'Mais elementos para uma Economia Planejada Socialista e Ecológica' (G. Zaffari)
Curioso, portanto, será quando os dirigentes com o comando do Estado, ao serem perguntados sobre o que fazer após uma crise, responderem: 'Não sabemos, precisamos estudar'.
Por G. Zaffari para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Há uma série de valiosas tribunas que introduzem a questão ecológica para a militância, nas quais, de forma certeira, apontam para a insuficiência pragmática e teórica da nossa luta nesse quesito. A questão está nas pré-teses de forma tímida e necessitaria de uma certa reformulação. Pois, a principal forma de violência entre classes, hoje, é a luta climática.
As enchentes que afligem o estado do Rio Grande do Sul servem como um exemplo da nossa falta de visão estratégica. São momentos como este, de extrema violência da luta de classes, que quebram uma certa normalidade subjetiva. Nessa situação, muitos trabalhadores buscam por respostas que talvez fujam das ideias hegemônicas, que expliquem tanto o motivo da violência extranormal, quanto que deem elementos para as resolver.
É notória a imensa solidariedade de classe decorrente do evento, assim como a sensação generalizada de abandono, descontentamento e ódio. No entanto, não temos entre nós nenhuma cartilha ou material de agitação para organizar essa raiva, e tampouco para um programa que apresente soluções para a classe. Não há nem sequer um rascunho de um programa ecológico e socialista.
A urgência da disfunção ecológica – incluindo também os outros limites físicos da terra, como perda da biodiversidade, fluxos geoquímicos, acidificação do oceano, entre outros – obriga um partido revolucionário a já ter em mente uma série de ações estratégicas bem desenhadas.
Eventos como este se repetirão em outras regiões do país, com mais intensidade e maior frequência à medida que a reprodução capitalista não for interrompida.
Essa tribuna é um rascunho de um projeto maior. Sugiro aos camaradas um encontro nacional de economia ecológica e planejada. Também sugiro que nossa linha editorial dê a devida atenção ao tema. Assim como sugiro que os delegados se aprofundem sobre o tema, com a celeridade devida e possam trazer algum consenso ao congresso. O texto abaixo é uma primeira aproximação de um possível consenso. O método expositivo se faz a partir da perspectiva da conversa entre um trabalhador de base e um militante do partido. Frases de agitação dão o tom das respostas, seguido de sugestões de qualificações.
I – A necessidade de compreensão do fenômeno físico:
Após uma reunião entre sindicatos, movimentos sociais e afins, um trabalhador se aproxima a um militante comunista para puxar uma conversa de corredor. Se aproxima, pois vê nesse militante um confiança de ação e está curioso para entender o problema melhor, então pergunta: “Como que as chuvas tiveram um volume tão massivo”? A resposta provavelmente será algo curto como “Ah, é por causa da emissão de carbono”. Mas esta é uma resposta um pouco insuficiente. Façamos um breve detalhamento.
(a) A emissão de CO2 faz com que a temperatura global aumente – já estamos próximos de 1ºC acima da média usual. A média de temperaturas do passado garantiu o bem-estar da humanidade. Agora, alteradas, permitem com que as chuvas tenham maior volume e mais intensidade nas regiões sul do Brasil.
(b) A artificialização do solo, usada para a construção de prédios, estradas e infraestruturas, impede que o volume de chuva seja absorvido e aumenta as áreas de alagamento.
(c) A poluição dos rios, o uso de barragens e a construção de canais afetam a biodiversidade dos rios e das vegetações costeiras, as quais também auxiliam num solo natural mais saudável que permite melhor absorção da água.
Esses três fenômenos, (a), (b) e (c) explicam a extensão do problema.
II – A necessidade de compreensão do fenômeno social-local:
Aí vem a segunda pergunta: “mas o que poderia ter sido feito para evitar isso aqui no Rio Grande do Sul”? A resposta curta será: “Isso é por causa do capitalismo dependente, precisamos da revolução brasileira”. Mas, novamente, é uma resposta insuficiente e que explica quase nada. Comecemos do mais local, mais palpável e ir até o mais geral e global.
(a) Há um interesse dos capitalistas em habitar zonas mais frescas, com ar mais limpo e calmo. A proximidade aos cursos d’água usualmente possuem essas características, mas, para que se evite grandes enchentes, é importante deixar o curso do rio livre e resguardar a saúde do solo que absorve as águas. Porém, as construtoras estão ávidas em atender a esses clientes especiais, portanto fazem uma enorme pressão nas câmaras municipais para flexibilizar e permitir edificações muito próximas a rios e lagos. Ao mesmo tempo, os trabalhadores mais pobres são levados a zonas de risco de enchente ou de deslizamento, não por escolha, mas porque seus salários não os permitem escolher um lugar melhor. Logo, ocupam zonas urbanas residuais, evitadas por alguns capitalistas um pouco mais espertos, que não querem botar seu patrimônio imobiliário a perder, ou estamentos médios que podem arcar com moradia em outros locais.
(b) Organizar a produção para atingir objetivos ecológicos (redução de poluição, desvios dos rios) também afeta a estrutura de custo das unidades privadas; afinal, escoar dejeto industrial num rio é bem mais barato do que descartá-lo de forma mais sustentável, ou ainda usar uma técnica menos poluente. Portanto, unidades produtivas também buscam reduzir a necessidade de licitação ambiental. Ao mesmo tempo, a expansão da agricultura faz um cálculo similar – historicamente, desmatar e ocupar é mais barato que intensificar o uso do solo.
(c) Os representantes políticos eleitos, cuja base programática está alinhada com interesses dos capitalistas, também não se interessam por usar o orçamento para reforçar as infraestruturas e permitir o resgate das pessoas caso o pior ocorra, em especial para zonas em que sejam ocupadas por trabalhadores.
O curioso da situação particular de Porto Alegre é que apesar de existir uma infraestrutura que seria capaz de proteger regiões ricas e onde estão uma série de unidades produtivas importantes (como é o aeroporto de Porto Alegre), se optou por deixar a revelia os diques e as casas de bombeamento. Uma possível explicação, é de uma contradição interna dentro da classe dominante, em que, por um lado, advoga ideologicamente pelo estado mínimo, resultando na queda de orçamento para muitas pastas, ao mesmo tempo que recruta quadros políticos cujo único papel é a privatização e destruição do estado, ainda que esta mesma burguesia possa vir a necessitar de uma certa burocracia organizada frente à elevação da calamidade ecológica. Se admitido é o problema da ecologia e a necessidade de mitigação generalizada, uma série de capitalistas terão seu patrimônio e estoque de capital investidos postos em risco. Pois, a estrutura produtiva brasileira, que se foca em agricultura, serviços (para os ricos) e mineração, tem muito a perder nesse novo cenário. Apenas uma minoria do capital localizado em terras nacionais poderia vir a servir essas necessidades de proteção ecológica e talvez os assombre pensar na gerência da produção não ser mais feita de forma privada, mas de forma coletiva.
III – A necessidade de compreensão do fenômeno social-nacional-global:
O trabalhador após ouvir estas respostas, provavelmente emendará “entendi, mas, sobre a emissão do C02 que mencionou no início, porque não se reduz?”. Aí o camarada responderá “Isso tem relação com o capitalismo global! Precisamos de uma greve internacional contra a extinção”.
Todas as coisas à nossa volta, como prédios, eletricidade, plásticos, computadores, são frutos de uma mudança fundamental. Antes de alguém queimar a primeira pedra de carvão, a produção humana dependia basicamente dos ciclos de energia solar. O carvão vegetal e o petróleo são um estoque guardado dessa energia solar, acumulada ao longo de anos e anos.
Quando queimamos combustíveis fósseis, isso nos permite usar parte de sua energia para aquecer caldeiras, gerar energia elétrica, produzir plásticos, borracha, asfalto, até mesmo no processo de produção de concreto, material do qual quase todos os prédios são feitos. Contudo, um resultado dessa queima é a geração de resíduos, especialmente a emissão de CO2. Desde 1970, criou-se um consenso científico de que a quantidade de CO2 na atmosfera faz com que o calor do sol seja retido no planeta, levando ao aquecimento da temperatura global média. De fato, ainda há regiões frias e quentes, há inverno e verão, mas ano a ano, os invernos serão menos frios e os verões serão mais quentes.
Como então reduzir a emissão de CO2? A primeira coisa é reduzir nossa dependência dos combustíveis fósseis e investir em outras tecnologias verdes. No entanto, nada disso foi feito. Por quê? Primeiro, por um intenso lobby e conspiração das petrolíferas que não queriam perder seu quinhão. Segundo, porque muitos economistas possuem a ideologia de que tudo pode ser substituído, acreditando que o mercado encontrará uma solução, uma inovação mágica que capture carbono, ou algo do tipo. Dado isso, nunca houve investimento massivo na transição energética. O governo do PT, por exemplo, ao invés de se preparar para uma transição ecológica, decidiu usar as fontes de petróleo como uma forma de financiar um apaziguamento do conflito distributivo nacional. "Usemos os royalties para educação e saúde” / “Controlemos o preço da gasolina para reduzir o custo de vida” / “A tecnologia do pré-sal irá nos salvar". Assim como, num novo mundo neoliberal, buscou-se integrar a economia mundial com a expansão da economia primária. O agronegócio, desmatador e emissor de CO2, também é fruto de políticas dos anos 2000, financiadas de forma intensa pelo BNDES e outros bancos de desenvolvimento.
Por fim, o custo da transição ecológica é astronômico em termos financeiros. Necessitaria de toda a mobilização da economia, de forma máxima, com a proteção social e ambiental como objetivo prioritário, ao invés de garantir a taxa de lucro geral. Portanto, os capitalistas têm buscado continuamente minar a perda de gerência sobre os meios de produção. Não que o controle do estado seja necessariamente socialista, muito pelo contrário, mas isso será tratado em mais detalhes na seção V.
IV – Apresentar uma proposta prática, socialista e ecológica:
O trabalhador olha para baixo, pondera sobre a desesperança no mundo, sente raiva e pergunta: “Então, o que faremos?”. O camarada muito sabido dirá: “Ah, precisamos de uma revolução comunista e parar a acumulação de capital!”. E aqui o trabalhador necessita saber como será esse caminho revolucionário e o que se espera de um socialismo ecológico.
(a) Um programa emergencial de mitigação e estratégia de transição ecológica: ao passo que os trabalhadores pelo território são afetados, há a necessidade de garantia de moradia e trabalho. Tudo deve ser destinado à reconstrução ecológica. Isto é, a força de trabalho será empregada na transição energética, preservação da biodiversidade e todas as obras de mitigação. O trabalhador terá uma jornada reduzida de 30 horas e receberá um pouco acima do salário-mínimo, com outros benefícios relevantes. Ele poderá pedir demissão a qualquer momento. Ao mesmo tempo, é imprescindível redirecionar toda a pesquisa científica no país para a redução do impacto ambiental, redução da dependência de recursos materiais e inclusão de cientistas em todos os painéis de decisão do governo. A nível federal, é necessário primeiro um plano de objetivos. A partir desse plano, se faz o orçamento para garantir o menor custo possível. Nosso papel político é exigir isso ao máximo. Que seja via protestos, via greve, ocupações, ou qualquer ação necessária. Estamos em guerra e arma da burguesia é constringir esse orçamento, em deixar nossa classe morrer aos danos da crise climática.
(b) Um programa de transição socialista: esse programa radical de emprego, científico e de controle da demanda certamente levará ao enfurecimento da burguesia, que buscará minar de todas as formas um governo como este, tentando um golpe de estado via exército ou outras forças de massa, mobilizando propaganda e militantes, como vimos no 8 de janeiro. Quando as forças políticas atingirem sua tensão máxima, é importante que o programa revolucionário comece a expropriar as forças opositoras e controle os principais meios de produção. A estatização dos serviços financeiros, controle da logística (estradas, caminhões, trens, ferrovias) e controle total dos orçamentos públicos. Ao mesmo tempo, seria necessário constituir uma força militar revolucionária. Nesse caminho, há a necessidade de implementar centros de planejamento ecológicos populares. Os métodos de programação dinâmica e linear desenvolvidos pela cibernética soviética nunca chegaram a ser aplicados para gestão econômica e poderiam ser experimentalmente utilizados, de preferência, já como pequenos projetos no período emergencial. Também é importante que os planos tenham diferentes níveis de detalhamento entre as esferas territoriais e que possuam grande democracia decisiva. A forma de propriedade dos meios de produção pode ser variada: do estado revolucionário, em estatais autônomas, cooperativas ou até mesmo privadas. Os preços controlados por esse sistema deverão ser determinados a partir dos impactos ecológicos. Os mecanismos de programação dinâmica/linear permitem encontrar os preços sombra, isto é, os preços relativos de um sistema em que há uma função objetiva (minimizar o impacto ecológico) e restrições (pleno emprego, comida para todos, moradia). E estes podem ser feitos sem que o esteja nas equações seja a valores monetários. É um planejamento feito por proporções físicas. Por exemplo, para proteger a biodiversidade do planeta, pelo menos metade da terra precisa ser deixada à natureza, sem nenhuma interferência humana, assim como precisamos zerar a emissão de carbono. A partir desses preços relativos, é possível definir um vetor de preços nominais fixados pelo governo que respeite as proporções do sistema sombra. Dessa forma, todos os setores da economia, independente do sistema de propriedade, terão como espaço de escolha técnica apenas os preços que garantam o menor impacto ecológico.
V – Dos destinos da crise ecológica:
Por fim, nesta troca entre base e militância, o trabalhador pode ainda perguntar: “Ok, mas uma revolução é muito utópica, muito complicada e de alto custo, é muita luta! Há outras opções?” O camarada com consistência dirá: “É socialismo ou barbárie.” E aqui vai a última qualificação. Há três caminhos para o futuro das classes:
(a) Apartheid ecológico: a classe capitalista usará a máquina do estado para reprimir continuamente a população e resguardar suas riquezas, enquanto a quantidade de proletarizados cresce a uma taxa acelerada. Há uma competição entre capitalistas em concentrar cada vez mais capital, transformando o estado numa máquina de exclusão completa, sem nenhuma possibilidade de proteção social. Essa perspectiva já se encontra no discurso fascista do imperialismo europeu, que fala de uma fortaleza do Ocidente, enquanto espera a invasão das massas de refugiados climáticos de suas colônias e suas “emancipadas” ex-colônias. A competição entre as unidades produtivas levará uma corrida armamentista, em que se destrói o máximo possível da natureza para maximizar as chances de sobrevivência sob a possibilidade de hecatombe ecológica. As populações que sofrem de opressões como o racismo e xenofobia serão as primeiras a entrar em campos de refugiados e continua exposição aos danos. Como usual, há um incentivo político ao crescimento da propaganda chauvinista e racista, pois colhe divisão da classe trabalhadora. Ao passo que a crise se aprofunde, os trabalhadores considerados como “nacionais”, “povo”, ou “brancos” serão traídos, ou usados como soldados rasos, fonte de exploração interna, ou ainda abandonados à própria sorte.
(b) Keynesianismo verde instável: a classe capitalista e os trabalhadores atingem um equilíbrio em que não se enfrentam. O problema distributivo fica congelado, ou ainda, há a possibilidade de redução da participação dos trabalhadores na renda bruta, junto a redução de serviços sociais. Assegura-se um certo chão flutuante e precário, mas provavelmente muito mais precário do que toda a história do século XX. Nesse arranjo, o estado toma as rédeas junto a alguns capitalistas para buscar objetivos de transição. O problema deste arranjo é que para o sucesso da transição ecológica, se faz necessário que a taxa de acumulação seja ser equivalente à taxa de regeneração da natureza do planeta mais variação na produtividade do uso dos recursos da terra. Qualquer quebra de pacto de coordenação da acumulação leva facilmente ao cenário do Apartheid Ecológico. Se Kalecki uma vez escreveu sobre os Aspectos Políticos do Pleno Emprego, poderíamos expandir para os Aspectos Políticos da Transição Ecológica. O raciocínio do marxista polonês se aplicaria quase igualmente nesse cenário, mas com um importante agravante: a classe capitalista faz muitas coisas como classe, mas não investe como classe. O fato de o investimento ser descoordenado a fim de maximizar lucros particulares das unidades produtivas, faz com que esse arranjo seja naturalmente instável. Assim como no anterior, também há a possibilidade da seleção “racial” de um certo grupo de proletários globais. Todos os trabalhadores que não fazem parte do centro capitalista se tornarão mais cedo ou mais tarde em condenados da terra.
(c) Socialismo Ecológico Planejado: os trabalhadores se organizam para tomar os meios de produção e instituir o que foi, de certa forma, descrito na seção IV. No entanto, como é um problema de escala global, é imprescindível que, após a libertação territorial, haja a necessidade de exportação da revolução. Nessa nova governança global, alguma instituição multilateral deverá definir os preços relativos dos bens essenciais e repassará aos planejadores regionais como os seguir. Cada território terá liberdade para seguir o plano, desde que não vá contra o orçamento da natureza.
VI - Conclusão
Vários outros temas poderiam ser tratados e aprofundados. Um, especial, trata-se da divisão do trabalho entre os gêneros, em que as mulheres usualmente são forçadas a um papel de cuidado nas famílias. Logo, uma crise do cuidado anda junto à crise ecológica. Ao mesmo tempo, há a necessidade da mudança dos padrões de consumo, incluindo a redução forte do consumo de carne.
Por fim, quero deixar pública uma crítica ao camarada Lazzari. Apesar de ter escrito uma valorosa nota sobre a necessidade de aprofundamento do leninismo, não desenvolve a questão ecológica por nenhuma parte. A desconsiderou também em discussão nas redes sociais. Alegando que o problema da transição ecológica é para depois da Revolução. Devemos esperar diz ele. Mas sabemos que a tomada até o poder é paralela ao amadurecimento e experimentação do poder que de fato comandará o território. Curioso, portanto, será quando os dirigentes com o comando do estado perguntados sobre o que fazer após um uma crise climática responderão: ‘não sabemos, precisamos estudar’.