Níger, Mali e Burkina Faso deixam a CEDEAO e crise na África Ocidental se aprofunda
Neste ambiente de crise que tomou a região nas ultimas décadas, um elemento em comum gerou uma latente insatisfação para os militares, especialmente os de baixa patente, e a população: a presença francesa.
Por Guilherme Sales
No fim de janeiro, após uma série de embates diplomáticos e ameaças de retaliação e intervenção, Níger, Burkina Faso e Mali anunciaram, em comunicado conjunto, sua saída da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). A saída dos três países desta que é uma das mais antigas organizações de integração regional do continente, é fruto de um longo processo que, em termos gerais, remonta a política neocolonial mantida pela França desde a década de 1960.
Em agosto de 2020 o então presidente Ibrahim Boubacar Keita foi derrubado pelo alto comando militar no Mali, levando a um governo de transição. Consequência das insuficiências deste último, Assimi Goita lidera mais um processo de golpe, tornando-se chefe de estado em 2021.
Já em setembro de 2022, Ibrahim Traoré assume o poder em Burkina Faso após a derrubada de Paul Henri Damiba, militar que estava à frente do Movimento Patriótico para a Salvaguarda e Restauração, Junta que assumiu após o golpe que derrubou Roch Marc Christian Kaboré em janeiro do mesmo ano.
A conjuntura em Burkina Faso, com reverberações no Mali, se agravava desde a destituição de Blaise Campaoré em 2014. Campaoré, autor do golpe que culminou no assassinato de Thomas Sankara na década de 1980, foi derrubado após uma série de manifestações e protestos, motivados pela intenção do então presidente a concorrer a um quinto mandato e pelo avanço de grupos fundamentalistas islâmicos no Sahel, além de outras questões econômicas e sociais daquele período. A falha no combate aos grupos fundamentalistas também foi a principal razão para o golpe que derrubou Kaboré e, posteriormente, Damiba. Consta-se ainda que Ibrahim Traoré, capitão do exército desde 2020, atuava numa unidade antiterrorista, estando, portanto, no centro das problemáticas da conjuntura burkinabé.
A relação de Mali e Burkina Faso não se dá apenas pela proximidade temporal dos golpes que levaram Goita e Traoré ao poder. Em 2012, o então presidente Campaoré mediou negociações entre o governo do Mali e rebeldes tuaregues do Movimento Nacional de Libertação do Azauade (MNLA), uma região no deserto do Saara em território maliano. Este conflito, que remonta a década de 1990 e posteriormente a Guerra Civil na Líbia, foi agravada com a aliança momentânea entre o MNLA e grupos jihadistas como o Ansar Dine e a Al Qaeda no Magrebe Islâmico. O Ansar Dine acabou assumindo a hegemonia na região, impondo a xaria e estabelecendo o Estado Islâmico do Azauade.
Este conflito gerou uma série de problemáticas que aumentaram as tensões políticas e militares na região. Em primeiro lugar, a intervenção regional e internacional no Mali, protagonizada pela ONU e outras forças da CEDEAO, como o próprio Burkina Faso. Tanto Campaoré e seus sucessores quanto os presidentes que assumiram após o fim da missão da ONU no Mali foram derrubados por sua parca atuação no combate ao avanço dos jihadistas, negligenciando, segundo as alas militares que executaram os golpes, os aparatos de segurança, largando as tropas a própria sorte, dada a utilização de armamentos pesados pelos grupos fundamentalistas da região; além de deixar de lado a segurança da população deste países, que já sofriam com a desigualdade e crises alimentares, provocadas pela desertificação.
Este complexo cenário de instabilidade para segurança nacional dos países do Sahel levou nos últimos anos à crescente presença do Grupo Wagner na região, notória organização paramilitar russa reconhecida pela atuação na Guerra da Ucrânia. Os mercenários atuam com cada vez mais frequência ao lado dos exércitos da região Sahel contra os grupos fundamentalistas, gerando certo prestígio. Expandindo sua presença no continente, Yevgeny Prigozhin, à época líder do Wagner, falecido em 2023, criou uma rede de influências em todo continente, em especial nos meios digitais, através de propagandas pró-Rússia.
Dando continuidade a esta série de golpes na região, em julho do ano passado o general Abdourahamane Tchiani liderou a deposição do então presidente Mohamed Bazoum. Também motivados pela presença dos grupos fundamentalistas islâmicos na região, o grupo de militares que formaram o Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria assumiu o poder com perceptível apoio popular.
Neste ambiente de crise que tomou a região nas ultimas décadas, um elemento em comum gerou uma latente insatisfação para os militares, especialmente os de baixa patente, e a população: a presença francesa.
Em 1960, a negociação das independências de suas ex-colônias promovida pelo governo francês e seu presidente eleito à época, general De Gaulle, intencionava manter o aparato colonial com uma nova roupagem, tendo em vista principalmente o crescimento dos movimentos de libertação no continente africano. Com exceção da Guiné, as burguesias coloniais da África francófona optaram pela limitada autonomia através de um referendo proposto pelo então chefe de estado francês. Há mais de 60 anos, portanto, a França está presente militar, política, social, cultural e economicamente em África. Neste ultimo caso, o país europeu é responsável não só pela fuga de capitais e dependência do fluxo cambial, conservando o chamado Franco da colônia francesa da África (Franco CFA), que torna os países dependentes do tesouro francês, mas também pela exploração predatória dos recursos naturais.
A presença francesa no continente também se da através de tropas em praticamente todas as nações nos limites das antigas fronteiras coloniais da África Ocidental Francesa (AOF). A partir da década de 2000, com a escalada dos conflitos entre o ocidente e os grupos fundamentalistas islâmicos, a França tem adotado um discurso de segurança nacional para estabelecer bases em toda antiga AOF, visando preservar os interesses de sua burguesia imperialista no continente.
O sentimento antifrancês, crescente nas ultimas décadas por conta deste histórico, culminou na ascensão de setores das forças armadas que, como anteriormente citado, uniram a insatisfação com as burguesias nacionais africanas, incapazes de atuar contra os grupos jihadistas e superar a dependência econômica, a um nacionalismo anti-imperialista, fruto de anos de exploração francesa, que manteve toda a estrutura de poder da época pré-independência, intervindo em diversos governos e apoiando figuras impopulares.
Nesse contexto, a CEDEAO, bem como outros organismos de integração regional, como a União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA), atuaram desde ao menos 2010 como mediadoras do diálogo pelo fim do Franco CFA e outras questões que emergem com uma série de manifestações em diversos países da região, mostrando insatisfação pela exploração e por seguidas crises econômicas, carimbadas pelas contrapartidas exigidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial.
Em seu papel político, a CEDEAO atua com base numa hegemonia Nigeriana e Marfinense, com esta última em baixa, no entanto, devido a conflitos internos nas últimas décadas que levaram a uma divisão política entre um sul antifrancês e antiburkinabé, dada a grande presença de imigrantes e filhos de imigrantes, e um centro-norte apoiador da antiga metrópole e das políticas francófonas de integração da região. Nos últimos anos, a posição de ambos os destaques regionais da CEDEAO tem gerado atritos, que desembocaram nas ameaças de intervenção no Níger e sanções aplicadas ao Mali e Burkina Faso em 2023, que atingiram diretamente as populações mais pobres destes países.
Bola Ahmed Adekunle Tinubu, presidente da Nigéria e da CEDEAO tentou, desde agosto do ano passado, articular a intervenção no Níger à nível regional. Sem o apoio do senado nigeriano e da União Africana, organismo que herdou as estruturas da histórica Organização da Unidade Africana (OUA), Bola Tinubu e a CEDEAO articulam com EUA e França outras formas de alinhar aos seus respectivos interesses a situação local. Cabe nesse contexto o fato de que a Nigéria é, desde o início das discussões sobre o abandono do Franco CFA, a principal interessada em liderar o processo de integração monetária da CEDEAO, dada sua inconteste hegemonia econômica entre os países do organismo.
Níger, Mali e Burkina Faso, assinando acordos militares entre si e com a Rússia, que consolidou mais uma vez suas relações com estes países e outros na Cúpula Rússia-África, ocorrida em São Petersburgo em julho de 2023, além de nacionalizar serviços básicos, antes nas mãos do capital privado francês, seguem rumo a alternativas econômicas e políticas que, em curto prazo, influenciaram em movimentações políticas no Chade, Sudão e Gabão, com estes dois últimos já presenciando golpes respectivamente em 2021 e agosto de 2023.
O crescente interesse da Rússia no continente africano remonta, em todo caso, ao fim do Acordo de Grãos estabelecido em 2022, logo após o início do conflito com a Ucrânia. Este acordo, firmado com mediação internacional, estabeleceu a liberação da exportação de grãos ucranianos a partir de três portos no Mar Negro: Chernomorsk, Odessa e Yuzhny. O governo russo, isolado politicamente e enfrentando as sanções estabelecidas pelo ocidente, alegou em 2023 o não cumprimento de determinadas exigências contidas no Acordo, como o fim das barreiras para exportação de fertilizantes, além do retorno do Banco Agrícola da Rússia ao chamado sistema SWIFT, justificando seu encerramento. Paralelo ao fim do acordo, a Rússia coordenou um ataque aos portos ucranianos citados anteriormente e iniciou, a partir da Cúpula Rússia-África, um diálogo com diversos países do continente africano para o fornecimento gratuito de 50 mil toneladas de grãos e o estabelecimento de um mercado acessível no futuro. Em curto e médio prazo, a movimentação russa visa criar uma zona de influência política e, consequentemente, apoio nos organismos internacionais. As nuances dessas movimentações podem ser vistas concretamente a partir da situação de países como Somália, Sudão, Burkina Faso, Mali e Níger, que enfrentando graves crises alimentares são extremamente dependentes do referido mercado de grãos, encabeçado por Rússia e Ucrânia.
Nesse sentido, não é à toa que, somada a citada atuação do grupo Wagner, a Rússia seja exaltada por determinados setores da sociedade malinesa, burkinabé e nigerina em protestos e mobilizações de massas, que ressaltam as medidas de auxílio promovidas pelo Kremlin na esteira do crescente sentimento antifrancês e antiocidental. Longe de expressar, porém, uma ingenuidade das massas africanas, o apoio a Rússia e imagem positiva deste país sustentada na região do Sahel é resultado da convergência de diversos fatores complexos, do fornecimento de armas para o combate aos grupos fundamentalistas à alternativa ao isolamento frente a outros governos neocoloniais na CEDEAO e em todo continente africano, passando pelo fato da Rússia não ser, historicamente, uma potência colonial, levando até mesmo em consideração o papel desempenhado pela União Soviética nas lutas de libertação, que ainda vive na memória dos africanos.
Especificamente em Burkina Faso este último ponto está mais latente na memória da população, já que Blaise Campaoré foi condenado a prisão perpétua em 2022 pela cumplicidade no assassinato de Sankara, um processo que contou com participação popular e deu novas motivações aos movimento de resgate da figura e da influência da liderança marxista-leninista.
O apoio demonstrado à Rússia não é, porém, inconteste. Diferentes movimentos sociais, em especial na República Centro-Africana, onde ocorre a extração de diamantes por parte do Grupo Wagner, mostram certa preocupação com a crescente presença russa, temendo que este governo sustente as mesmas estruturas neocoloniais do ocidente.
No seguimento dos acordos militares entre Níger, Mali e Burkina Faso, foi firmada a criação da Aliança dos Estados do Sahel (AES) em setembro de 2023, acordando o uso das forças armadas frente a possíveis atentados a soberania dos países envolvidos e buscando uma cooperação, principalmente no combate aos grupos fundamentalistas, em clara resposta às ameaças da CEDEAO. A saída deste organismo foi comemorada por manifestantes malineses em Bamako, capital do país, no dia 1º de fevereiro. Centenas lotaram as ruas com cartazes contrários a CEDEAO e favoráveis a AES. O descontentamento tem uma de suas origens no histórico intervencionista do organismo, materializado no Grupo de Monitoramento da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOMOG na sigla em inglês). Nas últimas décadas, Serra Leoa, Togo, Libéria e outros países foram alvos de intervenções visando apaziguar crises políticas ou restaurar o poder a favor de diferentes setores da burguesia.
Tanto União Europeia quanto EUA observam a situação no continente temendo a perda de influência e suas fontes de lucro. Grandes empresários estadunidenses e franceses veem com preocupação a situação do Níger, sétimo maior produtor de urânio do mundo.
Além da presença dos EUA e da França, Níger e outros países da África Ocidental contam cada vez mais com a presença do capital chinês em diversos setores. Longe de representar uma continuidade da cooperação estabelecida no século passado, pautada nos valores da Revolução de 1949 e no apoio diplomático e material aos movimentos de libertação, a presença da China no continente africano hoje é fruto da sua política interna de desenvolvimento estabelecida desde o governo de Deng Xiaoping. Nas últimas décadas, priorizando a modernização da sua indústria e frente a determinadas exigências do crescimento econômico, a China tem avançado numa política de importação de matérias primas, em especial relacionadas a geração de energia. Como as políticas de importação são feitas a partir de empresas estatais chinesas, as negociações com o continente africanos não tem como principal motivação o lucro, o que permite maiores riscos e até empreendimento deficitários, encarados como apostas. Com isso, não propondo contrapartidas, como o FMI e o Banco Mundial, e facilitando o acesso ao crédito com juros baixos, as estatais chinesas penetraram em diferentes regiões do continente africano. É o caso da China National Nuclear Corporation e da China National Petroleum Company, que exploram respectivamente urânio e petróleo no Níger.
Nesses termos, uma possível intervenção da CEDEAO fez com que o China Gezhouba Group suspendesse a construção da barragem de Kandadji, fundamental para o aumento do fornecimento elétrico no Níger. Outras empresas nos setores do urânio e petróleo, no entanto, não manifestaram qualquer intenção de verem prejudicadas suas atividades em função do golpe.
Em relação a classe trabalhadora no Níger, Burkina Faso e Mali, há a esperança que os grupos que ascenderam ao poder, vindos, no caso do Mali e de Burkina Faso de setores da pequena-burguesia e de pequenos proprietários de terras, e do Niger de grupos de coronéis, tragam estabilidade e reforcem a segurança nacional, resolvendo conflitos internos e a crise econômica. Há ainda uma incógnita, porém, em como reagirão estes governos frente a repressão de décadas a organizações sindicais e partidárias que se colocam em oposição a burguesia africana. O discurso supostamente pan-africano das lideranças que ascenderam nos últimos anos é, nesse sentido, contestado frente a uma disputa deste movimento que possui raízes anticapitalistas, mas que foi ao longo dos anos vulgarizado e esvaziado em pró do neocolonialismo e da influência cultural francesa e sua ideologia paternalista de integração ultramarina.
O discurso de Traoré, trazendo à tona a retórica de Thomas Sankara sobre a soberania nacional e alimentar, acaba chamando atenção para desertificação no país, que causou a diminuição da quantidade de terras aráveis. A emergência climática é, em todo continente africano, grande ponto de inflexão para os governos nos últimos anos. Além de Burkina Faso, o Níger também enfrenta severos problemas com abastecimento de água, devido em grande parte ao recuo do Lago Chade, um desastre climático de grandes proporções, fato que ocasionou a nacionalização do serviço, antes nas mãos do capital francês.
Mais do que um jogo diplomático casual, a saída da CEDEAO e as recentes movimentações na África Ocidental refletem os diversos atritos ocorridos em âmbito internacional com mais intensidade desde a deflagração da Guerra na Ucrânia e dos conflitos entre as forças de resistência na Palestina e “Israel”.
A retórica russa e chinesa reforça, no geral, a ideia do fortalecimento de uma ordem “multipolar”, argumento que consta em pronunciamento oficial do Kremlin após a Cúpula Rússia-África. Num contexto que também inclui os BRICS e suas movimentações, buscando uma alternativa a hegemonia estadunidense, a conjuntura histórica de dependência africana pouco parece ganhar um horizonte de superação com a manutenção da exploração de seus recursos e fuga de capitais, independente da autonomia política frente à antiga metrópole.
A China, que preza pela não intervenção nos países que se relaciona e busca criar uma nova rede de infraestruturas ao redor do globo, nada oferece de concreto à classe trabalhadora burkinabé, nigerina e malinesa em sua luta cotidiana contra o neocolonialismo, mantendo-a refém das decisões políticas de suas respectivas burguesias e seus representantes nas forças armadas, instituições que, em sua maioria, são herdeiras das forças repressivas coloniais, especialmente na África Ocidental.
No caso da burguesia, vale observar que à frente dos investimentos chineses, esta classe promove e promoverá a defesa de seus interesses e, portanto, pouco das vantagens angariadas pelo capital chinês se transformam em políticas públicas e infraestrutura que possam garantir um processo de politização e organização das massas. Além disso, as lideranças militares não se sustentariam se, em certa medida, não estivessem apoiadas sobre as burguesias nacionais ou determinada parcela destas.
Em recente pronunciamento, o embaixador chinês no Níger, Jiang Feng, anunciou seu papel de mediação na crise política, visando a estabilidade, evitando uma intervenção que poderia minar a atividade extrativa chinesa. Esse episódio é um dos que evidencia que o fundo supostamente progressista e diferenciado do capital chinês é pouco relevante para uma superação do capitalismo em África.
Resta saber qual será, frente a criação de uma possível federação entre Níger, Mali e Burkina Faso, discutida nos últimos meses de 2023, a reação do capital francês na região da África Ocidental e o peso desempenhado pela presença militar russa; se será possível ao capital chinês ocupar os espaços vagos ou se os governos locais manterão o caráter nacionalista sustentado em discursos e posicionamento públicos. E nesse contexto, cabe perguntar qual será o nível de abertura política para as organizações proletária se desenvolverem e tomarem as rédeas de um consequente processo de libertação.