'Nacionalismo e Internacionalismo' (Pedro Alcântara)

Almejamos a construção de uma linha de esquerda verdadeiramente geral e não ocasional, que se ligue a si mesma através de fases e desenvolvimentos de situações distintas no tempo e diversas, encarando-as todas num bom terreno revolucionário.

'Nacionalismo e Internacionalismo' (Pedro Alcântara)

Por Pedro Alcântara para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Num vídeo recente intitulado “Uma teoria de socialismo contra o Brasil”, Jones Manoel defende que o militante comunista deve ser o “maior nacionalista” dentre todos os militantes, que, para fazer uma revolução “nacional em sua forma”, como aponta o Manifesto Comunista, seria preciso entender profundamente a história do país em que está inserido. Devo admitir que há algumas partículas de verdade nessa fala, mas elas se encontram enterradas tão fundo num invólucro de distorções e inverdades que chega a ser difícil vê-las. Antes de destrinchar o argumento central do vídeo em si, tomarei a liberdade de analisar uma fala específica, proferida logo no final do vídeo, que parece funcionar de chave para o entendimento das posições de Jones.

Depois de argumentar mais de 25 minutos o seu ponto, Jones fecha o vídeo com uma fala que encerra, em si, todos os problemas de sua posição. Diz ele: “Tudo, tudo que você lê, mas é tudo mesmo, inclusive os clássicos do marxismo, você tem que se perguntar: em que essa teoria, esse conceito, essa formulação é útil para entender a minha realidade nacional, que é onde eu atuo, faço política e pretendo conquistar o poder político, pretendo fazer uma revolução”.

Theodor Adorno, já em 1969, em seu “Notas Marginais Sobre Teoria e Práxis”, respondia ao pragmatismo do qual Jones é inegavelmente herdeiro. O prático, iludido por sua práxis ilusória, que promete uma saída do fechamento, mas é, em si, fechada, não vê que “ao proclamar como critério de conhecimento a utilidade prática deste, compromete-o com a situação existente; pois de nenhum outro modo pode demonstrar-se o seu efeito prático, útil, do conhecimento”. O que isso quer dizer? Que a teoria, quando só se torna “válida” ao provar sua utilidade no aqui e agora, perde a capacidade de escapar à imanência do sistema em que nos encontramos. Por isso Jones demonstra mais e mais vezes incapaz de sequer imaginar a superação das formas da família, do Estado, da nação: seu pensamento é limitado à reformulação do sistema capitalista. Além disso, vale lembrar que “pensar é um agir, teoria é uma forma de práxis; somente a ideologia da pureza do pensamento mistifica este ponto”.

Voltando à questão principal que foi colocada, talvez devesse começar com o que há de verdade no ponto de Jones. Sim, o comunista, se pretende conquistar o poder, deve conhecer profundamente a formação do capitalismo em seu país, para daí tirar as conclusões necessárias para a formulação da tática revolucionária. A respeito disso, Amadeo Bordiga, em discurso no Executivo Ampliado da Internacional Comunista, em 1926, já apontava como, apesar da Revolução Russa oferecer uma comprovação teórica da doutrina marxista, o exercício de tentar tirar dela lições práticas, para os países da Internacional, era estéril. Sendo assim, Jones acerta ao dizer que é necessário entender certas particularidades de cada país, como fez Lênin em seu O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia (gostaria de voltar mais tarde a esse livro), para se fazer a revolução. Mas seus acertos acabam aí.

A argumentação de Jones a favor do dito “nacionalismo revolucionário” é um tanto difusa. Mais de uma vez, tanto numa thread do Twitter, quanto num vídeo de perguntas e respostas, seus argumentos giram em torno de citar vários nomes de revolucionários burgueses, quando não simples oportunistas, como Carlos Prestes, que defendiam um “socialismo nacionalista”. Jones acaba, assim, por a tomar a aparência por essência. “Se esses revolucionários se reivindicam socialistas e nacionalistas, logo a realidade (essa sendo uma extensão do argumento do socialismo real) prova que não há contradição”.

A situação piora quando decide citar Marx, Engels e Lênin como defensores da “questão nacional”. Jones, que indubitavelmente é um profundo conhecedor da obra dos três, não consegue evitar de impor, mais uma vez, a limitação do seu pensamento social-democrata à teoria revolucionária marxista. O que Jones vê como um fim em si mesmo, um estudo ou uma defesa do nacionalismo pela simples razão de ser nacionalista ou resgatar uma suposta tradição nacional, não passa do meio do caminho para os teóricos citados. Explico.

Engels, em uma carta para Marx datada de 1882, diz: “Por isso eu defendo o ponto de vista de que há duas nações da Europa que não só tem o direito, mas o dever de ser nacionalistas antes de se tornar internacionalistas: os irlandeses e os poloneses. Eles são internacionalistas do melhor tipo o quanto mais forem nacionalistas.” Tomada por si só, essa citação parece uma defesa bem clara do nacionalismo, mas é preciso entender a justificativa por trás do pensamento dele. Um pouco antes na carta, Engels argumenta que “um movimento internacional do proletariado só é possível em nações independentes”. Fica claro, então, que Engels defende o nacionalismo de dois povos oprimidos somente pelo seu caráter historicamente progressista. Ou seja, os irlandeses e poloneses só devem ser nacionalistas na medida em que isso acelere a constituição de suas próprias nações e, portanto, possibilite que os trabalhadores desses países finalmente constituam um movimento socialista e internacionalista. O mesmo caso se verifica n’O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia: Lênin explica que, apesar da Rússia ainda se inserir na universalidade do desenvolvimento do capitalismo na Europa, e esse ponto é importante reforçar, aquele estudo tinha sido essencial para o entendimento da composição das classes no seu país. Não existia nenhuma questão que só dissesse respeito ao proletariado russo, mas era necessário um entendimento desse desenvolvimento para passar da forma nacional da revolução para o internacionalismo.

Nesse ponto, fica evidente o stalinismo envergonhado de Jones. Apesar de já ter dito diversas vezes que começou a militância numa linha trotskista (como se isso dissesse qualquer coisa sobre suas posições hoje em dia), Jones é um árduo defensor da teoria do Socialismo em Um Só País. Não de uma forma escancarada, pois Jones é muito mais sofisticado do que o stalinista médio, mas com bem mais sutileza. Jones acredita que, de alguma forma, ao chegar no poder, os desafios que encontra o proletariado de determinado país só dizem respeito a si mesmos. Dessa forma, ele parece defender de que, após uma revolução no Brasil, quando a forma nacional já teria sido abandonada, ainda existiriam questões “essencialmente brasileiras”, assim como Stálin acreditava em questões “essencialmente russas”. No mesmo Executivo Ampliado do discurso aqui citado, Bordiga questionou o secretário-geral do PCUS sobre esse impasse, sugerindo que a ditadura do proletariado instalada na Rússia deveria ser governada por toda a Internacional, não somente o PC russo. Diferente do que Jones acredita, ao pintar a imagem de um proletariado isolado no poder de seu país, todos os desafios encontrados por qualquer ditadura do proletariado dizem respeito ao proletariado internacional e só podem ser resolvidos exatamente no âmbito internacional.

Por fim, gostaria de citar pela última vez Bordiga para destrinchar ainda mais o stalinismo latente no pensamento de Jones. Numa carta para Karl Korsch, diz o comunista italiano:

Tenho, pois, a impressão — e me limito a vagas impressões — de que nas suas formulações táticas, ainda quando são aceitáveis, você concede um valor demasiadamente preponderante às sugestões da situação objetiva, que pode hoje parecer uma volta à esquerda radical. Saiba que, hoje, nós, esquerdistas italianos, somos acusados de negar o exame das situações; e isto não é verdade. Todavia, almejamos a construção de uma linha de esquerda verdadeiramente geral e não ocasional, que se ligue a si mesma através de fases e desenvolvimentos de situações distintas no tempo e diversas, encarando-as todas num bom terreno revolucionário, não certamente ignorando seus caracteres específicos e objetivos.

A crítica não é destinada a Jones, mas poderia muito bem. Uma das principais características do stalinismo (ou o que se convencionou chamar de marxismo-leninismo) é a total falta de princípios, sejam eles de direita, centro ou esquerda. Se assume o que for mais conveniente. Vemos isso nos meandros que traçou a tática da Internacional Comunista nos anos 20 e 30. Jones, no vídeo em questão, demonstra de forma magistral esse “princípio”: não se senta formar uma tradição revolucionária, elencar os princípios do marxismo segundo os quais se analisa uma situação. Jones simplesmente toma o que é aparente, as demandas imediatas, a situação imediata e tenta formular seu “marxismo” a partir disso. O resultado são sugestões bizarras de pautas, como agitar para que Lula aproveite o fim dos contratos de concessão para estatizar de volta alguns setores da economia. Qual seria o interesse de Lula em fazer isso ou o que os comunistas ganhariam dessa agitação quixotesca, só Deus sabe, mas, segundo Jones, “as condições estão aí.”