'Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural: uma crítica da autocrítica' (Gabriel Tavares)

É muito preocupante observar que existe uma decisão aparentemente já tomada, que vai se ramificando e se estruturando aos poucos, até que se ratifique congressualmente, principalmente sobre um tema tão caro como a estruturação e existência da UJC.

'Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural: uma crítica da autocrítica' (Gabriel Tavares)
"É evidente que, nessa profunda criticidade sobre nossos próprios erros e limites, não podemos “jogar o bebê fora junto com a água do banho” e negar toda a história, símbolos e desenvolvimento ideológico do movimento comunista brasileiro, pois foi com essas bases que, bem ou mal, chegamos até aqui. Não faz sentido, no meu entendimento, abraçar discursos da “teoria da comunicação”, do “fim da história” e negar os erros e acertos dos comunistas no Brasil ao longo de 100 anos de luta para pensar em possíveis novos nomes e símbolos de um Partido Comunista em nosso país."

Por Gabriel Tavares para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.

Não jogar fora o bebê com a água do banho

As Tribunas de Debates, inauguradas como um primeiro passo na superação do monolitismo ideológico e restrição dos debates políticos do velho PCB, evidenciaram a variedade (e a necessidade) de formulações de nossa militância, que mobilizada no “espírito brechtiano” de “não aceitar o que é de hábito como força natural” vem desconfiando, examinando e buscando transformar profundamente tudo aquilo que pareceria impossível de mudar.

Um esforço louvável, que vem contribuindo significativamente para o desenvolvimento da consciência dos comunistas brasileiros, através de reflexões importantes sobre os mais diversos temas e criticando tudo aquilo entendido como errado em nosso movimento.

É evidente que, nessa profunda criticidade sobre nossos próprios erros e limites, não podemos “jogar o bebê fora junto com a água do banho” e negar toda a história, símbolos e desenvolvimento ideológico do movimento comunista brasileiro, pois foi com essas bases que, bem ou mal, chegamos até aqui. Não faz sentido, no meu entendimento, abraçar discursos da “teoria da comunicação”, do “fim da história” e negar os erros e acertos dos comunistas no Brasil ao longo de 100 anos de luta para pensar em possíveis novos nomes e símbolos de um Partido Comunista em nosso país.

Mas a presente tribuna não é sobre símbolos e nomes. Mas sobre outro movimento que, na legítima busca por observar limites em nossa atuação e solucioná-los, acaba dando respostas erradas a problemas reais e “joga fora o bebê com a água do banho”. Vejamos.

O problema da sobrecarga

O surgimento do Movimento em Defesa da Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista Brasileiro representou uma cisão no velho PCB, levando consigo boa parte da militância, daqueles e daquelas que não viam mais aquele instrumento como capaz de realizar as tarefas necessárias para a emancipação da classe trabalhadora. A União da Juventude Comunista foi agente central nesse processo, pois acumulava críticas às “vacilações” em direção ao reformismo do Comitê Central e via sua atuação boicotada pelo mesmo.

Evidentemente, como qualquer processo de cisão, houve uma redução numérica em nossa militância, uma vez que, além dos e das camaradas que decidiram seguir no velho PCB, outros camaradas abriram mão da organização para priorizar outros aspectos da vida. Isso levou boa parte dos dirigentes da juventude a acumularem funções tanto no partido, quanto na juventude, gerando alguns problemas organizativos. Uma camarada, por exemplo, estava em sua célula de base, na CRUJC, no Comitê Regional Provisório do PCB-RR, na CNUJC e no Comitê Nacional Provisório do PCB-RR. Uma tarefa hercúlea e, consequentemente, exaustiva.

Diante da impossibilidade humana de tocar um trabalho de qualidade com esse acúmulo de funções, diversos comitês e coordenações intermediárias estão sendo unificadas. Ainda que, politicamente, até faça sentido, um trabalho unitário entre UJC e PCB-RR no tocante a AgitProp e a finanças, por exemplo, e a importância de um planejamento político comum, a argumentação em torno da decisão se dá de dentro pra fora, isto é, a partir das demandas dos membros do organismo de conduzirem os trabalhos, e não vinculada a um horizonte estratégico que beneficiasse nossa inserção entre as massas.

A questão puramente “organizativa” não me convence. Se existe um problema no acúmulo de tarefas, que isso seja resolvido de forma científica e coordenada, com a aposentadoria dos quadros da juventude que estão à frente da Reconstrução Revolucionária, bem como a cooptação de novos e potenciais quadros para as direções da UJC, mesmo que eles ainda não estejam tão prontos quanto os atuais que dirigem o PCB-RR e a UJC em tantas e diversas instâncias. Não vejo que isso seja um problema, uma vez que enquanto escola de formação de quadros, é pressuposto que há uma margem maior para erros e dificuldades, cabendo ao Partido e instâncias superiores auxiliarem nesse processo. Não será “jogando o bebê fora com a água do banho”, ou seja, começando do zero uma série de práticas, que vamos resolver problemas organizativos e seguir com a forte e crescente inserção na juventude em todos os cantos do país.

Além disso, a forma como ocorreu esse processo de unificação é, para mim, nebulosa. Se em outubro surgem as primeiras propostas de total incorporação da UJC ao Partido, hoje já vemos as diferentes CRs espalhadas pelo Brasil unificando as estruturas. É claro que os estados podem ter realizado o debate a partir de seus próprios problemas ou obtido informações sobre diferentes realidades e resoluções por meio de contatos próximos de outras regiões. No entanto, a forma como as coisas se encaminham parece indicar um direcionamento das instâncias nacionais para os diferentes estados. Não à toa, o §21 das Resoluções de Organização em nosso Caderno de Teses defende exatamente isso: a unificação das instâncias de direção sob únicas direções intermediárias e nacionais, com comissões de juventude responsáveis pelo trabalho de juventude. Não me parece comum que pessoas diferentes, em locais diferentes, cheguem às mesmas conclusões organizativas espontaneamente, ainda que sejam alinhadas ideologicamente.

É muito preocupante observar que existe uma decisão aparentemente já tomada, que vai se ramificando e se estruturando aos poucos, até que se ratifique congressualmente, principalmente sobre um tema tão caro como a estruturação e existência da UJC.

Tal medida, ao meu ver, inclusive deu novas caras ao federalismo presente em nossa organização e tão criticado no Manifesto em Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB. De fato, estamos em um período de transição, com uma proposta em pauta sobre a formação de União de Comitês Locais que enfraqueceria o poder das instâncias intermediárias e permitiria maior fluxo de comunicação entre Comitês Locais e Comitê Central. No entanto, existe hoje uma miríade de formas organizativas nos estados, com diferentes instâncias criadas a partir dos planejamentos e realidades estaduais, funcionando cada qual a sua forma. Isso impacta diretamente no trabalho de juventude. Em alguns estados onde houve a unificação, existe uma assistência da juventude e outra do partido, mas não está bem definido qual o papel de cada uma, bem como não está claro qual o papel de cada membro dos CRs em relação às tarefas de juventude. Um exemplo mais prático dessa confusão é que não ficou definida a política de repasses financeiros para a Coordenação Nacional da UJC, uma vez que as antigas Coordenações Estaduais foram fundidas com os Comitês Regionais e devem repassar parte de suas finanças ao Comitê Nacional Provisório.

Um ciclo vicioso

Nesse mesmo período, diante do já apresentado “espírito brechtiano” de desconfiança e criticidade, bem como as diversas e constantes mudanças organizativas e reestruturações do trabalho, se paralisam trabalhos políticos importantes para debatermos formas organizativas. Vejam, não confundam com o argumento tarefista de que “o debate atrapalha o trabalho prático”. A crítica é fundamental, mas ela só funciona quando em movimento, interagindo com o real, e não pairando apenas no campo da abstração. Antes mesmo de experimentarmos, já há uma nova proposta de frente prioritária e um modo de nos organizarmos adequadamente, que são superiores aos anteriores. Infelizmente, não existe a melhor formulação, capaz de dar conta de todas as nossas limitações e nos guiar rapidamente em direção aos nossos objetivos táticos e estratégicos. Justamente porque, pela dinâmica da luta de classes, devemos ter a máxima flexibilidade possível para definir nossas táticas e não nos prendermos em uma temporária formulação ideal.

É difícil catalogar e definir quais discussões são válidas e necessárias e quais são - na falta de palavra melhor - mera masturbação. Toda discussão possui sua validade, mas, no ritmo que observamos em alguns espaços, devemos nos questionar sobre qual o real impacto dessas discussões em nosso escopo de atuação ou se elas deveriam ser alteradas para outra atividade com maior saldo político-organizativo.

São muitas as figuras de linguagem que descrevem esse processo. O cachorro correndo em volta do próprio rabo. Um eterno recomeço. Caminhando em círculos. Todas elas indicam que não saímos do lugar, o que é bastante prejudicial para um partido que busca a revolução social, e não só de suas estruturas internas.

Entre as consequências dessa paralisia está o afastamento e desligamento de militantes. Ainda que existam infinitas e possíveis divergências políticas e questões pessoais, é fato que, com o distanciamento de trabalhos políticos e uma constante discussão ensimesmada, os afetos que mobilizam a luta revolucionária, amassados por uma tonelada de problemas de diversas ordens e profundidades que orbitam por nossas cabeças, vão lentamente se apagando.

Como uma bola de neve, os afastamentos e desligamentos afetam o desenvolvimento daquela nova organização dos trabalhos, paralisando os planejamentos e a atuação prática. Iniciado o processo de rediscussão e reorganização, mais militantes se afastam e impedem o novíssimo plano de ação de dar certo, sucessivamente. Como encerrar esse ciclo?

“Conservar” estruturas estabelecidas para um Partido revolucionário

Posto tudo isso, reforço a importância da crítica sobre “tudo que parece natural”. Minha ponderação é que nesse ensejo, além das vacilações oportunistas do Comitê Central do velho PCB, estamos criticando e descartando uma série de acúmulos históricos e práticos, seja da organização do Partido Comunista em 1922, seja de nossos últimos congressos. Em alguns casos, já descartamos as deliberações de reuniões passadas, sem sequer uma pauta de balanço. Mas 101 anos não se alterarão em um único congresso, por mais qualitativo que ele seja.

Uma das principais mudanças propostas para o XVII Congresso que se avizinha, é a indiferenciação organizativa entre UJC e PCB-RR, que poderão ser dirigidos pela mesma instância. Uma mudança radical para uma organização que vinha expandindo sua influência na juventude, ainda que com insuficiências e objetivos a serem cumpridos.

Já expus, em uma tribuna com o camarada Machado e na Plenária Estadual de São Paulo, os motivos que me fazem ser contra a unificação das direções e a consequente dissolução da UJC. Em resumo, entendo que a UJC é:

  1. Uma escola de quadros para o Partido (isso não significa que camaradas não possam se formar durante sua trajetória no partido, mesmo sem ter tido experiência prévia de militância, mas a juventude oxigena o Partido com militantes já experientes e previamente preparados, com condições de dirigir o Partido e os movimentos de massa - como já ocorre atualmente);
  2. Uma organização que tem maior possibilidade para experimentar metodologias e ações, contribuindo com as formulações partidárias, com menores prejuízos políticos em caso de eventuais erros;
  3. Ferramenta de intervenção nas lutas políticas específicas da juventude trabalhadora brasileira, que formulando a partir das especificidades da juventude, vai ter melhores condições de inserir-se entre ela e organizá-la;
  4. Parte da Reconstrução Revolucionária, com plenos direitos de participação em espaços deliberativos e tarefas partidárias, mas garantida sua especificidade e autonomia.

A alteração da relação entre juventude e Partido inviabiliza os pontos citados acima, justamente por não distinguir as tarefas de cada ferramenta em sua respectiva frente de trabalho. Pode, por um lado, levar à nova sobrecarga dos dirigentes, que acumulam pautas tanto do Partido quanto da juventude. Por outro, a existência de apenas uma comissão de juventude - e não uma organização, com suas próprias estruturas - impede a especialização dos quadros, já que os responsáveis da comissão tocariam as tarefas “de juventude” e não de “finanças”, “agitprop”, “relações internacionais” e por aí vai. Preocupante, uma vez que grandes quadros dessas áreas se formaram justamente enquanto dirigentes da juventude.

Cabe ainda lembrar que, foi a autonomia organizativa da União da Juventude Comunista que permitiu a preservação de grande parte de nossa unidade em defesa da realização do XVII Congresso, pois nas fileiras da juventude que circulavam e se amadureceram as críticas às vacilações oportunistas do Comitê Central.

Sem dúvidas que precisamos qualificar o acompanhamento das assistências, mas acredito que a manutenção das estruturas organizativas paralelas que temos entre UJC e PCB-RR, com as respectivas assistências (ou Secretarias de Juventude) garantem a autonomia da juventude, ao mesmo tempo que mantém - e devem aprofundar - a unidade entre as organizações.

Conclusão

Além de me somar aos camaradas que questionam a forma como essa unificação foi pautada e debatida em alguns espaços, venho aqui propor uma completa alteração do parágrafo 21 de nossas Resoluções de Organização do Caderno de Teses, de forma a contemplar os pontos que apontei ao longo do texto.

§21 A União da Juventude Comunista é a escola de quadros e organização de juventude ligada programaticamente ao Partido Comunista Brasileiro - Reconstrução Revolucionária. Atua, através de seus núcleos de base, nos espaços onde a juventude trabalhadora está presente, como nas escolas, universidades e movimentos culturais. Possui plenos direitos de participação nos espaços deliberativos do Partido, como Congressos e Conferências, mas possui autonomia em relação à sua direção, eleita em Congressos próprios. O Partido deverá indicar Secretários de Juventude nos diferentes níveis para acompanhar o trabalho de juventude e as Coordenações da UJC poderão indicar participantes para as reuniões dos Comitês do Partido.

Essa proposta de resolução, sem dúvidas precisa de aprimoramentos, mas é um esforço aberto à contribuições para que não “joguemos o bebê (ou a juventude) fora com a água do banho” e percamos um de nossos principais pilares de atuação e inserção no movimento de massas do Brasil, que é a União da Juventude Comunista.