propunham frases pseudo-revolucionárias em seu lugar (Otzovistas e ultimatistas). Foi inserir, e resguardar a inserção, do Partido revolucionário no movimento operário, garantindo sua influência. Não creio que, no Brasil, em Portugal, ou em qualquer parte do mundo, haja uma situação em que essa construção não seja possível e necessária, especialmente agora, em que gozamos de certa liberdade de agitação e propaganda abertas e temos uma nova geração que não cresceu com a derrota da União Soviética, mas sim com a crise do sistema capitalista.

E é apenas nesse trabalho de massas, de inserção nos movimentos da classe trabalhadora, que podemos organizar um Partido revolucionário. É fácil e simples manter os princípios revolucionários na fase de pequenos círculos de propaganda, onde as contradições restam escondidas. Justamente o trabalho bolchevique foi constituir um Partido amplo e revolucionário capaz de manter seus princípios para executar a Revolução. É por isso que Lenin tanto combateu o espírito de círculo e estabeleceu uma série de princípios organizativos, não para o funcionamento de um pequeno círculo justo, mas para a estruturação de um amplo Partido disciplinado e consciente, fundado no centralismo democrático.

Ainda, não custa notar no trabalho leninista o senso de urgência na construção partidária, de que a construção dessa ferramenta, de que a elevação progressiva (“através de um trabalho longo e gradual”) da classe trabalhadora, são tarefas para agora, e não para o momento da próxima crise revolucionária.

Concordo, claro, que não é possível prever ou construir a próxima crise revolucionária. Mas independente disso, é necessário construir, o mais rápido possível, um Partido forte o suficiente para impactar a realidade (inclusive conquistando reformas), influenciar uma parcela significativa da classe trabalhadora e dirigi-la em direção à revolução.

Destaco que é por isso que me é tão valiosa a referência ao KKE (PC da Grécia). Apesar de ter erros ideológicos e debilidades práticas, os gregos nos provaram novamente e na atualidade que é possível, mantendo os princípios revolucionários, mantendo a propaganda pela tomada do poder político pela classe operária, construir um Partido expressivo na classe trabalhadora, capaz de sucessos eleitorais e de dirigir o movimento sindical e o movimento comunitário do país (entre outros) em uma perspectiva revolucionária.

E digo aqui Partido no sentido real, organizado, não na ideia de Partido Histórico. É Marx que nos ensina que as ideias “se tornam força material quando se apossam das massas”… Mas, sem se apossar das massas, sem uma organização, elas seguem apenas ideias e não um Partido. Dizer que a tarefa do Partido em tempos de “maré-baixa” seria “enfrentar [...] ataques à linha política do partido histórico”[1] é nada mais do que fraseologia, pois a linha política do Partido só existe através do trabalho prático, da formulação e do convencimento, e não como ideal incorruptível acima dos interesses.

Não há programa perfeito, linha política perfeita, acima da luta de classes, que referencie o Partido histórico. Os bolcheviques construíram um Partido revolucionário de vanguarda com o mesmo programa do que os mencheviques, não porque defendiam uma linha política contra seus ataques, mas porque adicionaram um princípio ao programa: a hegemonia proletária. Não foi necessário destrinchar todas as teses, não foi necessário sequer que todo o Partido tivesse opiniões similares. No início da revolução de fevereiro, o Partido tomou a linha incorreta de defender o governo provisório, o que foi logo corrigido. Só não erra quem não faz, e Lenin descreve perfeitamente qual deve ser nossa postura frente aos erros do Partido:

“O erro de nosso partido é evidente. O partido combatente da classe avançada não teme os erros. O que deveria temer seria a persistência no erro, uma falsa vergonha em o reconhecer e em o corrigir” (Do diário de um publicista, Obras Escolhidas V. 2, p. 317)

Por fim, creio que ambos os camaradas traem os próprios argumentos ao trazer citações, justamente, de uma seita como o Partido Comunista Internacional, organização da “esquerda italiana”, linha política esquerdista com grande referência em Bordiga.

Essa organização, que não passa de uma seita sem qualquer inserção política na classe trabalhadora em qualquer local do mundo, opõe ao centralismo democrático um suposto “centralismo orgânico”, pois rejeitam por princípio a democracia enquanto método de decisão (apesar de dizerem que rejeitam apenas "a democracia como princípio"). É o próprio Partido que expressa esse descolamento do movimento operário:

“A atividade do partido por muitas décadas foi, de fato, principalmente dedicada ao estudo e à defesa de sua teoria e de suas normas táticas.”[2]

As ideias mirabolantes do chamado Centralismo Orgânico incluem não votar qualquer resolução (por rejeitar a democracia) e definir de antemão, a nível internacional, todas as táticas utilizáveis:

“Táticas: as possibilidades de manobra e ação devem ser previstas (foreseen) por decisões de congressos internacionais em um sistema fechado. Na base, não é possível iniciar ações não definidas pelo Centro; O Centro não pode inventar novas táticas e movimentos, sob o pretexto de novos fatos.”[3]

Por fim, apesar de afirmar buscar a intervenção nas lutas economicas, o PCI apresenta em suas próprias resoluções o conformismo característico de seu espírito de círculo:

"9. São os eventos, e não o desejo ou decisão dos militantes, que determina a profundidade da penetração do Partido nas massas, limitando-a atualmente a uma pequena parte de sua atividade. Porém, o Partido não perde qualquer oportunidade de intervir nos conflitos e vicissitudes da kuta de cmasses, ciente de que não pode haver reconstrução até que essa intervenção tenha se desenvolvido muito e se torne a principal área de atividade do Partido."[4]

É desta maneira que os esquerdistas excusam sua falta de trabalho: "a decisão dos militantes" não "determina a profundidade da penetração do Partido nas massas". Isso permite, claro, que se agarrem por princípio a qualquer tática rígida que lhes pareça correta, por princípio, mesmo que isso lhes custe a abstenção na mobilização da classe trabalhadora. É o clássico caso da abstenção por princípio ao trabalho político no parlamento, que Lenin criticou corretamente em Esquerdismo e que continua sendo uma das táticas rígidas da Esquerda Italiana.

E, na maneira como formulado, esse conformismo é, na prática, espontaneísmo. Certamente um tipo diferente do espontaneísmo economicista, invertido, mas partindo do mesmo pressuposto: o crescimento do Partido depende dos eventos, e não da própria construção histórica. Ou, pior: somente uma restrita minoria da classe trabalhadora pode se alçar ao nível de consciência do partido e, por isso, não é correto criticar a incapacidade do Partido em elevar a maioria da classe a esse nível de consciência, quando somente os "eventos" podem permitir essa elevação.

Por fim, quero deixar claro que não defendo aqui "traficar com princípios", nas palavras de Marx (Crítica ao Programa de Gotha). Creio que apenas delimitando corretamente quais são os nossos princípios e quais não são eles, é que poderemos construir um Partido com bases sólidas e permitir uma prática coerente e revolucionária. Essa, creio, é a principal tarefa que temos nesse Congresso de Reconstrução do Partido Comunista no Brasil: delimitar, precisamente, nossos princípios, que tanto foram confundidos pelos erros históricos cometidos no último século.

Destaco que essa confusão não decorreu apenas do abandono de princípios, mas também da adição de princípios incorretos. Alguns desses falsos princípios, para nós, são muito claros pois deram forma à nossa cisão: a vedação por princípio à "polêmica pública", a presença de dirigentes nas células, a submissão incontestável da juventude, a unicidade do jornal partidário, a rigidez organizativa…

Porém, outros falsos princípios ainda permaneceram se manifestando em nossas fileiras, dos quais destaco tanto a heterodoxia intelectual (bandeira central da fração academicista) como, principalmente, o que chamei de conformismo revolucionário, ou o espírito de "poucos, mas bons", que, geralmente, significa apenas "poucos".

Por isso, creio ser necessário reafirmar como fundamento do marxismo-leninismo, como princípio, que é possível a construção de um Partido forte, bem estruturado e amplamente inserido nas massas trabalhadoras sem abandonar uma linha política revolucionária, fundada em princípios.

Isso deve ser sempre reafirmado contra o "conformismo revolucionário" porque é justamente nessa construção do Partido forte, nessa busca pela ampliação da inserção na classe trabalhadora, que podemos reforçar todos os outros princípios, que confirmamos a justeza de nossa linha política, que apresentamos com clareza a perspectiva revolucionária. Não à toa, a mais ativa parcela da Juventude, que abandonou o conformismo e trabalha desde antes da visão de forma muito mais consequente pela estruturação da organização (mesmo com inúmeros erros e desvios), que crescia mais do que o Partido, foi a principal força na consolidação dessa cisão.

Afinal, foi nesse trabalho intenso da Juventude de construir a organização, de ampliar sua inserção, que mais se destacaram as contradições com nossos princípios, que mais apresentaram-se de forma transparente os desvios oportunistas da fração que se apossou do CC do PCB, e foi nessa atividade que mais tivemos a oportunidade de rejeitar esses desvios e reafirmar nossos princípios, educando uma geração que garantiu a continuidade da Reconstrução Revolucionária.

Não podemos ser uma organização conformada, não podenos tomar como verdade que nossa fraqueza decorrr apenas das "leis da realidade histórica", como insinua o camarada Vasco[5]. Se é verdade que ainda não conseguimos gerar tensão social nem temos grande base social, acho um erro acreditar que estas não sejam necessidades para um Partido revolucionário, que não devam estar em nossas perspectivas mais próximas, e que não devamos realizar uma ampla autocrítica sobre nossas debilidades em matéria de agitação e organização.

É somente nessa prática, na construção partidária com o objetivo de consolidá-lo como dirigente das mais amplas massas na linha revolucionária, que poderemos firmar e levantar ainda mais nossos princípios. Qualquer tentativa de justificar nossas debilidades práticas pela rigidez de nossos princípios deve ser firmemente combatida, tanto quando tenta rebaixar nossos princípios (oportunismo), quanto quando busca restringir nossa prática (esquerdismo). E, justamente nessa prática, mesmo com eventuais erros, é que estabeleceremos as condições para elevar a consciência de classe e, no momento oportuno, realizar a revolução brasileira.


[1] https://emdefesadocomunismo.com.br/o-s-grande-s-erro-s-de-zenem-sanchez-uma-resposta/

[2] https://www.international-communist-party.org/English/Texts/CPTraLef/LeninOrC.htm , na seção 25. Do Nothing’s, minha tradução.

[3] idem, Seção 36. Guarantees.

[4] https://www.international-communist-party.org/BasicTexts/English/51Charac.htm, seção IV

[5] https://emdefesadocomunismo.com.br/resposta-ao-camarada-zenem-revolta-social-fmr-e-a-acao-dos-comunistas/