Mali e Níger rompem relações com Ucrânia após acusação de apoio a grupos separatistas e fundamentalistas

O embaixador ucraniano no Senegal publicou em suas redes comentários favoráveis aos grupos fundamentalistas da região. O governo senegalês condenou o ato, caracterizando-o como um ataque à soberania do Mali.

Mali e Níger rompem relações com Ucrânia após acusação de apoio a grupos separatistas e fundamentalistas
Membros das forças separatistas tuaregues no norte do Mali. Reprodução: Souleymane Ag Anara/AFP

Por Redação

No último dia 4 de agosto, o porta-voz do governo do Mali, coronel Abdoulaye Maïga, anunciou em comunicado oficial o rompimento  das relações diplomáticas com a Ucrânia. O anúncio ocorreu após Andri Yussov, porta voz da principal agência de inteligência militar da Ucrânia, afirmar em uma transmissão num canal de televisão local, que grupos separatistas tuaregues no norte do Mali “receberam informações valiosas, e não apenas aquelas que lhes permitiram realizar uma operação militar bem-sucedida contra os criminosos de guerra russos.”.

Yussov se referia aos embates que ocorreram no final de julho, quando um comboio das Forças Armadas do Mali foi alvo de uma emboscada por parte do Quadro Estratégico para a Defesa do Povo do Azauade (CSP-DPA na sigla original), próximo da província de Tin Zaouatine, região da fronteira entre Mali e Argélia. No dia 1º de agosto, um porta-voz do CSP-DPA afirmou que ao menos 84 membros do grupo Wagner, milicia privada ligada ao governo russo, e 47 soldados malianos foram mortos nos conflitos que seguiram o primeiro ataque, além de terem capturado prisioneiros e coletado equipamentos e veículos blindados.

Apesar do ataque também ser reivindicado pelo Jama’at Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM), conhecido grupo fundamentalista que vêm atuando na região do Sahel, os separatistas tuaregues afirmam que o ataque foi protagonizado única e exclusivamente por seus combatentes.

A origem do CSP-DPA remonta os conflitos que ocorreram na década de 2010 entre os movimentos separatistas do Azauade e o governo do Mali. Em 2015, diversos destes grupos assinaram um cessar fogo nomeado como Acordo de Argel, dividindo o movimento entre os que estavam abertos às negociações e os que as rejeitavam por princípio, como os grupos fundamentalistas que alguns anos depois fundariam o JNIM e o Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS).

É neste contexto que em 2013 é instalada no território maliano a Missão Multidimensional Integrada para Estabilização das Nações Unidas do Mali (Minusma), operação dirigida pela ONU que contou com militares, civis e equipamentos militares ucranianos, como helicópteros MI-8, além de efetivos alemães e franceses, que estiveram marcadamente a frente das operações militares na região do Sahel.

Soldados Nigerianos da Minusma. Reprodução: Minusma/Harandane Dicko

Frente a isso, em 2020, enfrentando a pandemia de COVID-19 e escândalos de corrupção no governo, além da própria crise de segurança causada pela presença dos grupos fundamentalistas e separatistas, Ibrahim Boubacar Keïta foi alvo de dezenas de protestos e manifestações populares, sendo nesta toada destituído por um golpe de estado comandado por uma junta militar liderada por Assimi Goïta. Já em 2021, o presidente de transição nomeado pela junta, Bah Ndaw, é também deposto, e Goïta assume a presidência do país.

Traçando como principal objetivo a reintegração do território e o fim da presença militar francesa e de outras potências ocidentais no país, o governo de transição passa a exigir o fim da Minusma, decisão criticada pelo CSP-DPA que, em dezembro de 2022, abandonou as negociações de paz com o governo. Ao fim de 2023, a Minusma, agindo de acordo com as exigências da junta militar no poder, retirou quase 15 mil soldados e agentes de polícia, entregando a última base sob seu controle, em Tombuctu, às forças nacionais em dezembro.

Com a ausência da Minusma e com clara intenção de se afastar do governo francês, por anos presente na região numa relação de tutela neocolonial, o governo do Mali passou a trabalhar em alternativas para estruturar o combate aos grupos fundamentalistas e aos separatistas tuaregues. Nessa conjuntura, além da construção das alianças regionais com Burkina Faso e Níger, que culminou na Confederação nomeada de Aliança dos Estados do Sahel (AES), Assimi Goïta passou a estreitar relações com a Federação Russa e o Grupo Wagner. Presente na região desde que a junta assumiu o poder, os mercenários atuaram ativamente na expulsão do CSP-DPA da região de Kidal em novembro de 2023, onde historicamente se concentravam, o que representava, portanto, um dos pilares para unidade nacional buscada por Goïta e os militares no poder. É nesse sentido que as forças tuaregues passam a contar com certo apoio de forças ocidentais que compunham a Minusma, especialmente Ucrânia e França.

Presidente de transição do Mali, Coronel Assimi Goïta. Reprodução: France 24

Chefe da Diretoria Principal de Inteligência do Ministério da Defesa da Ucrânia (HUR), Kyrylo Budanov declarou em abril de 2024 ao Washington Post que “Nós [Serviço Secreto Ucraniano] realizamos operações para enfraquecer o potencial militar da Rússia sempre que possível – por que a África deveria ser uma exceção?”. A fala vem a tona num momento de intensificação das relações russas com os países da África Ocidental e a ampliação da presença militar na região através da Legião Africana, formada por ex-membros do Grupo Wagner após a morte de Yevgeny Prigozhin, em agosto de 2023.

Já no dia de 29 de julho, simultânea à declaração de Andri Yussov que as forças tuaregues teriam recebido “informações valiosas”, o jornal Kyiv Post, porta voz do governo ucraniano em língua inglesa, publicou uma foto de combatentes tuaregues segurando uma bandeira da Ucrânia após o conflito com o Grupo Wagner e as Forças Armadas do Mali.

Para completar a série de acontecimentos que agudizaram a crise entre Mali e Ucrânia, o embaixador ucraniano no Senegal, Yurii Pyvovarov, publicou em suas redes sociais comentários favoráveis aos grupos fundamentalistas e separatistas da região, o que levou a sua convocação pelas autoridades senegalesas, mesmo este tendo apagado as postagens momentos depois. O governo senegalês, por sua vez, condenou a fala de Andri Yussov, caracterizando-a como um ataque à soberania do Mali.

Anunciando publicamente o rompimento das relações com a Ucrânia, o coronel Abdoulaye Maïga apontou a ligação do país com neonazistas, materializado no Corpo Voluntário Russo e no Regimento Azov. Ainda, afirmou que o apoio internacional à Ucrânia significa apoio ao terrorismo internacional, acusando Andri Yussov e Yurii Pyvovarov de terrorismo e apologia ao terrorismo. Dessa forma, o governo do Mali sobe o tom contra os aliados da Ucrânia no ocidente, fazendo com que o conflito ganhe maiores proporções fora do continente europeu.

Dois dias após a decisão da junta militar do Mali, o governo do Níger anunciou através de seu porta voz, Coronel Amadou Abdramane, o rompimento das relações com a Ucrânia em solidariedade ao povo e ao governo do Mali. Além disso, o governo nigerino anunciou que apresentará as denúncias da agressão ucraniana à soberania dos países no Sahel ao Conselho de Segurança da ONU.

O governo russo, por sua vez, reafirmou seu apoio irrestrito ao governo do Mali. Em ligação com Abdoulaye Diop, Ministro das Relações Exteriores do Mali, Sergei Lavrov garantiu o apoio a Bamako, condenando as declarações do porta-voz ucraniano.