'O jornal não foi ultrapassado: resposta ao camarada Bruno Franzoni' (Machado)
Um aplicativo não é uma ideia ruim, claro, mas ele não cumpre o papel organizador de um jornal enquanto órgão do Partido. Isso porque o jornal não é exclusivamente um meio de comunicação, e não organiza apenas a troca de informações, apesar de isso ser uma parte importante dele.
Por Machado para Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Creio que o camarada Bruno Franzoni trouxe um interessante debate à tona em sua tribuna defendendo a criação de um aplicativo partidário que serviria enquanto organizador de nosso trabalho.
Porém, discordo da proposta organizativa do camarada, não por acreditar que ela seria ruim em si mesma, mas por acreditar que ela parte de uma falsa premissa: a tecnologia da informação tornaria o jornal obsoleto enquanto organizador coletivo.
Um aplicativo não é uma ideia ruim, claro, mas ele não cumpre o papel organizador de um jornal (e da revista teórica) enquanto órgão do Partido. Isso porque o jornal não é exclusivamente um meio de comunicação, e não organiza apenas a troca de informações, apesar de isso ser uma parte importante dele. O jornal cumpre diversos outros papéis na organização revolucionária, e por isso ele não pôde ainda ser superado, apesar de ter passado um século da escrita de O que fazer?, e mesmo ele não sendo um meio de comunicação tão popular quanto foi no passado. Vou me estender em alguns desses papéis, que conseguimos ver na prática na experiência do jornal O Futuro de São Paulo na UJC-SP.
Em primeiro plano, é importante ressaltar o papel organizador do jornal leninista. A distribuição do jornal entre o organismo responsável pela sua impressão (tradicionalmente, um departamento do Comitê Central) e os organismos que vão distribuí-lo (os organismos de base) exige que cada organismo da cadeia de distribuição funcione com profissionalismo e, portanto, permite que rapidamente se encontrem organismos inativos, falhas, dificuldades, quando o jornal não chega às bases ou quando chega atrasado, por exemplo. Um aplicativo não consegue fazê-lo com a mesma eficiência. Um organismo inexistente pode repassar circulares/comunicados pra "baixo", mas é muito diferente o planejamento e organização de uma estrutura de distribuição.
Em adendo, a própria distribuição (venda) garante um repasse bastante honesto da inserção política e da confiança das bases na organização, bem como da existência (ou inexistência) de cada organismo nesse local. Se não é uma medida exata, é claro que um organismo que nunca consegue vender jornais possui um problema político, e isso permite sua identificação com agilidade – experiência muito positiva para a organização da UJC em São Paulo.
Essa mesma distribuição tem um papel mobilizador. O jornal obriga cada organismo de base a se organizar, a estruturar brigadas, vendas, contatos de aproximados… E isso, claro, é um passo para a organização de outros tipos de ação: a venda de um jornal, em um dia específico, pode ser transformada no apoio a uma greve, com os mesmos militantes já organizados e já preparados para realizar uma tarefa pela organização. Em adendo, o jornal também constitui uma excelente oportunidade de adquirir novos contatos: vender jornais em um novo local de trabalho, fazer entrevistas para o jornal com determinada categoria, inserir-se em assembleias ou reuniões, são todas possibilidades abertas por um jornal que um app não pode suprir.
Para os organismos superiores, a distribuição do jornal é uma oportunidade de organizar o transporte não apenas de pacotes do jornal, mas das mais diversas outras coisas: alimentos, panfletos, bandeiras, etc.
Por outro lado, essa organização também se dá nos repasses que cada organismo precisa subir de seu trabalho, ou seja, na escrita de matérias. É possível, rapidamente, identificar a partir da escrita de matérias ou artigos teóricos de cada organismo, seu nível de formação, os trabalhos que vêm executando, sua inserção nas massas… Claro, é possível, através de um aplicativo, exigir repasses periódicos. Porém, é muito mais fácil descrever ações mal feitas e até mesmo apresentar balanços e informações falsas quando se sabe que essa é uma informação exclusivamente interna. Em um jornal, é possível que um trabalhador ou um militante de base escreva uma carta ao Conselho Editorial do jornal demonstrando a falsidade de uma matéria escrita com más intenções, por exemplo.
Outro lado da subida de repasses é que o jornal possui o papel de filtrá-los, ou seja, exige que se selecionem os melhores, mais essenciais. Afinal, ao menos no Núcleo da UJC na USP, chegamos a um limite em que é humanamente impossível ler todos os repasses do trabalho nessa Universidade. Já chegamos a ter mais de 20 emails (repasses, orientações e contribuições) no mesmo dia (um dia útil), e mais de 100 na semana. Isso sem contar as mensagens nos grupos.
Esse volume esdrúxulo de informação só aumentará e, quanto melhor for nosso trabalho, mais difícil vai ser que todos os militantes acompanhem todos os repasses. Isso significa duas perdas: não apenas muito conteúdo não será lido, mas também muito conteúdo pouco relevante pode ser lido por muitos militantes, se não houver um filtro adequado. A leitura espontânea e aleatória de repasses não é nossa intenção e não melhora as condições de nossa luta. Um Conselho Editorial que filtre esses repasses é central para melhorar a eficiência de nossa comunicação.
Um aplicativo, claro, pode fazer isso, mas o jornal exige essa prática. Isso não significa que a leitura de qualquer repasses deveria ser vedada aos comunistas. Mas ela não é necessária. A leitura dos repasses filtrados pelo Conselho Editorial é a base, o mínimo que precisamos garantir, e isso já nos ajudaria a avançar anos-luz à frente do ponto em que estamos em matéria organizativa. Após essa garantia, é plenamente possível acessar o restante dos repasses de forma complementar. Assim, o jornao garante que nenhum camarada perde tempo lendo um repasse qualquer, sem impedir que cada camarada acesse qualquer repasse se necessário.
Da mesma forma, outro papel central do jornal (e da revista teórica) é a organização temporal dessa leitura. Diferente da comunicação instantânea das redes sociais e dos aplicativos, os meios impressos possuem dia para sair. Nesse momento em que a polêmica foi obrigada a surgir nas redes, a comunicação instantânea cobrou um altíssimo preço. Diversos militantes relataram que não conseguiram trabalhar ou estudar justamente porque a qualquer momento surge uma novidade nas redes, um texto, o repasse de um apoio.
As redes sociais e a comunicação instantânea geram uma dependência e manipulam nossa atenção de uma forma pouquíssimo saudável. A juventude comunista grega (KNE) organiza, hoje, uma firme campanha contra os excessos das redes sociais na juventude, mesmo usando as redes para realizar agitação e propaganda, de forma organizada. Essa postura nos era impossível por conta da falta completa de democracia interna e da ausência de estruturas de agitação e propaganda profissionalizadas. Mas não podemos, por conta disso, rebaixar nossa consciência ao nível de que essas formas de comunicação sejam tão centrais para a nossa militância que não possamos pensar em abandoná-la.
Uma organização temporal, não instantânea, dos repasses e polêmicas é fundamental para garantirmos a repercussão dessas matérias, a sua leitura, e a possibilidade de que todos os camaradas, especialmente os que trabalham, consigam participar de forma completa da vida intelectual da organização. Isso não significa abandonar o uso dos meios de comunicação instantânea e das redes sociais, mas saber organizá-los e seus limites: não podem servir como organizadores coletivos, mesmo sendo excelentes complementos que garantem um funcionamento ágil da militância em um organismo e ferramentas importantes para a agitação e a propaganda.
E por fim, mas não menos importante, o jornal é também uma estrutura financeira. Não apenas sua própria venda deve gerar receitas para a organização, como ele também estabelece uma rede de contatos de aproximados que pode servir para os pedidos extraordinários de fundos (circulismo), bem como também garante uma vitrine importante para outros materiais impressos da organização, como outros livros, brochuras, e, inclusive, as Teses Congressuais.
Na Grécia, o jornal Rizospastis (O Radical), do KKE, foi o mais vendido do país em todos os fins de semana de publicação das pré-teses do XXI Congresso, em 2021 (no meio da pandemia). Foram dezenas de milhares de cópias vendidas por todo o país, o que certamente ajudou a distribuir não só o jornal, mas as propostas políticas do CC do KKE para o próximo período, o que incluiu não poucas autocríticas públicas, ajudando a aumentar a confiança do Partido entre as massas e o pensamento crítico dos trabalhadores.
Da mesma forma, o jornal também pode servir para distribuir, em conjunto, encartes de matérias próprias de cada local de atuação, a depender do nível organizativo.
Elenquei todos esses pontos (que, imagino, não exaurem as potencialidades do jornal) para expressar que um jornal segue sendo imprescindível para nossa organização. Um aplicativo é uma ótima ideia, mas ele não pode cumprir o papel proclamado de organizador coletivo e de forma alguma consegue substituir o jornal. Sua funcionalidade é acessória. Nesse sentido, questiono se nossa prioridade deveria ser organizar os militantes programadores para programar e manter esse aplicativo, enquanto ainda não temos jornal, não temos revista teórica, e mesmo nossos sites ainda são bastante amadores (um destaque pro glorioso "C" no cabeçalho do site da juventude).
Não creio que a necessidade de orientações dinâmicas possa ofuscar essa prioridade, porque as mensagens instantâneas já são bem suficientes para esse tipo de adaptação dinâmica, quando os organismos funcionam corretamente. Por outro lado, essas mensagens e essa forma de comunicação não conseguem cumprir todas as funções que o jornal concentra. De outro lado, um sistema de mensagens não pode suprir a necessidade de dinamismo na organização, a qual tem como fundamento principal a autonomia e o espírito de iniciativa das organizações de base. Do contrário, mesmo com os sistemas mais ágeis, é impossível que um organismo superior se informe de todos os detalhes do que acontece e dê as orientações para cada ação. Qualquer sistema de comunicação jamais superará o espírito vivo do Partido leninista: uma militância de base consciente e criativa, capaz de se orientar pelas guias gerais no Partido mas mediá-las, sem rebaixá-las, a cada momento conjuntural e a cada local de atuação para alcançar os objetivos necessários (no princípio da máxima flexibilidade tática, máxima rigidez estratégica). É o que Lenin denomina de "espírito de iniciativa" das bases, algo que frequentemente foi tolhido pelas frações academicistas e obreiristas que dominaram o PCB.
Dessa forma, a estruturação de um jornal leninista e de uma revista teórica devem ser a prioridade para a organização de um Partido revolucionário, e uma necessidade inadiável para nossa organização, mesmo mais de um século após a escrita de O que fazer?.