JBS e o trabalho em frigoríficos: um primeiro rascunho
São muitos os casos relatados de trabalhadores que sofrem com lesões, doenças e amputações, alguns sem condições de retornar a qualquer tipo de trabalho. As grandes empresas conseguem burlar a legislação e são quase sempre isentas de responsabilidade quanto aos processos de adoecimentos laborais.
Artigo de opinião por Gabriel Colombo
O desenvolvimento do capitalismo no campo implica na subordinação da agricultura à indústria. Em outras palavras, é a agroindústria o fator determinante na produção agropecuária. No caso específico da produção de carnes, são os frigoríficos que controlam o setor, de modo que lavouras e granjas estão subordinadas às suas demandas. Os frigoríficos são monopolizados por grandes empresas que produzem para o mercado nacional e para a exportação, com destaque para JBS, Marfrig e BRF, cujas receitas líquidas em 2022 foram: 374,8 bilhões de reais, 130,6 bilhões de reais e 53,8 bilhões de reais, respectivamente, segundo o Ranking das 1000 maiores empresas do jornal Valor Econômico.
A participação dos frigoríficos é expressiva na balança comercial brasileira (Tabela 1). A exportação de carne bovina, de aves e suína somadas foi equivalente a 21,1 bilhões de dólares (superior a 100 bilhões de reais) e 7,9 bilhões de toneladas em 2023. Se consideradas em conjunto, ocupam o primeiro lugar entre os produtos exportados da indústria de transformação brasileira. Se separadas, a exportação de carne bovina e de carne de aves ocupam a quarta e quinta posição, respectivamente.
O apoio econômico e político do Estado foi fundamental para impulsionar as principais empresas do setor, principalmente a partir da chamada política das “campeãs nacionais”, iniciada no segundo governo Lula com o programa Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) (PINA, 2024). O objetivo foi criar grandes empresas monopolistas nacionais, promover o desenvolvimento industrial, aumentar as exportações e disputar o mercado internacional. Os instrumentos utilizados foram fundamentalmente crédito com juros abaixo do praticado pelo mercado e compra de ações, ambas através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Cabe destaque para o fato do BNDES ter como principal fonte de recursos o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). O Fundo é oriundo de tributos pagos pelas empresas privadas e públicos e tem como objetivos: “i) fomentar a geração e a manutenção de trabalho, emprego e renda; ii) amparar os trabalhadores em situação de vulnerabilidade; iii) contribuir para o aumento da empregabilidade do trabalhador; e iv) promover o desenvolvimento econômico e social do País”.
A JBS é o principal resultado desta política no setor de carnes, pois tornou-se a maior empresa produtora de proteína animal do mundo e possui até hoje participação acionária do BNDES (Figura 1). O apoio do Estado foi fundamental para o crescimento desta empresa, como base de confiança para investidores no mercado de ações, para a estratégia de expansão da empresa via aquisição de concorrentes em períodos de crise (Figura 2) e para abertura de mercados via diplomacia brasileira (PINA, 2024).
Em 2022, a JBS foi a segunda maior empresa brasileira, considerando a receita líquida, ficando atrás somente da Petrobrás. Naquele ano, o lucro da atividade da JBS foi superior a 22 bilhões de reais (RANKING, 2023). Os irmãos Joesley e Wesley Batista, proprietários da J&F Investimentos e maiores acionistas da JBS, figuram entre os 20 maiores bilionários brasileiros em 2024. Cada um dos irmãos possui uma fortuna de 3,3 bilhões de dólares, o que equivale a 17,45 bilhões de reais (BENFICA, 2024).
Portanto, o objetivo da política desenvolvimentista das campeãs nacionais foi alcançado com sucesso no caso da JBS, pelo menos. A aliança entre a família Batista e o Estado, principalmente sob os governos petistas, foi fundamental para tornar a JBS uma empresa monopolista mundial. O antigo açougue de José Batista Sobrinho (JBS), pai dos irmãos Joesley e Wesley, tornou-se o maior frigorífico do mundo.
Vejamos alguns dados divulgados pela própria empresa:
Se a JBS começou, no interior de Goiás, produzindo apenas proteína bovina, hoje é uma das maiores empresas de alimentos do mundo, com 270 mil colaboradores, 150 marcas, 600 unidades produtivas e 350 mil clientes em 190 países. Em particular, ao longo dos últimos 15 anos, a expansão da companhia buscou constituir uma plataforma diversificada e global de produtos, que contemplam os mais diversos tipos de proteína, como aves, suínos, pescados e plant-based (JBS, 2024).
Toda esta riqueza produzida nos frigoríficos se assenta na exploração dos trabalhadores e dos recursos naturais brasileiros. A precariedade das condições de trabalho no abate de aves, suínos e bovinos é gritante e tem sido objeto constante de denúncias realizadas por auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho, servidores da previdência social e sindicatos do setor alimentício, com repercussão em jornais como Brasil de Fato, Repórter Brasil e Le Monde Diplomatique. Estes meios também divulgam a relação dos frigoríficos de abate de bovinos com pecuaristas que promovem desmatamento ilegal, invasão de terras indígenas e grilagem de terras públicas.
Há mais de 500 mil trabalhadores e trabalhadoras ocupados em frigoríficos no país (Figura 3). Segundo Pina (2024), somente a JBS emprega 113 mil operários, mas a autora não especifica se todos estão nos frigoríficos. De todo modo, a média salarial dos operários da JBS é de R$ 1.700,00, segundo estudos de Pina com base em atas de acordo coletivo em 12 estados brasileiros. Isto é equivalente a pouco mais de um salário mínimo federal.
Enquanto os trabalhadores recebem uma ninharia, a JBS distribuiu um bilhão de dólares aos acionistas tanto em 2022 quanto em 2023. A política da empresa estabelece que “pelo menos 25% dos lucros devem ser divididos com os acionistas” (PINA, 2024, p.26). Outra fatia expressiva dos resultados “é destinada à expansão, sendo cerca de 70% canalizado rotineiramente para a Reserva Estatutária para crescimento futuro” (PINA, 2024, p. 28).
O salário pago pelos frigoríficos faz com que as condições de vida destes trabalhadores sejam precárias, levando-os a morar em ocupações e nas periferias das cidades. Essas condições foram relatadas em reportagens veiculadas nos meios citados anteriormente, sendo perceptíveis também no documentário “Carne e osso: o trabalho em frigoríficos”.
Quanto às denúncias das condições de trabalho, destacam-se os casos de adoecimento e acidentes de trabalho (ALIAGA et al, 2021; RAMOS, 2023). O trabalho em abates é o terceiro em número de Comunicados de Acidentes de Trabalho (CAT) no Brasil, mesmo com a estimativa de subnotificação na ordem de 70% a 90% (ANPT, 2017). São cerca de 20 mil acidentes por ano (Figura 4).
Procuradores do trabalho ressaltam as condições que levam ao alto índice de acidente (ALIAGA et al., 2021):
Mesmo após, a aprovação em 2013 da NR 36 [...], trabalhadores em frigoríficos chegam a realizar setenta, oitenta e até noventa movimentos por minuto, em ambientes frios, com baixas taxas de renovação do ar, riscos de amputações, vazamentos de amônia, prorrogações de jornada em atividades insalubres, emprego de força excessiva, deslocamento de cargas, exposição a agentes biológicos e químicos, vibrações, quedas, posturas inadequadas, acidentes com facas, dentre outras ameaças. Poucas atividades humanas concentram tantos fatores de risco quanto os frigoríficos.
São muitos os casos relatados de trabalhadores que sofrem com lesões, doenças e amputações, alguns sem condições de retornar a qualquer tipo de trabalho. As grandes empresas conseguem burlar a legislação e são quase sempre isentas de responsabilidade quanto aos processos de adoecimentos laborais (LOCATELLI, 2016). A responsabilidade passa a ser pública, do INSS. Servidores do INSS alegam que o verdadeiro “rombo da previdência” é o provocado pelas grandes empresas que exploram e adoecem os trabalhadores e não pagam por isso, sobrecarregando o sistema de seguridade social. Para ter uma compreensão geral do problema, é recomendável assistir ao documentário já mencionado “Carne e Osso: o trabalho em frigoríficos”.
As principais mobilizações trabalhistas no setor apresentam reivindicações relacionadas às condições de trabalho. Há diversas lutas pela redução da jornada de trabalho, assim como o Projeto de Lei do Senado (PLS) 436/2012 para reduzir a jornada para 6h/dia e 36h/semana.
Outro ponto diz respeito ao cumprimento da Norma Regulatória 36 (NEVES e REINHOLZ, 2023), que prevê “pausas de recuperação psicofisiológicas” de 10 minutos a cada hora trabalhada ou de 20 minutos a cada 1h40 trabalhadas. Nas reportagens, auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho e sindicalistas relataram dificuldades para efetuar a fiscalização do cumprimento da NR 36 nas fábricas.
Ainda, uma terceira reivindicação por parte dos profissionais citados acima é a redução do ritmo do trabalho. Realmente, é assustador assistir à intensidade de movimentos repetitivos no processo de desossa e corte das carnes. São até 90 movimentos por minuto, enquanto o recomendado para o trabalho saudável em temperaturas frias, como em frigoríficos, é até 35 movimentos por minuto. Portanto, junto com a redução da jornada de trabalho, há uma reivindicação para a contratação de mais trabalhadores por fábrica, de modo a reduzir a intensidade de trabalho de cada um.
Por fim, é importante registrar que há relatos de demissões de trabalhadores que denunciaram as condições de trabalho e transporte na JBS. Porém, com organização, unidade e luta coletiva é possível vencer os patrões, arrancando conquistas para os trabalhadores e impondo limites à exploração brutal dos barões da carne.