Não há “Clima de Futuro” sem combate ao retrocesso
Há um desinvestimento massivo nas áreas sociais, deixando uma demanda imensa sem ser atendida. Essa demanda se torna um mercado para investimentos privados abocanharem e oferecerem um serviço de má qualidade, operado na lógica do lucro.
Artigo de opinião por Gabriel Tavares (Diretor de Universidades Públicas da UNE e militante da UJC)
No final do ano passado, em seu Seminário de Gestão, a União Nacional dos Estudantes definiu, como sua principal atividade política para 2024, a Caravana da UNE. A análise apresentada ali era de que, diante do governo Lula-Alckmin, haveria mais espaço para reivindicações e uma correlação de forças positiva para reformas. O mote “Clima de Futuro” expressaria o espírito da Caravana, que formularia eixos centrais para uma Reforma Universitária.
Para nós, comunistas, a discussão programática é muito relevante. Entendemos que, através de um programa de universidade e educação, podemos organizar a luta de forma unificada e propositiva, superando o ciclo de lutas defensivas, onde apenas conseguíamos lutar “contra algo”. Evidentemente, esse programa não paira no abstrato e deve estar profundamente vinculado com as atuais lutas no setor educacional brasileiro, articulando as particularidades de cada instituição em torno de um programa comum.
Não é possível pensar em uma reforma de caráter progressivo no ensino superior brasileiro sem compreender o grave quadro que as universidades públicas brasileiras hoje se encontram, seja em relação ao financiamento direto, seja em relação ao salário de seus servidores. Indo direto ao ponto, as universidades federais recebem hoje R$2,5 bilhões a menos do que recebiam no governo golpista e neoliberal de Michel Temer. O corte de gastos acompanha o salário de docentes e servidores técnico-administrativos, que perderam 22% e 34% dos seus salários com a inflação. O governo propõe 0% esse ano, 9% em 2025 e 3,5% em 2026.
Não existe universidade sem estrutura e sem seus trabalhadores. A recomposição orçamentária e salarial precede qualquer tipo de Reforma Universitária pois dizem respeito a existência e funcionamento mínimos destas instituições.
A grande contradição é que o atendimento dessas justas e necessárias reivindicações se contrapõe com a política econômica defendida pelo Ministério da Fazenda, de Fernando Haddad. O “Arcabouço Fiscal” (eufemismo para Novo Teto de Gastos) tem como objetivo a garantia do superávit primário, reduzindo os gastos públicos ao máximo. Para conseguir tal proeza, se articula a retirada dos pisos constitucionais para saúde e educação. Enquanto observamos a retirada do financiamento dos serviços públicos, o decreto 11.964 permite o financiamento público de parcerias público-privadas, abrindo espaço para a exploração privada dos serviços públicos, como educação, saúde, segurança pública, saneamento básico. Caso não tenha ficado claro o significado do processo, aqui resumo: há um desinvestimento massivo nas áreas sociais, deixando uma demanda imensa sem ser atendida. Essa demanda se torna um mercado para investimentos privados abocanharem e oferecerem um serviço de má qualidade, operado na lógica do lucro.
É imperativo, portanto, a todos os movimentos e entidades comprometidos com a educação pública em nosso país, que busquem não só, de imediato, a recomposição reivindicada nas mobilizações de professores e servidores, mas também a derrubada da política econômica neoliberal dos governos anteriores, mantida e aprofundada por Haddad e Lula. Só assim será possível romper com o modelo excludente e elitista do ensino superior e construir uma universidade pautada nas demandas e necessidades da classe trabalhadora brasileira, a Universidade Popular.
Um dos pontos-chave que propomos nesse sentido é o fim do vestibular, que traduzimos como a ampliação do acesso ao ensino superior público e gratuito para todo estudante que sai do ensino médio e queira seguir os estudos. De imediato, os dados alarmantes do Censo da Educação Superior de 2022 nos revelam que, em 2022, mais de 870 mil vagas foram oferecidas nas universidades públicas, porém apenas 525 mil foram ocupadas. Isso significa que 345 mil vagas existentesficaram ociosas, privando milhares de jovens do acesso à educação superior. É urgente garantir que todas as vagas sejam preenchidas e que sejam criadas mais oportunidades para aqueles que desejam ingressar na universidade.
Mas, mais do que isso, o fim do vestibular é a garantia que não exista mais um filtro social impedindo a juventude trabalhadora, em especial negra e periférica, de acessar e frequentar a universidade. Na prática, é garantir que os dois milhões de jovens que saem das escolas todos os anos tenham uma vaga em uma universidade. Tal número pode parecer inalcançável, mas se olharmos para países da América Latina, de menor peso econômico, e que não possuem esse sistema, a proporção de estudantes no ensino superior público é muito maior, mostrando que tal medida é possível. Enquanto no Brasil apenas 1% da população está no ensino superior público, países como Argentina e Cuba apresentam proporções muito maiores, chegando a 3% e 5%, respectivamente.
A desigualdade na qualidade do ensino básico, acentuada pelo Novo Ensino Médio, é uma realidade que não pode ser descartada sob hipótese alguma. Para os setores que escondem o seu elitismo “argumentando” que os estudantes não estariam preparados para a universidade, defendemos a existência de ciclos básicos que fossem capazes de auxiliar no nivelamento acadêmico das pessoas ali presentes. Posteriormente, a ampliação de vagas nas universidades públicas poderia formar profissionais mais preparados para trabalhar na educação básica, elevando o seu nível.
Outro aspecto crucial a ser considerado é a questão da permanência estudantil. Segundo o Censo da Educação Superior de 2022, em média, 58% dos estudantes desistem dos seus cursos. Ainda que os dados não sistematizem as razões da evasão, é possível considerar que grande parte delas dizem respeito à dificuldade de se manter na universidade devido à falta de assistência financeira e de condições adequadas de moradia e alimentação. São famosos e comuns os casos onde estudantes dividem os estudos com jornadas duplas e triplas de trabalho, sem remuneração adequada. Ou de moradias estudantis superlotadas, com problemas estruturais e higiênicos. Ou de larvas e pequenos objetos encontrados em refeições servidas em restaurantes universitários terceirizados.
Por um lado, isso significa que é necessário o financiamento para manutenção, qualificação e ampliação da estrutura de permanência como restaurantes universitários, creches, moradias, psicólogos, etc. Por outro, é preciso reconhecer que as bolsas de assistência hoje substituem essas políticas e colocam os estudantes em uma disputa sobre “quem tem a pior condição de vida” para merecer a bolsa. Uma meritocracia da miséria. A universalização dessas bolsas, em valores dignos, garantiria a plena dedicação daquele ou daquela estudante aos seus estudos, visando a melhor capacitação na área e impedindo que busque um trabalho precário, distante de sua área de formação, apenas para subsistir, enquanto têm dificuldades em acompanhar seu curso de forma qualificada. Evidente que o vínculo com o mundo do trabalho já deve ser realizado dentro da universidade, mas através da pesquisa científica e de estágios remunerados, ligados com a área de formação.
Além disso, é preciso repensar o papel da universidade na produção de ciência e tecnologia. A universidade burguesa, da forma como conhecemos, privilegia, através de pesquisas privadas, os interesses corporativos e o lucro das empresas. O diploma, hoje, serve como forma de ascensão no mercado de trabalho, garantindo melhores salários ou posições de poder. A meritocracia e o individualismo são predominantes. Tudo isso, sabemos, é incapaz de responder aos problemas sociais enfrentados pela população. Não só é incapaz, como é responsável por eles. Não serão os grandes monopólios que solucionarão as grandes epidemias, a fome, o déficit habitacional, a ausência de saneamento básico. O acesso individual ao ensino superior pode até tirar indivíduos da pobreza, mas ela continuará existindo. Somente através da reformulação do modelo da universidade, direcionada ao enfrentamento das mazelas que assombram a classe trabalhadora, que ela se tornará ferramenta essencial para a emancipação humana.
Finalmente, não podemos mais deixar de lado a discussão sobre o emprego. São muitas barreiras desde o acesso até a formatura. Mesmo assim, quando finalmente se obtém o diploma, a juventude trabalhadora brasileira encontra outro problema. A realidade hoje é que apenas a minoria consegue trabalho na área que se formou, enquanto a maioria sofre com o desemprego, o trabalho precário ou acabam indo para outras áreas. O movimento estudantil deve se somar às reivindicações pela redução da jornada de trabalho - como ferramenta para melhores condições de vida e ampliação de vagas de emprego; pela reindustrialização do país - compreendendo que o desenvolvimento de uma cadeia produtiva é uma forma de ampliar vagas de empregos em diversas áreas; e pela retomada e ampliação dos concursos públicos - visando qualificar os serviços públicos e romper com a lógica privatista de terceirização. Essas medidas representam não só uma melhoria na realidade dos jovens trabalhadores que se formam hoje, mas também avanços significativos para toda a classe trabalhadora
A proposta que levamos à Caravana da UNE está em aberto. Convidamos as organizações políticas de juventude e as diversas entidades estudantis a discutirem sobre esse tema e apresentarem suas convergências e discordâncias conosco. Mas entendemos que uma Reforma Universitária que atenda às necessidades da classe trabalhadora precisa refletir criticamente sobre os limites impostos pela ideologia e política neoliberal que corrói os serviços públicos e contamina até mesmo as organizações de esquerda.
Se lamentamos sobre cada estudante que não consegue custear sua inscrição no ENEM. Que desiste da matrícula por não ter moradia na cidade da universidade. Que larga o curso para ter que trabalhar com bicos. Que tira sua própria vida. Que sai da universidade endividado. Que não consegue trabalhar. Se lamentamos sobre a realidade da classe trabalhadora, é preciso reconhecer que a responsabilidade sobre o sofrimento é do capitalismo dependente e seu modelo neoliberal, que larga os indivíduos a sua própria sorte em uma competição pela vida ou morte. A Universidade Popular é justamente a universidade que não cabe nesse sistema que se interessa apenas pelo lucro. É uma bandeira que orienta a nossa luta por transformações no modelo de ensino superior e em toda a sociedade. É a luta pelo socialismo.