'Muito além do petróleo e da soja: sobre estratégia política e as favelas na revolução brasileira' (Teylor Lourival)
O movimento de favelas é estratégico para a revolução brasileira, e sustento que a classe trabalhadora revolucionária organizada nas quebradas é a inflexão orgânica a ser feita pelo movimento comunista em direção ao movimento de mulheres, ao movimento negro e ao movimento de cultura.
Por Teylor Lourival para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Encaminhar este debate exigirá um esforço coletivo, de anos a fio, se debruçando e compilando os melhores estudos e sistematizações de dados sobre a formação econômica e social brasileira. Esta tribuna, portanto, pretende socializar algumas perguntas e provocações iniciais que são feitas em diversos espaços, nas instâncias e fora delas, e para as quais temos alguns encaminhamentos, mas que carecem de respostas mais objetivas, científicas e que irão realmente nortear nossa atuação rumo à revolução em nosso país.
No tópico “Reorganizar a classe trabalhadora para a luta classista”, contido no documento “Perfil do proletariado brasileiro”, foram aprovadas pelo XVI Congresso do PCB resoluções estabelecendo nossa tarefa de estruturar células proletárias nas grandes empresas dos grandes centros urbanos, com organização nos setores mais importantes e estratégicos da economia, colocando o proletariado brasileiro, e em especial o seu núcleo central - o operariado fabril -, como o sujeito revolucionário no Brasil.
Com a perspectiva de unir e organizar o proletariado em seus locais de trabalho e moradia, a partir de um trabalho paciente, planejado e perseverante de organização dos/as trabalhadores no interior das fábricas, das instituições financeiras, do comércio, das empresas de serviços e no campo, o documento enseja que do ponto de vista da organização do proletariado em suas entidades de classe, a estratégia de organização do poder popular deve envolver todo o circuito do capital, a produção e a realização, especialmente nos setores estratégicos que tenham capacidade de parar o sistema produtivo e a circulação das mercadorias e serviços na eventualidade de uma greve geral.
Todas estas informações constam a partir da resolução nº 130 do documento citado, e da mesma forma “elucida” de forma esparsa a resolução nº 143:
“Como o Brasil é um país de capitalismo completo, a produção depende de energia e petróleo, dos transportes para levar os/as trabalhadores/as de suas residências às empresas e carregar e distribuir as mercadorias, dos portos para realizar as exportações, da área metalmecânica e construção para a produção de bens à população e dos setores de tecnologia da informação e serviços digitais nos sistemas financeiro e comercial. As entidades sindicais ligadas a estes setores passam a ter uma importância fundamental no circuito global de acumulação. Portanto, nossa organização deve priorizar um conjunto de categorias estratégicas, sem deixar de realizar o trabalho de base onde tivermos efetivamente condições objetivas para atuar.”
A seguir, sem cravar que está realizando uma leitura por ordem de prioridade, mas deixando transparecer sua intenção e sua falta de compreensão objetiva da totalidade e complexidade da realidade brasileira, o XVI delimita quais são efetivamente estas categorias consideradas estratégicas a nível nacional, junto de uma explicação dos critérios de escolha como participação na economia, número de pessoas trabalhadoras, capacidade produtiva e de paralisação da cadeia produtiva, histórico de mobilização da categoria, entre outros. São estes setores, transcritos na ordem em que estão no documento:
- Petróleo, gás e derivados;
- Transporte e logística;
- Setor metalúrgico;
- Setor da construção civil;
- Setor de tecnologia de informação (TI);
- Setor portuário e aeroportuário;
- Setor bancário;
- Setor de telecomunicações
- Setor da educação;
- Setor de saúde;
- Setor de energia;
- Setor de saneamento;
- Setor de serviços;
- Setor da limpeza;
- Trabalho no campo.
Estas resoluções buscam mapear a cadeia produtiva e os setores do capitalismo brasileiro, é verdade, e este trabalho é fundamental para qualquer organização séria, das pelegas às revolucionárias. Em outros pontos o documento aborda a luta por moradia, a luta dos povos indígenas, os movimentos negros e de mulheres, as organizações de juventude, sindicatos e associações, mas para além das questões hierárquicas de “quais setores são mais estratégicos”, que teria tomado dias de congresso para enumerar esta lista - tarefa para a qual sequer temos preparo -, é importante nos atentarmos ao que este trecho não diz.
As pré-teses do XVII Congresso (Extraordinário), por sua vez, na sessão “Sobre o perfil da classe trabalhadora e seus setores estratégicos”, especialmente dos incisos 59 a 62, limpa o terreno a respeito de algumas lacunas que não foram preenchidas no XVI. Transcrevo na íntegra a seguir as cinco pré-teses, e adianto de antemão que não farei nesta tribuna propostas de destaques, resguardando minhas formulações para a etapa de célula, onde poderei elaborá-las com mais qualidade, mas mantendo grifos meus no que considero central e itálico no que considero insuficiente:
§59 Quando afirmamos a existência de “setores estratégicos do proletariado”, nos referimos a outro aspecto dessa desigualdade de inserção econômica: à desigualdade existente entre as condições de organização e influência político-econômica que cada fração distinta do proletariado possui em função de seu próprio posicionamento em setores dinâmicos ou nevrálgicos da economia capitalista, sendo capazes de afetar com suas mobilizações a produção e reprodução capitalista de maneira mais ou menos profunda. Devemos concentrar nossos esforços especialmente na inserção em determinados setores apenas por um motivo: porque na guerra de posições preparatória à ofensiva revolucionária do proletariado, faz-se necessário infiltrar as “fortalezas produtivas” em cujo interior a ação proletária possa influenciar da forma mais decisiva o curso dos eventos. Nesse sentido, elencamos (sem estabelecer nessa lista uma ordem hierárquica):
§60 O setor de transporte (incluído, aqui, o setor portuário e aeroportuário); o setor energético (abrangendo petróleo, gás e derivados); o setor da Tecnologia de Informação, telecomunicações, telemarketing; o setor de saneamento, limpeza, serviços de asseio; a Construção Civil; a saúde; a mineração; os setores dinâmicos da indústria de transformação (papel e celulose, alimentos e bebidas, metalúrgica e química) e o ramo bancário. No campo, devemos centrar nossos maiores esforços na organização do proletariado rural que, em aliança com os pequenos produtores privados do campo (os camponeses pobres), terá a colossal tarefa de expropriar o latifúndio e o agronegócio capitalista brasileiro.
§61 A caracterização de um setor como estratégico não pode se dar pela análise do grau de exploração de uma determinada categoria de trabalhadores. Ele é estabelecido ao verificarmos que nossas atenções devem se voltar a uma camada de trabalhadores por razões estruturais de longo prazo. Isso não nos impede de, eventualmente, em decorrência de razões conjunturais e explosões espontâneas, concentrar esforços na atuação em meio a uma categoria não considerada estratégica.
§62 Assim, definir esses setores como estratégicos significa que nossos planejamentos serão voltados prioritariamente para essas categorias e o trabalho executado compreendendo a necessidade de inserção nelas. Certamente, por meio desse trabalho, outros setores, secundários do ponto de vista estratégico, buscarão nosso Partido e abrir mão da contribuição à luta e organização desses setores seria uma renúncia às nossas tarefas.
Ambos os documentos pincelam a dificuldade de estabelecer prioridades gerais para um país de dimensões continentais, mas há algumas coisas que também não são captadas por este trecho de inserção estratégica do movimento comunista na economia brasileira, ainda que e especialmente porque visa paralisar a produção e o transporte de mercadorias, bem como atravancar a circulação de capital em suas variadas formas a partir da organização sindical das pessoas trabalhadoras nas categorias centrais que compõem a malha do capitalismo no Brasil. Ambos os documentos cometem o mesmo erro: separam mecanicamente os “setores estratégicos da economia brasileira” do “movimento de massas”. Para ambos os documentos, estratégicos são os setores do mundo do trabalho, e o restante - ainda que ressaltem o não-abandono destes - é secundário, mas voltaremos a esta polêmica mais adiante, nesta tribuna e nas próximas décadas.
Por hora, vamos a algumas poucas particularidades locais e provocações para delimitar critérios mais objetivos para a inserção e avanço do movimento comunista “nos setores estratégicos da economia brasileira”.
No primeiro semestre de 2022, o setor portuário movimentou 581 milhões de toneladas de produtos, que chegam aos portos por modais rodoviários e, em menor medida, ferroviários, tendo a China como principal destino internacional. É digna de nota a pobreza da malha rodoviária, ferroviária e aquaviária brasileira, sejam de uso público ou privado, que reproduz a segregação das regiões Norte e Nordeste do país e concentra as formas multimodais de circulação de riquezas no eixo Sul-Sudeste e Centro-Oeste. Atualmente, na matriz de transportes brasileira, o modal rodoviário representa 61,1% do total, o ferroviário 20,7%, o aquaviário 13,6%, o dutoviário 4,2% e o aeroviário 0,4%. A porcentagem rodoviária e ferroviária aumenta significativamente se nos determos ao Sudeste, ao passo que se olharmos para o Arco Norte-Nordeste, o transporte aquaviário é responsável por mais de 50% da circulação de mercadorias, através da malha fluvial que circula intra-estados ou em direção principalmente aos portos de Barcarena (PA), Santarém (PA), Itacoatiara (AM), Santana (AP), no Norte, que têm ganhado proeminência mundial no escoamento de grãos, e Natal (RN), São Gonçalo do Amarante (CE), São Luís (MA), Ipojuca (PE), Salvador (BA) e Maceió (AL), que são referência no escoamento da mineração em solo brasileiro e pan-amazônico.
E o movimento comunista, como fica frente a estas especificidades no setor de transportes de mercadorias, tido como estratégico? Os exemplos podem ser estendidos infinitamente cada vez que nos debruçamos sobre as características objetivas de cada um dos setores estratégicos elencados nas pré-teses e também nas resoluções do XVI Congresso do PCB. Como ficamos na cidade de Parauapebas (PA), que é o município com maior arrecadação do país com mineração, somando R$2,4 bilhões apenas em arrecadação aos cofres públicos via CFEM e têm um dos maiores índices de desigualdade do Brasil? Ou na cidade de Catalão (GO), que tem quase toda sua infraestrutura voltada para mineradoras de capitais chinês e britânico, entre outros, sob a exploração de empresas como a China Molybdenum ou a Anglo American, mas também gira em torno da Universidade Federal de Catalão (UFCAT) e em torno da formação universitária? E nas cidades onde estão as fazendas do Grupo Amaggi, da SLC Agrícola e do Grupo Bom Futuro, que são as três “rainhas dos alqueires” e somam em seus latifúndios mais de um milhão e trezentos mil hectares nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Maranhão, Bahia, Piauí, Paraná e Roraima?
Se estamos a léguas de compreender cientificamente enquanto organização revolucionária as especificidades da economia brasileira, esse desconhecimento se agrava em outros campos. Aqui, camaradas, trago um dos pontos que ensejou a escrita desta tribuna, especialmente concernente às capitais dos estados: as favelas. O Data Favela, produzido a partir do Censo do IBGE de 2022, é o documento mais atual e abrangente, ainda que pontue constantemente sua insuficiência, que mapeou dados de 13.151 - número que dobrou em relação à última década - favelas, comunidades, invasões, ocupações, vilas, palafitas, cortiços e outras formas domiciliares que somam mais de 5 milhões de residências e comportam numa estimativa muito conservadora cerca de 17,1 milhões de pessoas.
Frente à polêmica de estabelecer nossa organização em células por categoria de trabalho ou por local de moradia, que desemboca na errônea separação “mundo do trabalho x movimentos de massa”, travada na plenária municipal do PCB-RR na cidade de São Paulo, sustentei que ao nos inserirmos e avançarmos no movimento de bairros e favelas, não nos deparamos majoritariamente com o “operariado fabril” ou com pessoas trabalhadoras dos setores considerados mais estratégicos para a economia, a não ser uma maioria do setor de serviços, de manutenção, zeladoria e trabalho de cuidado que - acreditem, camaradas - têm plena capacidade de paralisar a circulação de capital.
Estou convencido de que o movimento de favelas é estratégico para a revolução brasileira, e sustento que a classe trabalhadora revolucionária organizada nas quebradas é a inflexão orgânica a ser feita pelo movimento comunista em direção ao movimento de mulheres, ao movimento negro e ao movimento de cultura. A favela - termo abrangente e de escopo em disputa e transformação para designar estes locais de moradia, que tem diferentes nomenclaturas nas diferentes quebradas do país - forma mulheres, especialmente negras, como dirigentes políticas diariamente, insere milhões de pessoas no mundo do trabalho, organiza cooperativas e mutirões, organiza coleta de lixo, improvisa sistemas de esgoto, estrutura redes de saúde e promove os maiores fenômenos culturais do país.
Quando leio o texto de Jones Manoel a respeito dos quilombos como forma político-organizativa construída no seio da resistência, de forma coletiva, não consigo deixar de pensar nas quebradas onde morei - com todas as suas contradições, que não cabem ser exploradas por esta tribuna - como espaço socializado de convívio, cuidado, trabalho e lazer, cuja potencialidade revolucionária deve ser compreendida, apreendida e explorada pelo movimento comunista. As periferias brasileiras são por definição um espaço de resistência e contracultura, de coletividade, de consciência de classe e formação política.
O movimento de bairros e favelas não necessariamente leva aos setores estratégicos da economia brasileira, e nem vice-versa. As demandas do movimento de bairros e favelas são mais similares e nos levam organicamente às das mulheres chefes de família, às demandas de saúde comunitária, de saneamento e distribuição de energia, de moradia e infraestrutura, de repressão policial, guerra às drogas e encarceramento em massa, de violência doméstica, por direito ao transporte e acesso à infraestrutura urbana, por espaços de (con)vivência, lazer e cultura. Alguém tem dúvida ou discordância de que estes movimentos, atualmente ligados majoritariamente ao campo democrático-popular, mas não só, são capitaneados por pessoas negras, em especial mulheres, que se forjam organicamente nos mais tensionados espaços da luta de classes?
O “movimento de bairros e favelas” é um flanco histórico na luta de classes no Brasil. Da revolta da vacina às associações de empregadas domésticas e donas de casa - estas últimas encampadas pelo movimento comunista brasileiro -, passando pelo desenvolvimento das escolas de samba e pelo fechamento constante de avenidas frente ao genocídio da população negra e à repressão policial, são inúmeras as expressões de movimentação política sólida e combativa que vêm destes locais de moradia de diversas camadas da classe trabalhadora.
Classificar o mundo do trabalho - e alguns cortes por setores - como estratégicos, e os “movimentos de massa” como secundários ou meramente táticos é não somente um erro de leitura a respeito da realidade da formação econômico-social brasileira, como também evidencia uma compreensão estreita - que beira o liberalismo - da luta de classes e das diferentes forças que irão golpear a burguesia brasileira [antes e] no processo de expropriação dos meios de produção e consolidação do processo revolucionário.
Querem um exemplo, camaradas, de como uma visão da totalidade da luta de classes tem maior capacidade de resistência aos avanços da burguesia e maior perspectiva para atuação positiva da classe trabalhadora organizada? Em Salvador (BA), a última estação do metrô recentemente inaugurada, Tramo 3, contou com a desapropriação de centenas de moradias no bairro de Campinas do Pirajá para a construção da linha. Quem quiser compreender a onda de desapropriações de moradias em vilas e favelas em São Paulo basta olhar para as expansões das linhas do metrô, que andam de mãos dadas com a especulação imobiliária encarecendo os prédios a serem construídos próximos a estações de metrô. O terreno da Favela do Moinho, no centro da capital paulista, pertence à CPTM, que é vinculada ao Ministério dos Transportes de SP, e privatizar esta linha metroviária significa a desapropriação imediata de todas as famílias. Lá, aliás, frente à proposta do governador Tarcísio de Freitas de transformar o terreno da favela em um pátio de trens, foi onde obtivemos expressiva votação no plebiscito popular contra a privatização. Não é diferente em todas as cidades que rasgam sua geografia em nome do transporte e da logística, como foram as desapropriações de cortiços para abrir as largas avenidas cariocas e emular a belle époque francesa.
Não seria o movimento comunista dirigindo as lutas dos trabalhadores do transporte metroviário e as lutas nas comunidades, capaz de obstruir e barrar o caminho da burguesia da CCR Metrô Bahia e das paulistas Via Mobilidade e Via4, por exemplo? As associações de moradores, entidades culturais, frentes de luta por moradia e outros instrumentos políticos das periferias urbanas, vinculados organicamente aos sindicatos da malha metroviária, tanto das pessoas operadoras de maquinário quanto as pessoas trabalhadoras terceirizadas [serviços de limpeza, segurança, zeladoria e etc], seriam ou não capazes de articular sua luta e exercerem a pressão popular necessária para parir uma greve unificada? Seriam ou não capazes de trancar as maiores avenidas, os principais pontos de circulação, conquistar e convencer os principais operadores políticos da classe trabalhadora para, em unidade, esgarçar a cadeia produtiva nos grandes centros urbanos?
Para cada setor, para cada localidade, para cada pilar central da economia de uma cidade ou de uma região, podemos identificar e caracterizar esses exemplos que devem nortear nossa atuação. O central aqui é nos perguntarmos de Norte a Sul e no país inteiro quais setores temos que organizar, onde e como? Quem é o sujeito histórico da revolução em nosso país, no geral, e de que forma a sua cidade se insere na vanguarda deste processo? Entender a maneira como estes setores e localidades se relacionam com a produção e a reprodução do capital, com as especificidades e contradições que vierem à nossa frente, é uma tarefa central para formular a verdadeira política estratégica da revolução brasileira e suas mediações táticas consequentes para a construção da hegemonia proletária.
É pensando nestas especificidades que volto à necessidade hercúlea daquele estudo que mencionei no primeiro parágrafo desta tribuna. Nosso planejamento político para inserção e desenvolvimento do movimento comunista no Brasil precisam obedecer a critérios delimitados a partir dos nossos interesses revolucionários e a partir do nosso conhecimento da complexidade da classe trabalhadora brasileira, da malha produtiva nacional e regional. Cada Comitê Regional deve despender esforços para conhecer verdadeiramente seu território de atuação, especializar seus organismos de base e tornar nosso planejamento político cada vez mais sólido. Podem acreditar, camaradas, abro fraternalmente este debate porque entendo que ele precisa ser uma das polêmicas do nosso Congresso e porque nunca é demais ressaltar que entender as facetas do capitalismo dependente do Brasil é uma tarefa urgente para o presente e o futuro da nossa organização.