Jornalista que presenciou ataques de Israel contra o Líbano critica cobertura brasileira

A ofensiva no Líbano soma mais de 1.800 mortes desde setembro, com apoio da mídia ocidental, que retrata as agressões como uma guerra regular.

Jornalista que presenciou ataques de Israel contra o Líbano critica cobertura brasileira
Vídeo feito por fotógrafo registrou o momento em que um prédio habitacional em Beirute é atingido por um míssil israelense, causando a morte de dezenas de civis e deixando centenas de feridos. Reprodução/Foto: Youtuve / NEWSCENTERMaine

Por Redação

O Brasil é o país com a maior comunidade libanesa no mundo, com aproximadamente 10 milhões de migrantes ou descendentes do país. O Líbano abriga uma das maiores comunidades brasileiras no Oriente Médio, com mais de 20 mil pessoas, mas, mesmo diante deste vínculo, a mídia brasileira faz uma cobertura fraudulenta sobre o ataque israelense contra a população. Entre os milhares de mortos, estão dois adolescentes brasileiros, assassinados após um ataque sionista a regiões de civis em setembro de 2024. De origem libanesa, a jornalista e pesquisadora Leila Salim Leal, de 39 anos, é uma das brasileiras que moram em Beirute. Casada com um homem libanês, ela teve que deixar sua casa e voltar para o Brasil após a intensificação dos bombardeios do exército israelense.

Leila passou a cobrir os eventos de forma independente e se tornou uma voz importante na disseminação de outras perspectivas sobre os acontecimentos no Oriente Médio. Ela estava entrando de férias quando Israel realizou uma série de atentados em setembro.

"Quando teve o evento das explosões dos pagers a minha vida virou de cabeça para baixo. Acabei passando esse período de férias cobrindo tudo que eu conseguia, trabalhando mais do que nunca. Até o momento em que eu entendi que precisava voltar para o Brasil, eram drones na minha cabeça o dia inteiro e a perspectiva do aeroporto fechar, entendi que se eu não voltasse agora teria o risco de não conseguir, já foi muito difícil agora. Meu marido e eu tínhamos acabado de nos mudar e começar a montar nossa casa nova. Ele não pôde vir agora porque precisa cuidar da sua mãe que está com Alzheimer, tem também questões de trabalho. Estamos tentando uma entrada de refugiado para a minha sogra vir para o Brasil", explica com pesar.

A jornalista lembra o trauma causado pelo ataque sionista, incluindo o assassinato trágico de uma criança de 10 anos, que estava dentro de casa. "Os pagers começaram a explodir nas ruas, em escolas, dentro das casas, em supermercados. Um dos casos mais tristes foi uma menina de 10 anos que estava com um pager em mãos, dentro da própria casa. Uma pessoa foi à sacada e viu uma pessoa explodindo na rua. Na rua eu vi um nó no trânsito, gente correndo, ambulância para tudo quanto é lado, quanto mais eu me aproximava da área sul. A sensação que dava era que qualquer carro ou pessoa ao seu redor poderia explodir”, relembra.

Ela destaca que embora haja um discurso que o ataque atingiu apenas combatentes do Hezbollah essa é uma ideia falsa. “Profissionais de saúde usavam pagers. Estão chegando kits de ajuda humanitária e todo mundo joga fora as lanterninhas que vem nos kits, porque todo mundo está, com razão, com medo de qualquer eletrônico explodir a qualquer momento. Essas pessoas não estavam em regiões militares. Não sou especialista em direito internacional, mas claramente o princípio da distinção para guerras foi violado. Não se pode fazer punição coletiva a civis. Mesmo se fosse um combatente, em áreas civis ele não poderia ser alvejado, e foi o que aconteceu”. Durante a entrevista, Leila relatou também outros crimes do último mês que evidenciam as violações constantes israelenses, como um ataque no último mês a um prédio da imprensa e a bases da ONU.

“A primeira coisa que é evidente para qualquer pessoa que viva no Líbano é que o ataque é contra todo o povo libanês e contra todo o território. Vivendo lá isso dá uma outra dimensão. Não existe isso de ataques ao Hezbollah, ataques direcionados. Existem áreas que são mais inseguras e áreas menos inseguras, mas não existem áreas seguras. Existem áreas que são mais visadas, como áreas muçulmanas xiitas, mas essas áreas também são fundamentalmente residenciais e são tratadas como se fossem 'fortalezas do Hezbollah', mas são áreas residenciais”.

Os números apresentados pela jornalista reforçam o impacto do genocídio na população de todo o país. "Os últimos números falam de 1.400.000 pessoas deslocadas no Líbano, a população do Líbano é de 5.400.000 pessoas, então estamos falando de mais de 1/4 do país deslocado. Tem pessoas que sequer conseguem ir para alojamentos, que já são precários. Falta água, falta comida, a comida precisa ser racionada e muitos não conseguem ficar nas salas porque não tem mais espaço, então precisam dormir nas escadas. Durante à noite você não consegue sequer circular entre esses espaços. A água chega uma vez por dia, durante 2 horas".

A jornalista destaca que a mídia tradicional segue um padrão de comportamento de inversão ideológica, onde todos os atos de Israel são retratados como gestos de autodefesa. "Não só legitimam o genocídio a posteriori, como fica cada vez mais claro que esse padrão de cobertura jornalística cria as condições para que o genocídio aconteça. Assumem como ponto de partida que toda a guerra expansiva, colonial, racista, de limpeza étnica que está na fundação e na existência do estado de Israel é uma ação de autodefesa. Israel invadiu o Líbano em 1978, não existia Hezbollah, invadiu em 1982, não existia Hezbollah. O Hezbollah surge a partir da invasão de 1982”.

Neste ataque de 1982, ao qual Leila se refere, ocorreu o massacre de Sabra e Chatila. No atentado a civis refugiados libaneses e palestinos, Israel estava aliado a grupos fascistas chamados falangistas, que difundiam até mesmo o antissemitismo que os israelenses afirmam combater. No evento, reconhecido como genocídio pela ONU, foram assassinadas crianças, mulheres e idosos. Também foram relatados estupros, torturas e outras violações de direitos humanos.

Na condição de convidada para falar sobre o tema em canais de televisão, jornais e sites de notícias, Leila passou a buscar formas de evidenciar as contradições da cobertura da grande mídia. "É um debate que a gente não pode se furtar de fazer, mas é difícil, fecha portas para a gente criticar corporações de mídia e colegas de profissão, mas é inadiável. O que deveria ser o bom jornalismo com autocrítica e debate, é visto com maus olhos".

Leila finaliza com palavras de ordem e de esperança: “Essa resistência (islâmica) surge de uma contradição e quanto mais se aprofunda essa contradição mais essa resistência vai surgir em suas variadas formas. A história da resistência teve protagonismo de forças de esquerda, de grupos não religiosos, ali na década de 1970, 1980, que foram aniquilados. Inclusive, o que abriu espaço justamente para esses movimentos de resistência islâmica. Mas também há uma juventude universitária, há movimentos seculares surgindo, movimentos de mulheres, de famílias. As fontes de construção e de aspiração por emancipação não cessam e isso para mim é muito claro. Eu não acredito que essa barbárie cometida vai ser suficiente para aniquilar o Hezbollah. É duro e às vezes a gente compra esse discurso da derrota, mas eu preciso falar desse outro lado. Enquanto Israel existir vai existir resistência e temos uma tarefa histórica de ecoar essas vozes, de denunciar o Estado colonial, racista, de limpeza étnica, cometendo um genocídio aos nossos olhos. É uma tarefa do nosso tempo, geracional. Precisamos denunciar com todas as nossas forças isso e esperar o dia, que eu tenho certeza que vai chegar, da emancipação do povo árabe e da derrota do Estado sionista de Israel."

Entrevista na íntegra

Quem é você? Como foi esse retorno ao Brasil?

Meu nome é Leila Salim Leal, sou jornalista e pesquisadora de comunicação política. Minha família por parte de mãe é de origem libanesa e eu sempre tive um vínculo muito grande com o Líbano e a Palestina no geral e sempre me interessei por esse tema, sou casada com um libanês. Eu não estava trabalhando com a cobertura dos conflitos, estava em outros projetos, até o momento que, em julho deste ano, aconteceu o ataque no subúrbio sul, essa região que vem sendo bombardeada quase que diariamente de Beirute que matou o Fu’ad Shukr, um comandante do Hezbollah. Dali pra frente decidi cobrir os eventos como jornalista. Logo após meu primeiro dia de férias, no dia 15 de setembro, teve o evento das explosões dos pagers e aí tudo, a vida virou de cabeça para baixo. E aí acabei passando esse período de férias cobrindo tudo que eu conseguia nesse período, trabalhando mais do que nunca até que eu entendi que eu precisava vir para o Brasil... era drone na minha cabeça o dia inteiro, perspectiva de aeroporto fechar, entendi que se eu não voltasse agora teria o risco de não conseguir voltar, já foi muito difícil agora... Meu marido e eu tínhamos acabado de nos mudar e começar a montar nossa casa nova, até horas antes do vôo eu não estava de malas prontas e decidida a voltar. Ele não pôde voltar agora por precisar cuidar da sua mãe que está com Alzheimer, tem também questões de trabalho. Estamos tentando uma entrada de refugiado para minha sogra vir para o Brasil.

E enquanto jornalista, como está a sua percepção sobre a retratação dos conflitos pela mídia brasileira?

Esse tema é um tema muito urgente e necessário e enquanto jornalista eu acho que esse é um debate que a gente não pode se furtar, por mais que seja um debate difícil. Você criticar colegas e corporações, fecha portas para a gente, por mais que eu tenha uma trajetória na comunicação alternativa e crítica. O que deveria ser o "bom jornalismo" com autocrítica e debate, é visto com maus olhos. É um debate que custa muito, mas é inadiável. A primeira coisa que eu acho que é importante a gente destacar é que existe esse padrão na cobertura brasileira que reproduz o padrão dominante da mídia ocidental comercial, com diferentes gradações. É uma lógica, por mais duro que seja identificar, de não só servir a uma legitimação pós genocídio, mas também se tornar parte ativa da construção desse genocídio. O que para mim vai ficando cada vez mais claro é que a construção desse padrão de cobertura cria as condições para que o genocídio aconteça, ele vai abrindo um caminho para isso. Assumem como ponto de partida que toda a guerra expansiva, colonial, racista, de limpeza étnica que tá na fundação e na existência do Estado de Israel é uma ação de autodefesa. Só daí já há uma inversão ideológica gravíssima de ponto de partida. Se assume qualquer tipo de agressão israelense, naturalizam as agressões israelenses desde o Nakba e toda a história que se conta a partir daí, é assumindo essa narrativa de autodefesa. E aí tem vários dispositivos que se somam a esse guarda-chuva editorial, que passam por uma simplificação grosseira da geopolítica, das contradições, dos atores políticos do oriente médio. Então você tem uma facilidade de taxar, de jogar pecha de terrorista em qualquer grupo de resistência sem sequer entender como eles funcionam naquelas sociedades, é uma cobertura baseada num orientalismo grosseiro que coloca os povos árabes naquele lugar do exótico, com um conjunto de estereótipos baseados na violência, na barbárie, numa suposta irracionalidade violenta contra o mundo civilizado. Então assumem um discurso que tá na base da propaganda que o Netanyahu faz, que é esse da luta entre civilização e barbárie que Israel e o ocidente representam a civilização e o Oriente Médio a barbárie. Existe um apagamento como parte disso da humanidade das vítimas do genocídio. Então se colocam números, por mais que você fale sobre elas em alguns momentos pontuais, não existe um entendimento da dimensão profunda, humana, de qual é essa dor. E a gente vê isso na cobertura do outro lado, dos israelenses, dos civis, por mais que seja um debate quão civis eram essas vítimas retratadas, enfim, vamos assumir que sim. Contam qual o nome, quais eram os pais, quem eram os filhos, quais eram os sonhos e o que a pessoa estava fazendo ali. Do lado palestino ou libanês quando muito você tem nomes e números e você vai perdendo essa dimensão do drama humanitário. Mesmo no caso de brasileiros que foram assassinados, não houve essa dimensão... vítimas brasileiras. Os veículos se recusam a fazer uma visão mais totalizante, como ponto de partida tem um impedimento editorial de questionar a conduta de Israel, quando muito questionam simplesmente o Netanyahu, apresentam como se fosse uma coisa de agora, o governo dele é sim uma aberração, mas não é um ponto fora da curva, há uma ligação com a história desse Estado.

Diante disso, Leila, desse debate, diante desse comportamento da mídia tradicional, o que você acha que seria importantíssimo as pessoas saberem? O que você gostaria que as pessoas soubessem? O que você gostaria de dizer que não vem sendo dito?

Olha, a primeira coisa que é evidente para qualquer pessoa que viva no Líbano é que o ataque é contra todo o povo libanês e contra todo o território. Vivendo lá isso dá uma outra dimensão. Não existe isso de ataques ao Hezbollah, ataques direcionados. Existem áreas que são mais inseguras e áreas menos inseguras, mas não existem áreas seguras. Existem áreas que são mais visadas, como áreas muçulmanas xiitas, mas essas áreas também são fundamentalmente residenciais e são tratadas como se fossem "fortalezas do Hezbollah", mas são áreas residenciais. E existem outras áreas que são bairros sunitas, cristãos, bairros mistos que não são alvos diretos, mas por exemplo, a gente teve ataques na semana passada de bairros cristãos acolhendo refugiados de outros bairros. Israel está cometendo crimes de guerra dia após dia aos olhos do mundo. Está fartamente documentado, mas a gente não dimensiona e é tratado como eventos isolados. Só para você ter como base, só para falar do último mês no Líbano, a gente teve ataques às bases da ONU, ataques direcionados e denunciados pelas tropas de paz da ONU, uma invasão com tanque a um prédio da ONU na fronteira, cuja presença seria, teoricamente, "oficialmente", reconhecida por Israel e ainda foi atacado. A gente teve ataques sistemáticos a profissionais de saúde, a gente teve uma ameaça a um hospital, pois afirmaram, assim como em Gaza, e depois comprovaram que não existia nada, que o Hezbollah estava guardando dinheiro no solo desse hospital. No mesmo dia dessa ameaça, atacaram outro, nos arredores de um hospital público. A gente teve nessa madrugada um ataque que matou três jornalistas, no sul do Líbano, numa área que não é de guerra, em um prédio de jornalistas de 18 veículos diferentes entre veículos locais e internacionais, estava identificado como imprensa, estava com os carros da tarja azul identificando como imprensa, todo mundo sabia que era um alojamento de imprensa, justamente por ser uma região que não era de guerra. Passei a madrugada acompanhando isso, em contato com a Cruz Vermelha tentando tirar jornalistas de lá. Matar jornalistas é mais um crime de guerra. São violações constantes. Quando muito se noticiam o fato, "3 pessoas morreram", mas sem o entendimento, eram três jornalistas. Esse elemento é muito importante. São violações permanentes. Israel tem carta branca para cometer barbáries e genocídios com apoio irrestrito do ocidente e da grande mídia.

Outra coisa que eu acho que é uma tarefa minha enquanto jornalista é falar dessas histórias, das vítimas, dessas pessoas. Eu passei por um alojamento de desabrigados, não pode filmar, mas passei um dia lá, entrevistei uma família lá. E você vê justamente isso, essa dimensão: são pessoas, idosas, crianças, mulheres, homens, que tiveram suas vidas destruídas, que lutam para reconquistar sua vida. O povo libanês tem uma capacidade de reconstrução impressionante, forçadas por essas circunstâncias de violações constantes. Mas você vê, crianças sem aula, pessoas que perderam empregos, famílias que tiveram suas vidas devastadas, mas que não recebem o direito de terem sua história contada, sua memória preservada. Os últimos números falam de 1.400.000 pessoas deslocadas no Líbano, a população do Líbano é de 5.400.000 pessoas, então estamos falando de mais de 1/4 do país deslocado. Tem pessoas que sequer conseguem ir para esses alojamentos, que já são precários, que falta água, falta comida, a comida precisa ser racionada, muitos não conseguem ficar nas salas porque não tem mais espaço, então precisam dormir nas escadas, então durante à noite você não consegue sequer circular entre os espaços. A água chega uma vez por dia, durante 2 horas. Dias e dias vivendo nessas situações. Alguns tiveram suas casas destruídas, outros que não tiveram suas casas destruídas, não conseguem voltar, saíram às pressas com a roupa do corpo e não conseguem voltar, porque os bombardeios não param. Enfim, são muitos exemplos.

A população do sul do Líbano, do vale do Beqaa, que foram as duas primeiras áreas atingidas diretamente em outubro, elas não viviam em paz antes de 7 de outubro do ano passado. Israel ainda ocupa militarmente uma área ilegalmente, do sul do Líbano. Israel invadiu o Líbano em 1978, não existia Hezbollah, invadiu em 1982, não existia Hezbollah. O Hezbollah surge a partir da invasão de 1982. Israel segue ocupando o Líbano ilegalmente até os anos 2000 e só deixa a região pela resistência do Hezbollah, gostemos deles ou não, da visão deles de mundo, do projeto estratégico que seja, mas Israel só sai por conta da resistência do Hezbollah, com protagonismo deles. Ainda assim, Israel continua ocupando fazendas ao sul, continua ocupando as colinas de Golã na Síria, que tem entrada para o vale do Beqaa e fazem ataques constantes a essas áreas ameaçando todo o Líbano. Eventualmente na área residencial ao sul de Beirute, tem ataque de drone lá, que matou uma pessoa, no ano passado tinham tido ataques. Não é verdade dizer que começou agora, a região inteira vive ameaçada sob a escolha de se submeter ao regime de Israel ou ao genocídio. É um sufocamento permanente. Meu marido diz assim, é como se você tivesse um monstro que é seu vizinho, que vai crescendo e crescendo e ele vive ao seu lado, a qualquer momento você pode ser invadido por ele.

Tem esse fato de terror psicológico constante também, não é porque seu bairro não foi bombardeado que você não vive sob o medo constante dele ser... Você poderia traçar paralelos entre a situação do Brasil e a situação de Israel? Então, o movimento do Hezbollah é teocrático e conservador, mas e os movimentos de Israel, ou os movimentos brasileiros que apoiam Israel? Não são?

Eu sempre dou um exemplo para falar sobre isso. Que é essa defesa instrumental das liberdades individuais para atacar o inimigo. O exemplo que sempre dou é o da Arábia Saudita, ninguém chama a Arábia Saudita de ditadura que coloca mulheres, jornalistas, em situação constante de opressão e violência, porque a Arábia Saudita é basicamente um aliado prioritário do Ocidente no Oriente Médio. Eles falam do Hezbollah como um proxy do Irã no Líbano, mas ninguém fala de Israel como proxy dos Estados Unidos no Oriente Médio. O Bin Salman [príncipe herdeiro da Arábia Saudita] foi acusado de esquartejar um jornalista. Imagina se o Hezbollah fizesse isso? E não faz, tá? A relação do Hezbollah com a imprensa é muito diferente. A Arábia Saudita é um grande exemplo dessa contradição. Eu defendo um projeto de sociedade radicalmente diferente do Hezbollah, mas no Líbano eu assisti um discurso do Hassan Nasrallah pela primeira vez, com tradução simultânea em inglês. Não fazem uma cobertura do que ele diz, como agente político, por quê? Goste ou não do que ele está dizendo, mas eles têm as publicações deles, as análises, porque a gente pode escutar o Netanyahu e não escutamos ele? Eu escutei pela primeira vez e não tinha nenhuma simpatia com ele e ele é retratado como bárbaro, grosseiro e na verdade, ele era articulado, apresentou pontos históricos, análises. Ele fala várias coisas que eu não concordo, mas existe um apagamento dessas figuras políticas e você não precisa ir muito longe para entender porque eles se fortaleceram tanto. O Hezbollah no Líbano é uma milícia paramilitar, um partido político e tem um braço social. Grande parte do apoio popular que o Hezbollah mantém tem a ver com prestar serviços sociais: escolas, universidades, serviços de saúde e isso atende a população e dão uma liga ideológica para quem tá vivendo aquilo. E que é visto, não por acaso, como uma única força de resistência, com capacidade militar, em fazer frente às ocupações israelenses. Sendo um partido político, eles têm uma assessoria de imprensa. Já os combatentes são pessoas jovens que se somam, e a capacidade de reposição deles é imensa, porque a contradição que alimenta o surgimento do Hezbollah só se aprofunda. Sobretudo no sul e no vale do Beqaa.

E a história dos Pagers, Leila? Como isso ocorreu? Eram integrantes do Hezbollah?

Tem uma coisa aí, que é essa concepção dos integrantes do Hezbollah. Então assim, há uma ala militar, são os soldados. Mas existem pessoas que são médicos, que são da ala social. São pessoas que são formalmente filiadas ao Hezbollah, mas que são trabalhadores do serviço social. Semana passada teve ataques a trabalhadores do braço financeiro deles. Teve uma crise financeira gigantesca no Líbano e o Hezbollah criou um sistema financeiro que emprestava sem juros para famílias. Esses escritórios desse braço financeiro foram bombardeados. Eram bancos. Essa coisa dos pagers, mesmo que fossem combatentes, eles não estavam em regiões militares, não sou especialista em direito internacional, mas claramente o princípio da distinção para guerra foi violado. Não se pode fazer punição coletiva a civis. Mesmo se for um combatente, em áreas civis, ele não pode ser alvejado, que foi o que aconteceu. Os pagers começaram a explodir na rua, em escola, dentro de casa, em supermercado. Um dos casos mais tristes foi uma menina de 10 anos que estava com o pager em mãos. Uma pessoa foi à sacada e viu uma pessoa explodindo na rua. Esse dia, eu estava indo para o aeroporto que é em direção a essa região sul, resolver uma questão, aí na rua eu vi um nó no trânsito, gente correndo na rua, ambulância para tudo quanto é lado, quanto mais eu me aproximava da área sul. A sensação que dava era que qualquer carro ou pessoa ao seu redor poderia explodir. Um vídeo que viralizou era um cara pegando fruta no supermercado e explodiu. O outro era um cara no caixa do supermercado. Profissionais de saúde usavam pagers. Estão chegando kits de ajuda humanitária e todo mundo joga fora as lanterninhas que vem nos kits, porque todo mundo está, com razão, com medo de qualquer coisa explodir a qualquer momento.

Mais um crime de guerra...

Exato. E no dia seguinte tiveram os walkie-talkies, tinha um cara mexendo numa caixa d'água perto da minha casa com um walkie-talkie eu fiquei aterrorizada com medo.

Tem mais alguma coisa que você gostaria de falar?

É um momento de terror profundo, de muitas violações, de traumas que vão ficar por gerações e gerações, muitas baixas. Há muita confiança das pessoas no Hezbollah desde 2006, o braço militar do Hezbollah se prepara para isso desde 2006. Estão há 18 anos se preparando para outro enfrentamento. Mas é evidente que nada disso vai ser capaz de aniquilar a resistência seja ela qual for. Porque a gente vê, assim, justamente, que a resistência surge de uma contradição e quanto mais se aprofunda essa contradição mais essa resistência vai surgir em suas variadas formas. A história da resistência teve protagonismo de forças de esquerda, de grupos seculares, não religiosos, ali na década de 1970, 1980, que foram aniquilados inclusive, o que abriu espaço, deixou um vácuo, justamente para esses movimentos de resistência islâmica. Mas também há uma juventude universitária, há movimentos seculares surgindo, movimentos de mulheres, de famílias, as fontes de construção e de aspiração por emancipação não cessam e isso para mim é muito claro. Eu não acredito que essa barbárie cometida vai ser suficiente para aniquilar o Hezbollah. Nem em Gaza eles têm conseguido e o Hezbollah tem capacidade militar superior ao Hamas. Mas mesmo se aniquilarem o Hezbollah, a resistência não vai terminar, não vai acabar. A resistência vai surgir. É duro, e às vezes a gente compra esse discurso da derrota, mas eu preciso falar desse outro lado. Enquanto Israel existir vai existir resistência e temos uma tarefa histórica de ecoar essas vozes, de denunciar o Estado colonial, racista, de limpeza étnica, cometendo um genocídio aos nossos olhos. É uma tarefa do nosso tempo, geracional. Precisamos denunciar com todas as nossas forças isso e esperar o dia que eu tenho certeza que vai chegar, da emancipação do povo árabe e da derrota do Estado sionista de Israel.