'Mais uma vez sobre Dívida Pública: Caminho ou Entrave para o Poder Popular?' (G. Zaffari)

Deve-se lutar imediatamente pela revogação das restrições fiscais, fim da Lei da Responsabilidade Fiscal, permitir que o BCB possa financiar o tesouro e a estatização do sistema bancário também evita o problema como um todo.

'Mais uma vez sobre Dívida Pública: Caminho ou Entrave para o Poder Popular?' (G. Zaffari)
"Se o programa emergencial estatizar os bancos e se houver reservas suficientes ou um controle de capitais muito rigoroso, então a taxa de juros pode ser a sugerida pela regra de Pasinetti."

Por G. Zaffari para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Nas pré-teses publicadas, há uma proposta, singela, sem contextualização, simples que propõe a suspensão imediata da dívida pública.

“6. Supressão da dívida pública.”

Por quê? Como? Quem? Não há nenhuma discussão sobre rentismo, banco central, lei de responsabilidade fiscal, regras do orçamento, regra de ouro, entre outros. Nada disso. É uma frase poderosa da qual se pode espremer e dela não sairá uma gota sequer de conteúdo. Nessa pequena tribuna, faremos um argumento adensado, mas simples. Minha intenção é criar uma forte polêmica e umas chacoalhadas na camaradagem que passe a pensar na crítica da economia política de forma mais séria e consequente.

Iniciemos por uma afirmação que a princípio se apresenta como escandalosa, mas que ao final da exposição se fará muito clara:

A Dívida Pública é a Riqueza Líquida do Setor Privado.

Façamos sentido dela usando um esquema analítico demasiado simples. Sigo a exposição de Deos e Ultremare. Começamos pelo básico das contas nacionais, das quais, apesar de algumas diferenças de metodologia, também servem para economias planejadas. A principal igualdade é:

RENDA = GASTO = PRODUÇÃO

Isto é o fluxo de rendas de um ano (salários, lucros, rendas e juros) são sempre idênticas aos gastos (consumo, investimento, gastos do governo) e da produção (capital, trabalho e terra empregados). A lógica é simples, para existir o lucro, se necessita de alguém que compre o produto vendido é de que esse produto seja produzido. O mesmo vale para que haja a venda, necessita da produção, que também paga salário e da consequência da venda há o lucro. Portanto, a produção considerada é aquela que foi vendida e não aquela ainda no processo de gestação ou nos inventários.

Para esta exposição, a faremos considerando uma economia fechada, isto é, sem exportações e importações. Dado isso, podemos separar o gasto em seus componentes o gasto das famílias, o investimento e o gasto do governo. Que podemos expressar como:

RENDA = CONSUMO + INVESTIMENTO + GOVERNO.

Podemos definir a poupança privada como a diferença entre renda e consumo privado e os tributos pagos:

RENDA - CONSUMO - TRIBUTOS = POUPANÇA.

Ao passo que subtraímos o total de impostos pagos a ambos lados da primeira equação temos:

RENDA - TRIBUTOS =CONSUMO + INVESTIMENTO + GOVERNO - TRIBUTOS

Com isso podemos fazer algumas manipulações algébricas. Passamos todas as variáveis para o lado esquerdo e se tem:

(RENDA - TRIBUTOS - CONSUMO - INVESTIMENTO) + (TRIBUTOS - GOVERNO) =0

Como definimos a poupança da seguinte forma:

POUPANÇA = RENDA - CONSUMO -TRIBUTO,

Podemos substituir na equação anterior os termos pela nível da poupança e passando o segundo termo para o lado direito da equação temos:

POUPANÇA - INVESTIMENTO = GOVERNO -TRIBUTOS

Da qual podemos fazer uma simples dedução, se o setor privado poupou (POUPANÇA - INVESTIMENTO) > 0, então, só existe uma opção para o setor público, é de que ele teve um déficit, isto é gastou mais que arrecadou em tributos

(GOVERNO -TRIBUTOS) < 0.

Ou seja, o fluxo de poupança é idêntico ao nível de déficit público. Quando se há o déficit, é usual nas economias capitalistas que isso resulte na emissão de títulos com o valor desse déficit. O comprador desse título ou utiliza seu fluxo de poupança privada, ou sua poupança acumulada para o comprar. É claro que um agente pode ter sua poupança em relação a outros agentes privados, mas quando se toma todos os agentes privados como um agregado, somamos todas suas obrigações e receitas, chegamos a esse fato importante em que o montante total da poupança privada é igual ao déficit público.

Como a dívida pública é uma sucessão de déficits, então a poupança acumulada, a riqueza líquida do setor privado é a dívida pública. No entanto, alguém poderia sugerir justamente o oposto “são as poupanças privadas que podem financiar o déficit do governo”. Mas, os agentes não escolhem o quanto poupar, eles só escolhem o que gastar. Se os agentes decidem poupar mais, o consumo cai, menos produtos são demandados e menos trabalhadores empregados. Omitiu-se, no entanto, um aspecto relevante sobre a dívida pública. Ela é a soma de sucessão dos déficits públicos, mas também dos pagamentos de juros aos detentores prévios. Usualmente, quem possui a riqueza líquida entre os agentes privados não são os trabalhadores, mas os capitalistas e rentistas. Logo, os juros da dívida pública são uma importante variável distributiva. O resultado final distributivo da intervenção do governo dependerá da composição do gasto público (isto é, se se gasta em escolas, faculdades, infraestrutura, previdência, subsídios) e do nível da taxa de juros. Isso é explicado em mais detalhes em outra exposição publicada no Lavrapalavra.

Por fim, um último comentário sobre dívida pública. A União Soviética sempre apresentou déficit e crescente dívida pública. A economia funcionava da seguinte forma: primeiro tinha um planejamento da produção e das relações entre unidades produtivas. Disso era derivado um plano financeiro de depósitos e pagamentos entre firmas. Se as firmas não tinham orçamento, o Banco Popular podia dar um empréstimo à unidade produtiva a taxas de juros baixíssimas. Ou ainda o governo usava do déficit para financiar algumas entidades. Ou seja, mesmo numa sociedade em que a produção não era liderada pelo lucro (firmas poderiam ficar continuamente negativadas!), a dívida pública era sobretudo a riqueza líquida das unidades produtivas planejadas e das contas pessoais dos trabalhadores.

Mas o que fazer? E qual é o problema?

Aqui reproduzo alguns trechos de outra exposição passada publicada no Lavrapalavra: “Dívida pública: entrave ou caminho para a construção do Poder Popular (ou o papel do dinheiro e da dívida no capitalismo moderno)”.

O problema em linhas gerais é a apropriação da riqueza social via rentismo:

“Quando o governo gasta, o BCB junto ao Tesouro Nacional (entidade que por motivos jurídicos é o “caixa” do governo) credita a conta bancária do vendedor de alguma mercadoria que o governo comprou. Seja ela força de trabalho, como no caso dos servidores públicos, seja bens de capital, para construir hospitais, estradas, universidades etc. Assim, o governo criou dinheiro na economia. De forma contrária, o pagamento de impostos é a destruição de dinheiro na economia. Se após o pagamento de todos os impostos e de todas as compras do governo, o governo comprar mais do que o montante arrecadado, ele é obrigado pela força da lei a emitir um título da dívida pública. Esse título é leiloado entre o Tesouro Nacional e os compradores primários. Esses compradores são determinados por regras jurídicas e eles, atualmente, são os bancos privados e dois bancos públicos, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil. Os bancos, então, com o dinheiro dos juros, ganhos pelos empréstimos dados a trabalhadores e capitalistas, podem comprar títulos públicos, que dará a esses bancos após um período pré-determinado o valor do título acrescido de juros pagos pelo governo. Aqui, portanto, os bancos se apropriam, mais uma vez, de riqueza sem a produzir.”

Algumas formas de resolver isso:

“Deve-se usar a expansão da dívida pública para garantir o pagamento de direitos básicos e para aumentar o nível de emprego. Em suas formulações, não importa se o rolamento da dívida pública transferir valor e mais valor para bancos privados. Pois, em última instância, o programa de gastos continuado garantirá esses variados direitos e poderá assegurar o pleno emprego. Aqui, então, temos que a dívida pública é um caminho para a construção do poder popular.”

E ainda:

“Basta que o fluxo de gastos sociais seja maior que os juros, ou ainda, uma solução não trivial pode resolver esse dilema: permitir que o BCB possa comprar títulos do tesouro, ou que os bancos públicos possam o fazer. Assim, a dívida pública é rolada pelo próprio governo, impossibilitando a transferência de mais valor para os bancos privados e as transferências de valor e mais valor estarão determinadas pela distribuição dos gastos e da tributação.”

Dessa forma, deve-se lutar imediatamente pela revogação das restrições fiscais, fim da Lei da Responsabilidade Fiscal, permitir que o BCB possa financiar o tesouro e a estatização do sistema bancário também evita o problema como um todo.

Por fim, sobre o juros em economias planejadas e na transição revolucionária:

Em economias planejadas, os títulos públicos também podem ser fontes de conflito distributivo, mesmo que nenhum banco ou unidade produtiva pudesse ganhar juros. Somente trabalhadores podiam comprar títulos.

Podemos fazer uma suposição razoável de que a proporção de dinheiro para títulos muda à medida que a renda do agente cresce. Para agentes com rendas muito baixas, eles só começarão a comprar títulos após atingirem um certo nível de economias acumuladas. Isso ocorre porque, em um cenário de dificuldade financeira, eles podem precisar da liquidez adicional que o dinheiro proporciona. Portanto, a taxa de juros dos títulos pode ser uma maneira indireta pela qual alguém pode apropriar continuamente mais do excedente à medida que o tempo passa, desde que a taxa de juros seja maior do que a taxa de crescimento do poder de compra do trabalho. Esse cenário permite uma concentração crescente de renda para os trabalhadores que estão nos estratos superiores dos níveis de renda.

Mas por que pagar aos detentores de títulos uma taxa de juros? Dado que a emissão de títulos é, em última análise, uma decisão dos planejadores, ela não deve existir com o propósito de encontrar a taxa que os agentes financiariam o déficit do governo, já que o Banco Popular pode comprar os títulos do Estado Socialista. As razões para estabelecer uma taxa de juros devem ter outros motivos subjacentes.

Poderíamos argumentar que é justo para os trabalhadores que suas economias tenham o mesmo poder de compra em termos de trabalho no passado como teriam no futuro. Se 500 rublos eram necessários para comprar um carro que levou 500 trabalhadores para ser produzido, e um ano depois a produção do mesmo carro leva 450 trabalhadores, a taxa de juros para os títulos deve ser de 10% naquele ano para que as economias do primeiro ano tenham o mesmo poder de compra do último. Isso pode aludir à ideia da taxa justa de Pasinetti, onde a taxa de juros da economia não deve ser maior que a taxa de crescimento da produtividade do trabalho.

Se o programa emergencial estatizar os bancos e se houver reservas suficientes em moeda estrangeira ou um controle de capitais muito rigoroso, então a gestão da taxa de juros pode ser a sugerida pela regra de Pasinetti.