'Jogando para perder: o aborto voltou ao debate nacional, mas seguimos fracasando na disputa pela sua hegemonia' (Larissa Figueiredo)

Ou nos autocriticamos e passamos a encarar as lutas contra as opressões de gênero, raça e sexo como eixos políticos tão passíveis de refinos táticos quanto os demais, ou seguiremos perdendo a disputa da consciência das massas para as canetadas do STF.

'Jogando para perder: o aborto voltou ao debate nacional, mas seguimos fracasando na disputa pela sua hegemonia' (Larissa Figueiredo)
"Muito se fala sobre o avanço exponencial das compreensões liberais em torno de gênero (e também de sexualidade, raça...) nas últimas décadas, mas pouco discutimos sobre o fato de que a correlação de forças que subscreve esse cenário dificilmente irá se alterar se seguirmos encarando gênero, raça e as sexualidades heterodiscordantes como meros apêndices da exploração da força de trabalho nesta quadra histórica."

Por Larissa Figueiredo para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

A ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, em vias de deixar a sua vaga na suprema corte, deu seguimento à ADPF 442 que propõe a descriminalização do aborto até a 12ª semana gestacional. O texto proposto pela bancada do PSOL em 2017, traz fundamentações contundentes no que se refere ao cenário do abortamento no Brasil e aos próprios entendimentos que a suprema corte já vinha estabelecendo direta ou indiretamente sobre o material embrionário e a interrupção da gravidez. Neste texto, feito às pressas apenas para que o tema não passe, mais uma vez, sem qualquer apreciação crítica por parte de todos nós, rascunho brevemente o cenário do aborto no Brasil, faço uma brevíssima retrospectiva histórica e discorro um pouco sobre o que parecem ser nossas principais falhas políticas. Torço para que os camaradas me complementem, corrijam e aprimorem este debate, pois é sempre frustrante a sensação de “estar falando sozinha” ou de discutir o tema apenas e tão somente com o mesmo grupo reduto de camaradas desconfortáveis com os rumos políticos deste enfrentamento.

1) O cenário

Há época da propositura, o cenário resumia-se nos seguintes termos: entre os anos de 2015 e 2016, 471 mil mulheres haviam realizado aborto em condições urbanas e 503 mil em condições não urbanas. A pesquisa ainda apresenta mais:

Considerando que grande parte dos abortos é ilegal e, portanto, feito fora das condições plenas de atenção à saúde, essas magnitudes colocam, indiscutivelmente, o aborto com um dos maiores problemas de saúde pública do Brasil. O Estado, porém, é negligente a respeito, sequer enuncia a questão em seus desenhos de política e não toma medidas claras para o enfrentamento do problema (p. 659).

Sem levantar grandes surpresas, mas também sem inspirar – infelizmente – grandes mobilizações por parte da própria esquerda, a expressão mais categórica do abortamento no Brasil não poderia ser outra:

O aborto é frequente na juventude, mas também ocorre com muita frequência entre adultas jovens. Essas mulheres já são ou se tornarão mães, esposas e trabalhadoras em todas as regiões do Brasil, todas as classes sociais, todos os grupos raciais, todos os níveis educacionais e pertencerão a todas as grandes religiões do país. Isto não quer dizer, porém, que o aborto ocorra de forma homogênea em todos os grupos sociais. Há diferenças que merecem atenção de análises adicionais, em particular as maiores taxas entre mulheres de baixa escolaridade e renda, pretas, pardas e indígenas, além das expressivas diferenças regionais (p. 659).

O número dos abortos e das interecorrências a eles atrelados, quando praticadas sem o devido acompanhamento de uma equipe de saúde, declinaram no país entre 2016 e 2021. Ambas as pesquisas reconhecem, no entanto, as limitações destes diagnósticos dentro do escopo metodológico que se fez possível aos próprios levantamentos: as entrevistas foram realizadas em uma amostra representativa de 2.000 mulheres selecionadas aleatoriamente com idades entre 18 e 39 anos e residentes em áreas urbanas. No mais, a criminalização do abortamento não apenas aumenta o risco à vida das pessoas que recorrem ao procedimento, mas compromete o próprio mapeamento do aborto em um país de extensões continentais, marcado por profundas desigualdades regionais e ainda insuficiente tanto em termos da capilaridade da rede de acesso à saúde, quanto da própria rede de proteção à vítima de violência doméstica – um assunto que se entrelaça à gravidez indesejada, mas que não tentarei tratar em outro momento.

2) Brevíssima cronologia dos avanços jurídico-“políticos”

Numa breve incursão sobre os pequenos avanços que viemos conquistando em torno do direito ao aborto desde 1988, temos alguns marcos importantes:

  • Em 2004 o Supremo Tribunal Federal recusa a concessão do abortamento para um caso de anencefalia. A pessoa em questão foi submetida a todas as dificuldades e custos de um processo gestacional, mas o feto não sobreviveu (HC 84.025);
  • Em 2008, o Supremo Tribunal Federal autoriza entende que a pesquisa com células-troco embrionárias não são uma violação à vida, compreensão que respalda o argumento fundamental dos movimentos feministas de que as fases embrionárias iniciais não podem, a rigor, ser entendidas como vidas (ADI 3.510);
  • Em 2012, não sem muita mobilização das mulheres, o Supremo Tribunal Federal autoriza o abortamento em caso de anencefalia (ADPF 54);
  • Em 2016, após a repercussão mais um caso de manutenção forçada da gravidez por parte da auoridade religiosa de um padre, o Supremo Tribunal Federal estende o direito ao abortamento às “outras malformações incompatíveis com a vida”;
  • Interposição da própria ADPF 442 e dos termos sob os quais se fundamenta, deixando claro que o Supremo, ainda que uma instituição burguesa, já tem inclinado-se a entendimentos que, somados ao cenário deseducação sexual de jovens e adolescentes e da cultura do estupro que ainda vitima muitas pessoas, é passível de reavaliação pela suprema corte.;

3) Brevíssimas considerações políticas

É bem verdade que os movimentos feministas marcaram sua presença para assegurar os avanços e a concretização dos direitos supracitados. No entanto, uma profunda autocrítica ainda assinala a nossa atuação revolucionária diante desta luta: pouco discutimos sobre as reais limitações políticas de uma descriminalização que vai se constituindo mais pelas canetadas do STF do que por um efetivo e radical trabalho de hegemonia proletária conduzido entre as massas. Coloco isso sem qualquer desrespeito político ao PSOL, obviamente, mas dentro de um entendimento mais amplo do nosso papel de sujeitos da história, para procurar localizar as nossas responsabilidades enquanto revolucionários na condução dessa disputa para além da sua dimensão jurídico-formal.

Muito se fala sobre o avanço exponencial das compreensões liberais em torno de gênero (e também de sexualidade, raça...) nas últimas décadas, mas pouco discutimos sobre o fato de que a correlação de forças que subscreve esse cenário dificilmente irá se alterar se seguirmos encarando gênero, raça e as sexualidades heterodiscordantes como meros apêndices da exploração da força de trabalho nesta quadra histórica. Medidas como a Reforma da Previdência tem o real potencial de provocar, no curto-médio prazo, o empobrecimento e até mesmo a miséria de mulheres negras e idosas; a Reforma Trabalhista tem produzido um verdadeiro strike nos trabalhadores exigindo jornadas cada vez mais estapafúrdias de trabalho da todos nós, mas principalmente de jovens com menor instrução formal; o escancarado desfinanciamento do SUS aumenta vulnerabilidade dos trabalhadores LGBT+ e amplia carga de trabalho não pago não só para as equipes de saúde, como para as próprias mães, tias, avós e esposas, historicamente responsáveis por toda a reprodução de uma “mercadoria especial” – como diria Marx – a força de trabalho.

Se ainda não me fiz clara o suficiente, camaradas, traço um último paralelo: se assumimos uma política de enfrentamento conjunto [com as demais forças políticas] ao Bolsonaro sem deixar de demarcar a nossa posição política sobre a função de classe do bolsonarismo nesta quadra histórica, porque não temos feito o mesmo – pelo menos não com o mesmo alcance e veemência – na hora de cravar que defendemos, sim, a universalização do direito ao aborto seguro e gratuito às pessoas que gestam, mas delimitando categoricamente as nossas divergências os segmentos feministas pequenos-burgueses?

Encerro pela repetição: ou nos autocriticamos e passamos a encarar as lutas contra as opressões de gênero, raça e sexo como eixos políticos tão passíveis de refinos táticos quanto os demais, ou seguiremos perdendo a disputa da consciência das massas para as canetadas do STF.

Saudações comunistas,

Rumo ao XVII Congresso Extraordinário do PCB