Lênin, líder revolucionário

O Partido Comunista Russo, com seu líder Lênin, ligou-se de tal modo a todo o desenvolvimento do proletariado russo e, portanto, ao desenvolvimento de toda a nação russa, que não é possível nem mesmo imaginar um sem o outro [...].

Lênin, líder revolucionário
"O proletariado internacional teve e ainda tem o exemplo vivo de um partido revolucionário que exerce a ditadura da classe. Teve e não tem mais, desgraçadamente, o exemplo vivo mais característico e expressivo de um líder revolucionário: o companheiro Lênin."

Antonio Gramsci

Publicado em L’Ordine Nuovo em 1 de Março de 1924

Transcrito a partir de Escritos políticos, vol. 2, Civilização brasileira, 2004, p. 235-240.


Todo Estado é uma ditadura. Nenhum Estado pode deixar de ter um governo, formado por um número restrito de pessoas, as quais, por sua vez, organizam-se em torno de um homem dotado de maior capacidade e de maior clarividência. Enquanto houver a necessidade de um Estado, enquanto for historicamente necessário governar os homens, surgirá o problema — qualquer que seja a classe dominante — de ter líderes, de ter um “líder”. Há socialistas que, embora ainda se digam marxistas e revolucionários, afirmam querer a ditadura do proletariado, mas não a ditadura dos “líderes”; não querem que o comando se individualize, se personalize. Ou seja: afirmam querer a ditadura, mas não na forma em que ela é historicamente possível. Isso revela por si só toda uma orientação política, toda uma preparação teórica “revolucionária”.

Na questão da ditadura proletária, o problema essencial não é o da personificação física da função de comando. O problema essencial consiste na natureza das relações que os líderes ou o líder têm com o Partido da classe operária, das relações que existem entre este Partido e a classe operária. Tais relações são puramente hierárquicas, de tipo militar, ou são de caráter histórico e orgânico? O líder, o Partido são elementos da classe operária, são uma parte desta classe, representam seus interesses e aspirações mais profundas e vitais, ou são uma simples excrescência, algo imposto simplesmente pela violência? Como este Partido se formou, como se desenvolveu, através de que processos ocorreu a seleção dos homens que o dirigem? Por que se tornou o Partido da classe operária? Isso ocorreu por acaso? O problema envolve todo o desenvolvimento histórico da classe operária, que lentamente se constitui na luta contra a burguesia, registra algumas vitórias, sofre muitas derrotas; e não só o desenvolvimento da classe operária de um país, mas da classe operária mundial em seu conjunto, com suas diferenciações superficiais, ainda que importantes em cada momento concreto, mas também com sua substancial unidade e homogeneidade.

O problema converte-se naquele da vitalidade do marxismo. Trata-se de saber se o marxismo é ou não a interpretação mais segura e profunda da natureza e da história, se é ou não capaz de dar à intuição genial do político um método infalível, um instrumento de extrema precisão para explorar o futuro, para prever os eventos de massa, para dirigi-los e, portanto, dominá-los.

O proletariado internacional teve e ainda tem o exemplo vivo de um partido revolucionário que exerce a ditadura da classe. Teve e não tem mais, desgraçadamente, o exemplo vivo mais característico e expressivo de um líder revolucionário: o companheiro Lênin.

O companheiro Lênin foi o iniciador de um novo processo de desenvolvimento da história, mas o foi por ser também o expoente e o último momento mais individualizado de todo um processo de desenvolvimento da história passada, não só da Rússia, mas do mundo inteiro. Foi por acaso que ele se tornou o líder do Partido Bolchevique? Foi por acaso que o Partido Bolchevique se tornou o partido dirigente do proletariado russo e, portanto, da nação russa? A seleção durou trinta anos, foi trabalhosíssima, assumiu com frequência as formas aparentemente mais estranhas e absurdas. Teve lugar no terreno internacional, em contato com as mais avançadas civilizações capitalistas da Europa Central e Ocidental, na luta entre os partidos e frações que formavam a II Internacional antes da guerra. Prosseguiu no seio da minoria do socialismo internacional, que permaneceu pelo menos parcialmente imune ao contágio social-patriótico. Foi retomada na Rússia quando da luta para conquistar a maioria do proletariado, para compreender e interpretar as necessidades e aspirações de uma numerosíssima classe camponesa, dispersa num imenso território. Continua ainda, a cada dia, porque a cada dia é preciso compreender, prever, prover. Essa seleção foi uma luta de frações, de pequenos grupos; foi luta individual. Significou cisões e unificações, detenções, exílio, prisão, atentados; foi resistência contra o desencorajamento e o orgulho; significou passar fome quando se tinha à disposição milhões em ouro; significou conservar o espírito de um simples operário mesmo quando se estava sentado no trono do czar. Significou não desesperar até mesmo quando tudo parecia perdido, mas recomeçar, com paciência, com tenacidade, mantendo todo o sangue-frio e o sorriso nos lábios, quando os outros perdiam a cabeça. O Partido Comunista Russo, com seu líder Lênin, ligou-se de tal modo a todo o desenvolvimento do proletariado russo e, portanto, ao desenvolvimento de toda a nação russa, que não é possível nem mesmo imaginar um sem o outro, o proletariado como classe dominante sem que o Partido Comunista fosse partido de governo e, assim, sem que o Comitê Central do Partido fosse o inspirador da política do governo, sem que Lênin fosse o chefe de Estado. A própria afirmação da grande maioria dos burgueses russos — “uma república liderada por Lênin, mas sem o Partido Comunista, seria também o nosso ideal” — tinha um grande significado histórico. Era a prova de que o proletariado exercia não apenas uma dominação física, mas dominava também espiritualmente. No fundo, confusamente, também o burguês russo compreendia que Lênin não poderia ter se tornado e não poderia ter se mantido como chefe de Estado sem a dominação do proletariado, sem que o Partido Comunista fosse partido de governo: sua consciência burguesa de classe ainda o impedia de reconhecer que, além da derrota física, imediata, sofrera também uma derrota ideológica e histórica. Mas a dúvida já havia se instalado: e é essa dúvida que se expressa na frase acima citada.

Uma outra questão se apresenta. É possível que hoje, no período da revolução mundial, existam “líderes” fora da classe operária, líderes não marxistas, que não estejam estreitamente ligados à classe que encarna o desenvolvimento progressista de todo o gênero humano? Temos na Itália o regime fascista, liderado por Benito Mussolini; temos uma ideologia oficial na qual o “líder” é divinizado, declarado infalível, apregoado como organizador e inspirador de um Sacro Império Romano renascido. Vemos diariamente impressos nos jornais dezenas e centenas de telegramas de homenagem das várias tribos locais ao “líder”. Vemos as fotografias: a máscara mais endurecida de um rosto que já havíamos visto nos comícios socialistas. Conhecemos tal rosto: conhecemos aquele modo de girar os olhos nas órbitas, o qual, com sua ferocidade mecânica, tinha outrora o objetivo de amedrontar a burguesia, enquanto hoje visa a amedrontar o proletariado. Conhecemos aquele punho sempre fechado em sinal de ameaça. Conhecemos todo este mecanismo, toda esta parafernália — e compreendemos que possam impressionar e fazer disparar o coração da juventude das escolas burguesas. Trata-se de algo realmente impressionante, até mesmo quando visto de perto. Causa espanto. Mas “líder”? Assistimos à semana vermelha de junho de 1914. Mais de três milhões de trabalhadores estavam nas ruas, convocados por Benito Mussolini, que há cerca de um ano, desde o massacre de Roccagorga, os havia preparado para este dia, com todos os meios oratórios e jornalísticos de que dispunha o líder do Partido Socialista de então, ou seja, Benito Mussolini: meios que iam das charges de Scalarini ao grande processo no Tribunal de Milão [1]. Três milhões de trabalhadores foram às ruas, mas faltou o “líder”, que era Benito Mussolini. Faltou como “líder”, não como indivíduo, já que contam que, como indivíduo, ele era corajoso, tendo enfrentado em Milão os cordões de isolamento e os mosquetes dos carabineiros. Faltou como “líder” porque não era líder; porque, como ele mesmo confessou, não conseguia triunfar — no seio da direção do Partido Socialista — nem mesmo contra as miseráveis intrigas de Arturo Vella e Angelica Balabanoff [2].

Mussolini era então, tal como hoje, o tipo concentrado do pequeno burguês italiano: raivoso, mistura feroz de todos os detritos deixados no solo nacional por vários séculos de dominação dos estrangeiros e dos padres. Não podia ser líder do proletariado; tornou-se ditador da burguesia, de uma classe que gosta das faces ferozes quando volta a ser bourbônica, que espera ver na classe operária o mesmo terror que ela sentia diante daquele girar de olhos e daquele ameaçador punho fechado.

A ditadura do proletariado é expansiva, não repressiva. Nela se verifica um contínuo movimento de baixo para cima, um continuo intercâmbio através de todas as capilaridades sociais, uma contínua circulação de homens. O líder que hoje pranteamos encontrou uma sociedade em decomposição, uma poeira humana sem ordem nem disciplina, já que em cinco anos de guerra secara a produção que surge de toda a vida social. Tudo foi reorganizado e reconstruído, desde a fábrica até o governo, sob a direção e o controle do proletariado, ou seja, com os meios de uma classe recém-chegada ao governo e à história.

Benito Mussolini conquistou o governo e o mantém por meio da mais violenta e arbitrária repressão. Não teve de organizar uma classe, mas somente o pessoal de uma administração. Desmontou algumas engrenagens do Estado, mais para ver como eram feitas e para aprender como usá-las do que por uma real necessidade. Sua doutrina está toda contida na máscara física, no modo de girar os olhos nas órbitas, no punho fechado sempre ameaçador...

Roma não desconhece estes cenários poeirentos. Ela viu Rômulo, viu César Augusto e, quando do seu declínio, viu Rômulo Augusto [3].


Notas

[1] Recordemos brevemente os fatos da biografia de Mussolini aqui mencionados por Gramsci. Membro da direção do PSI a partir de 1912, Mussolini tornou-se editor-chefe do Avanti! em dezembro do mesmo ano. Em janeiro de 1913, teve lugar o massacre de Roccagorga, no Lácio, quando dezenas de operários agrícolas em greve foram assassinados e feridos. Mussolini liderou então, a partir do Avanti!, uma intensa campanha em favor de uma greve geral, que não só silenciou a ala reformista do PSI, mas também permitiu que ele se apresentasse como “criador” da greve geral de junho de 1913. Em junho de 1914, ocorreram os eventos conhecidos como “semana vermelha”. Mussolini também se apresentou como inspirador do movimento. Nesse meio tempo, ele respondeu a um processo no Tribunal de Milão, no qual foi absolvido; mas o processo contribuiu para aumentar sua popularidade. Giuseppe Scalarini (1873-1948) era, desde 1911, o principal chargista do Avanti!.

[2] A. Vella e A. Balabanoff eram dirigentes da corrente maximalista do PSI. Mais tarde, juntamente com Pietro Nenni, opuseram-se à fusão do PSI com o PCI.

[3] Enquanto Rômulo foi um dos legendários fundadores de Roma e César Augusto o criador do Império, Rômulo Augusto — deposto por Odoacre, em 476 — foi o último imperador romano do Ocidente.