'A militância enquanto espaço de socialização: diálogo com o camarada Zenem Sanchez' (Tribuna de Debates)
Precisamos fazer o esforço de criar novas formas de sociabilidade, a sociabilidade socialista, para que a corrente de reprodução do capitalismo possa ser paulatinamente superada.
Contribuição anônima para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Esse texto é uma reflexão que permeia minha mente desde que pedi meu desligamento da UJC em 2020. Naquela época, minha saúde mental estava debilitada e resolvi que seria melhor me afastar da militância por tempo indeterminado, mas conservava a vontade de voltar a militar um dia. Em 2022, durante um ato, encontrei outro camarada que também estava afastado da militância havia 6 meses. Em conversas com outra camarada militante, descobri que ela também havia se afastado, para cuidar da saúde mental, depois de 6 anos de organização.
Chego em 2023, depois de passar o ano anterior militando fora da UJC, mas ainda somando-me aos atos, ao Cursinho Popular Lima Barreto e à campanha eleitoral de 2022. Minha vontade era de reingressar formalmente nas fileiras, das quais não saí por divergência ideológica, apenas pelo motivo já citado. Fui "re-recrutado" (ironicamente, em tempos de "des-recrutamento") em abril de 2023, mas logo depois vieram à tona as divergências que nos levaram à cisão que hoje existe no PCB.
Tenho acompanhado, na medida do possível, as discussões sobre nossas questões organizativas. Mas o texto do camarada Sanchez foi o que me motivou realmente a escrever essa reflexão. Ele escreve:
"Os comunistas não são seres iluminados fora da classe que carregam a verdade. São integrantes da classe que, no processo da vida na sociedade capitalista e no processo de lutas contra as mazelas cotidianas, compreenderam a possibilidade de ruptura com o atual sistema e resolveram praticar essa possibilidade no seu cotidiano."
O texto do camarada é primoroso, e esta última frase parece atinada com o que tenho pensado nos últimos anos.
Quando se fala de praticar a possibilidade do socialismo no cotidiano, não podemos nos limitar a pensar apenas as tarefas de militância como os objetivos a serem cumpridos. Além de tudo, nossos espaços de militância servem para que nós possamos quebrar as lógicas que são produzidas e reproduzidas no capitalismo. Se a sociedade atual nos compele a produzir e produzir, sem nos importarmos com as consequências dessa produção, o mesmo não pode (ou não deveria) se dar nos nossos espaços organizativos.
O que temos visto ao longo dos debates das últimas semanas (tanto interna quanto externamente), é que a defasagem na questão organizativa leva também a uma defasagem na questão de saúde da militância. É comum ouvir de pessoas das nossas fileiras o quanto estão exaustas, com tarefas acumuladas, ansiosas, deprimidas, sem motivação para continuar militando. Tudo isso leva a afastamentos, desligamentos e distanciamento do projeto revolucionário.
Nossos camaradas estão cansados. Quem diz que não está, provavelmente está mentindo, ou já se acostumou com o ritmo absurdamente opressivo com que levamos nossas vidas concomitantemente com a militância. Esse ritmo é adoecedor, pois é o ritmo do capitalismo. Então eu questiono: que vantagem temos de levar a mesma lógica para dentro de nossos núcleos, células, comitês e partido como um todo?
Isso também é sintoma do caráter artesanal de nossa organização. Uma organização profissionalizada deve ter em mente que um militante comunista não é, nem deve ser, um mártir. Nós estamos juntos pois sabemos que nossa tarefa não pode ser realizada individualmente, somos comunistas organizados porque compreendemos que a construção coletiva é o único caminho para a revolução. E não podemos construir esse projeto revolucionário coletivamente se a cada par de meses temos camaradas se afastando ou se desligando porque simplesmente não suportam mais a carga das tarefas somadas às obrigações da vida.
Obviamente que o maior causador do mal-estar físico das pessoas é o estilo de vida sob o capitalismo. Muitos de nós não tem dinheiro sequer para o lazer. Muitos não têm tempo para ir ao médico. Muitos de nós nos alimentamos mal e não nos exercitamos. A culpa disso tudo não pode ser imputada individualmente, mas no sistema que nos força a viver dessa maneira.
A isso se somam as questões pessoais e estruturais. Vivemos cotidianamente em ambientes onde o machismo, o assédio moral, a violência policial e a LGBTfobia são constantes. Foram comuns as denúncias de machismo, assédio moral e racismo dentro das fileiras do partido, isso só mostra como a nossa socialização interna está contaminada com vícios da sociedade capitalista. Temos como dever e tarefa concreta organizar essas relações sob uma nova ótica e prática, a prática socialista.
Lembremos que a disputa pelo poder através do fomento do poder popular não surge do nada, nós é que precisamos enraizar a lógica que queremos construir na nova sociedade comunista do futuro. Ao mesmo tempo, temos que arrancar com veemência as raízes do que resta das relações sociais capitalistas. O socialismo é um período de transição entre o capitalismo e o comunismo. Dessa forma, é normal que subsistam relações sociais baseadas no capitalismo, como forma de herança de um sistema que ainda está de pé. Mas precisamos fazer o esforço de criar novas formas de sociabilidade, a sociabilidade socialista, para que a corrente de reprodução do capitalismo possa ser paulatinamente superada. E deixo a questão: se não conseguimos quebrar a reprodução das relações capitalistas dentro de nossa própria organização, como pretendemos quebrá-la em outras instâncias da sociedade?
Não somos, portanto, como disse o camarada, seres iluminados. Todavia, nós percebemos o quão insidiosas são as relações às quais estamos submetidos cotidianamente. E é exatamente por isso que temos que subverter essas relações nos espaços em que construímos, principalmente dentro de um partido que se pretende revolucionário. A socialização da militância não deve reproduzir as estruturas do mundo capitalista, sob a pena de que mais militantes se afastem da nossa organização e, consequentemente, que nós nos afastemos da revolução em si.
Não precisamos apenas que nossos militantes sejam marxistas-leninistas disciplinados, precisamos que eles estejam saudáveis e sintam-se seguros nos nossos espaços, podendo assim exercer todo o seu potencial revolucionário.
São Paulo, 09/08/23