Lênin como teórico

Por August Thalheimer

Publicado em The Communist International, 1924, edição nº 1, pp. 49-53.

Traduzido a partir de marxists.org

I

As poucas observações que estou registrando a pedido dos editores desta publicação memorial [“Rote Fahne”, nº 38] de maneira alguma pretender tratar completamente do assunto. A obra de Lênin é tão ampla em escopo, profundidade e extensão que requer uma abordagem muito mais profunda. O trabalho de Karl Marx, mesmo hoje, 41 anos após sua morte, está longe de estar esgotado. Este tema, como apontou Rosa Luxemburgo em mais de uma ocasião, está intimamente entrelaçado com as exigências proletárias da luta de classes em várias etapas. A classe trabalhadora em luta sempre toma da teoria apenas o que é imediatamente necessário para suas lutas de classes. Ela não pode se dar ao luxo de estudar teoria por amor à teoria. No entanto, o grau de utilidade da teoria marxista na prática real da luta de classes depende em grande parte da extensão e profundidade de seu estudo. A prática revolucionária retira apenas de maneira fragmentada os recursos da teoria revolucionária. A relação entre teoria e prática não é de forma alguma unilateral; é versátil e dialética. A teoria fertiliza a prática da luta de classes que, por sua vez, torna-se solo fértil para o estudo teórico.

Essa relação pode ser comparada à existente entre a ciência “pura” e aplicada. Por exemplo, o gênio matemático de Gauss ou de Riemann havia desenvolvido muitos anos antes aqueles métodos matemáticos que seriam aplicados mais tarde na teoria física da relatividade. O gigantesco arsenal teórico de Karl Marx forneceu, antes de tudo, os meios para a independência política da classe trabalhadora, para sua separação dos revolucionários burgueses, para sua independência como classe. Foi apenas em segundo lugar que a teoria marxista providenciou a luta de classes proletária ao longo do extenso período de lutas parlamentares e econômicas e da organização política e econômica extensiva do proletariado. O período da luta revolucionária final e do estabelecimento da comunidade socialista era apenas esboçado.

Fala muito sobre o gênio incomparável de Marx o fato de ele ter sido capaz de esboçar o aspecto da luta revolucionária final e da comunidade futura em um período em que a linha entre a revolução burguesa e proletária apenas começava a ser delimitada, quando o imenso desenvolvimento da economia capitalista e do poder burguês era iminente, enquanto a luta de classes proletária dava seus primeiros passos inseguros. Ele avançou além de seu tempo, não apenas por meio de especulação mental, mas por uma análise profunda e realista das realidades da economia e política capitalistas e das manifestações da luta de massa proletária.

Quase todos os seguidores teóricos de Marx, durante o período do parlamentarismo e sindicalismo, vulgarizaram e, consequentemente, falsificaram os ensinamentos de Marx. Tiraram dele o que parecia adequado na época. Perderam completamente de vista as coisas que Marx tinha a dizer sobre a revolução proletária e suas formas concretas. A teoria revolucionária marxista foi transformada por eles em um manual para a interpretação histórica do passado e não para a ação revolucionária no presente.

Foi aqui que o trabalho de Lênin começou, e não por acaso. Com a amplitude da revolução russa em crescimento, ele reviveu a teoria marxiana descartada da revolução proletária e a enriqueceu com as experiências em massa da luta de classes proletária de sua época. A ditadura do proletariado, “esquecida” por Kautsky, foi redescoberta por ele, por assim dizer. Por mais de duas décadas, Lênin se envolveu em lutas teóricas para refutar a vulgarização e falsificação reformistas e anarquistas da teoria marxiana. Sua maior realização nesse sentido foi definir as formas concretas da ditadura do proletariado à luz das experiências de massa e ações criativas do proletariado russo e revelar o papel dos sovietes, conectado a uma crítica concreta, para superar a democracia burguesa.

Nesse sentido, Lênin foi tanto um gênio criativo quanto um pioneiro. E, nesse sentido, sua importância é universal e um guia para todos os países onde a revolução proletária está em andamento.

O segundo grande feito de Lênin foi elaborar a organização da revolução nas condições da Rússia Soviética.

Sua terceira e última tarefa foi estabelecer os princípios básicos de política para a primeira ditadura do proletariado, para a Rússia Soviética.

E aqui encontramos elementos de importância universal para a luta de classes proletária. Mas aqui será tarefa de seus sucessores fazer uma distinção crítica entre as coisas que são universalmente aplicáveis e as coisas que eram peculiares às circunstâncias russas. Ninguém apontou essa necessidade com maior ênfase do que o próprio Lênin. Traduzir Lênin do russo para o Ocidente-Europa não é meramente uma tarefa linguística, nem a tarefa de um indivíduo. É a tarefa fundamental da revolução proletária nas circunstâncias da Europa Ocidental e da América. Em seguida, vem a tarefa de adaptar o leninismo às necessidades da Ásia e da África. O legado de Lênin deve ser desenvolvido e definido à luz das circunstâncias da revolução proletária na Europa Ocidental e das experiências da luta de massas na Europa Ocidental. É a tarefa de toda uma geração. Esta tarefa não será servida pela mera adoção dos ensinamentos de Lênin; isso é apenas o suficiente para um começo, mas mais trabalho criativo é necessário para sua elaboração.

II

Tanto em Marx como em Lênin o revolucionário prático dificilmente pode ser desapegado do teórico. Tanto para Marx como para Lênin o princípio orientador não era apenas expor uma nova interpretação do mundo, mas mudá-lo. Nascida da determinação revolucionária e de uma profunda análise dialética da sociedade existente, a teoria marxista tornou-se a maior força prática conhecida na história. “A teoria se torna uma força assim que recebe as massas.” A este respeito, Marx era um verdadeiro discípulo de Hegel, o último e o maior dos filósofos alemães. Hegel, o idealista, não era de forma alguma um sonhador que habitava nas nuvens, como é frequentemente imaginado. Sua filosofia idealista tendeu para a prática. O materialismo dialético foi moldado nas mãos de Marx em uma poderosa arma de revolução. Ele se apoderou das massas porque nasceu da vida das massas. Todo o segredo da força incomparável de Lênin está na força que ele encontrou em sua teoria revolucionária. A mente burguesa não pode deixar de recorrer a alegações fantasiosas de força externa usadas por Lênin. Lênin, como Marx, adquiriu seu grande poder pessoal fundindo sua própria personalidade na ideia da revolução proletária. A força externa foi usada por Lênin muito menos do que por qualquer governante burguês.

III

A conquista particular de Lênin para a revolução proletária na Rússia foi a construção de uma ponte entre as revoluções burguesas camponesas e a revolução proletária-socialista. Este problema foi resolvido por Lênin para a Rússia com a maior precisão imaginável. Mas a importância desta solução se estende muito além das fronteiras da Rússia. É igualmente importante para a Europa Central e Ocidental, bem como para a América, embora nesses países o problema russo específico possa não se apresentar na mesma forma. Pois a revolução camponesa na Rússia, em um exame minucioso, é realmente uma repetição das revoluções camponesas na França em 1789, e nos outros países europeus em 1848. A natureza peculiar da revolução camponesa na Rússia se deve, em primeiro lugar, à sua conexão com a revolução proletária-socialista na Rússia e, em segundo lugar, à sua coincidência com o período da revolução mundial em geral. Isso coloca a revolução camponesa russa muito acima das revoluções camponesas do passado, que estavam ligadas às revoluções burguesas. Sob as circunstâncias russas, a revolução camponesa serviu como prelúdio, à revolução proletária-socialista. A pequena propriedade camponesa na Europa é considerada como o estágio preliminar da revolução proletária, enquanto na Rússia foi provocada pela revolução. No entanto, a definição do papel da revolução camponesa em relação à revolução proletária é de particular importância para os países coloniais com uma população predominantemente camponesa. A ligação do movimento proletário na Europa com as revoluções nacionais dos países coloniais é uma das mais importantes conquistas teóricas de Lênin.

IV

A grandeza de Lênin como teórico consiste em uma combinação feliz da ousadia revolucionária e do maior realismo. O oportunista eclético provavelmente será varrido pela marcha dos eventos e jogado no campo dos inimigos da classe. O anarquista e o sindicalista perderão o terreno da realidade debaixo dos pés. Lênin, o realista revolucionário, dirigiu-se para o objetivo revolucionário através do próprio fluxo dos acontecimentos. Lênin nunca permitiu que a fórmula dos outros ou de sua própria se manifestasse sobre as realidades. Menos ainda poderia ser iludido por realidades simuladas ou pela fraseologia burguesa. Ele lutou implacavelmente contra o oportunismo, mas igualmente contra digressões “esquerdistas”.

V

No mesmo sentido em que Lênin confessou ser um marxista ortodoxo, confessamos nossa fé no leninismo; no sentido da teoria revolucionária viva, não no sentido da letra morta. O leninismo tornou-se a palavra de ordem e o clarão de nossos camaradas no Partido Russo. Por esta razão, toda a Internacional Comunista marcha sob a bandeira do leninismo.

Que possamos sempre estar conscientes da verdade de que o leninismo, como o marxismo, é essencialmente um método criativo vivo que combina a maior ousadia revolucionária com a análise mais aguçada e realista.

VI

O estilo literário de Lênin era seu “próprio estilo”. De extrema simplicidade e lucidez, vigorosa, não convencional, totalmente adaptada aos propósitos, sem verniz externo, sem enfeites fraseológicos, verdadeiros, sustentados por lógica estrita e animados pela paixão revolucionária.

O estilo literário e oratório de Lênin é um tanto desconcertante para a Europa Ocidental a princípio. É o estilo de profunda intuitividade que se transforma no cérebro por pura insistência e repetição, sem recorrer aos métodos usuais da retórica.