Início do ascenso espontâneo

Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora. A história de todos os países atesta que, pela próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical [...].

Início do ascenso espontâneo
"A experiência revolucionária e a habilidade de organização são coisas que se adquirem. É preciso apenas desenvolver em nós mesmos as qualidades necessárias! É preciso que tenhamos consciência de nossos defeitos, o que, no trabalho revolucionário, já é mais de meio caminho para os corrigir."

Vladímir Ilitch Uliánov Lênin

Excerto de Que Fazer?, publicado em Março de 1902

Traduzido a partir de marxists.org


No capítulo anterior assinalamos o entusiasmo generalizado da juventude russa instruída pela teoria marxista, por volta de 1895. Foi também nessa mesma época, que as greves operárias — após a famosa guerra industrial de 1896, em Petersburgo [1] — revestiram-se de um caráter geral. Sua extensão por toda a Rússia atestava claramente a profundidade do movimento popular que de novo surgia, e se falamos do “elemento espontâneo”, é certamente nesse movimento de greves que devemos considerá-lo, antes de tudo. Mas, há espontaneidade e espontaneidade. Houve, na Rússia, greves nas décadas de 1870 e 1880 (e mesmo na primeira metade do século XIX), que foram acompanhadas da destruição “espontânea” de máquinas etc. Comparadas a esses “motins”, as greves após 1890 poderiam mesmo ser qualificadas de “conscientes”, tal foi o progresso do movimento operário nesse intervalo. Isto nos mostra que o “elemento espontâneo”, no fundo, não é senão a forma embrionária do consciente. Os tumultos primitivos já traduziam certo despertar da consciência: os operários, perdiam sua crença costumeira na perpetuidade do regime que os oprimia; começavam... não direi a compreender, mas a sentir a necessidade de uma resistência coletiva, e rompiam deliberadamente com a submissão servil às autoridades. Era, portanto, mais uma manifestação de desespero e de vingança do que uma luta. O que temos com as greves de 1890 são muito mais lampejos de consciência: formulam-se reivindicações determinadas, procura-se prever o momento favorável, discutem-se as experiências e os exemplos de outras regiões etc. Se os motins eram, simplesmente, a revolta dos oprimidos, as greves sistemáticas representavam os embriões da luta de classes, todavia nada mais que embriões. Tomadas em si mesmas, essas greves constituíam uma luta sindical, mas não ainda social-democrata; marcavam o despertar do antagonismo entre operários e patrões; porém, os operários não tinham, e não podiam ter, consciência da oposição irredutível de seus interesses com toda a ordem política e social existente. Quer dizer: não tinham consciência social-democrata. Nesse sentido, as greves após 1890, apesar do imenso progresso que representaram em relação aos “motins”, continuavam a ser um movimento essencialmente espontâneo.

Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora. A história de todos os países atesta que, pela próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso reunir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc. [2] Já a doutrina socialista, nasceu das teorias filosóficas, históricas, econômicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais. Os próprios fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels, pertenciam eles próprios, pela sua situação social, aos intelectuais burgueses. Da mesma forma, na Rússia, a doutrina teórica da social-democracia surgiu de maneira completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário; foi o resultado natural, inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais revolucionários socialistas. Nessa época, meados dos anos 1890, essa doutrina constituía não apenas o programa perfeitamente estabelecido do grupo “Emancipação do Trabalho”, mas também conquistara para si a maioria da juventude revolucionária da Rússia.

Assim, pois, houve ao mesmo tempo um despertar espontâneo das massas operárias, despertar para a vida consciente e para a luta consciente, e uma juventude revolucionária que, armada da teoria social-democrata, buscava aproximar-se dos operários. Quanto a isso, é particularmente importante estabelecer este fato esquecido com frequência (e relativamente pouco conhecido), de que os primeiros social-democratas desse período, que se dedicavam com ardor à agitação econômica (contando, para isso, com as indicações verdadeiramente úteis do folheto Sobre a Agitação [3], à época ainda um manuscrito) longe de considerar essa agitação como sua tarefa única, atribuíam desde o começo à social-democracia russa as grandes tarefas históricas, em geral, e a tarefa da derrubada da autocracia, em particular. Assim, o grupo dos sociais-democratas de Petersburgo, que fundou a “União de Luta pela Emancipação da Classe Operária” [4] redigiu, já em fins de 1895, o primeiro número de um jornal intitulado Rabótcheie Dielo. Pronto para ser impresso, esse número foi apreendido pelos policiais numa busca efetuada na noite de 8 para 9 de dezembro de 1895, em casa de um dos membros, do grupo, A. A. Vaneiev [5] de forma que o Rabótcheie Dielo do primeiro período não pôde ver a luz do dia. O editorial desse jornal (que, talvez, em trinta anos uma revista como a Russkaia Stariná [6] exumará dos arquivos do departamento de polícia) expunha as tarefas históricas da classe operária na Rússia, entre as quais colocava-se em primeiro plano a conquista da liberdade política. Seguiam-se um artigo, “Em que Pensam Nossos Ministros?” [7] sobre o saque dos Comitês de Instrução Elementar pela polícia, bem como uma série de artigos de correspondentes, não só de Petersburgo, como de outras localidades da Rússia (por exemplo, sobre um massacre de operários na província de Yaroslavl [8]). Assim, se não me engano, esse “primeiro ensaio” dos social-democratas russos da década de 1890 não era um jornal estritamente local, e ainda menos de caráter “economicista”; visava a unir a luta grevista ao movimento revolucionário dirigido contra a autocracia e levar todos os oprimidos, vítimas da política do obscurantismo reacionário, a apoiar a social-democracia. E para quem quer que conheça um pouco o estado do movimento nessa época, está fora de dúvida que um jornal como esse encontrou toda a simpatia dos operários da capital e dos intelectuais revolucionários, e teve a mais ampla difusão. O fracasso do empreendimento provou simplesmente que os social-democratas de então eram incapazes de corresponder às exigências do momento, por falta de experiência revolucionária e de preparação prática. O mesmo se deve dizer do Rabótchaia Listok [9] de São Petersburgo, e sobretudo da Rabótchaia Gazeta e do Manifesto do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, fundado na primavera de 1898. Subentenda-se que não nos passa pela cabeça a ideia de censurar os militantes da época pela sua falta de preparação. Mas, para aproveitar a experiência do movimento e daí extrair lições práticas, é preciso considerar extensivamente as causas e a importância desse ou daquele defeito. Por isso, é extremamente importante estabelecer que uma parte (talvez mesmo a maioria) dos social-democratas militantes de 1895-1898 considerava, com justa razão, possível já naquela época, no começo mesmo do movimento “espontâneo”, defender um programa e uma tática de combate os mais amplos [10]. A própria falta de preparo entre a maior parte dos revolucionários, sendo um fenômeno perfeitamente natural, não podia dar lugar a qualquer apreensão particular. A partir do momento em que as tarefas eram bem definidas; a partir do momento em que se possuía bastante energia para tentar de novo realizá-las, os fracassos momentâneos constituíam apenas um mal menor. A experiência revolucionária e a habilidade de organização são coisas que se adquirem. É preciso apenas desenvolver em nós mesmos as qualidades necessárias! É preciso que tenhamos consciência de nossos defeitos, o que, no trabalho revolucionário, já é mais de meio caminho para os corrigir.

Mas, o que era um mal menor tornou-se uma verdadeira desgraça, quando esta consciência começou a se obscurecer (porém, ela era bastante viva entre os militantes dos grupos acima mencionados), quando surgiram pessoas — e mesmo órgãos social-democratas — prontas a erigir os defeitos em virtudes, e tentando mesmo justificar teoricamente sua idolatria, seu culto da espontaneidade. É tempo de fazer o balanço dessa tendência, caracterizada de maneira muito inexata pelo termo “economicismo”, demasiado limitado para exprimir o seu conteúdo.


Notas

[1] Lênin se refere à greve de massas dos operários têxteis de Petersburgo, que se desenrolou entre os meses de maior e junho de 1896. Foi liderada pela “União de Luta pela Emancipação da Classe Operária” daquela cidade, que fez campanha panfletária mobilizando os operários para defesa, firme e conjunta, de seus direitos. A “União de Luta” difundia as principais reivindicações dos operários: redução da jornada de trabalho para dez horas e meia, aumento dos salários, pagamento regular etc. As greves de Petersburgo contribuíram para o desenvolvimento do movimento grevista em toda a Rússia e obrigaram o governo czarista a acelerar a revisão das leis fabris e a promulgar uma nova lei, em 2 (14) de junho de 1897, reduzindo a jornada de trabalho nas fábricas e oficinas para onze horas e meia.

[2] Nota do autor — O sindicalismo não descarta de modo algum toda a “política”, como por vezes se pensa. Os sindicatos sempre conduziram uma relativa agitação e luta políticas (mas não social-democrata). No capítulo seguinte, mostraremos a diferença entre a política sindical e a política social-democrata.

[3] Escrito em 1894, resumia a experiência do trabalho social-democrata em Vilno e continha apelos para que renunciasse à propaganda em círculos restritos e se passasse à agitação de massas entre os operários, com base nas suas necessidades e reivindicações cotidianas. No entanto, a ênfase atribuída à luta puramente econômica, em prejuízo da agitação política exigindo direitos e liberdades de caráter democráticos geral, acabou se plasmando no germe do futuro “economicismo”.

[4] A “União de Luta pela Emancipação da Classe Operária”, organizada por Lênin no outono de 1895, agrupava cerca de 20 círculos operários marxistas de Petersburgo. Todo o trabalho da “União de Luta” se baseava nos princípios do centralismo e numa rigorosa disciplina. Acima da organização havia o Grupo Central, dirigido por Lênin. Na noite de 8 para 9 (de 20 para 21) de dezembro de 1895, grande parte dos militantes da “União” foi presa, entre eles o próprio Lênin. Foi apreendido o primeiro número de Rabótcheie Dielo já preparado para composição. Na prisão, Lênin continuou a dirigir as atividades da “União” por meio de orientações, cartas e panfletos cifrados. Além disso, redigiu a brochura “Sobre as greves” e “Projeto e explicação do Programa do Partido do Social-Democrata”. A importância da “União de Luta pela Emancipação da Classe Operária” de Petersburgo consistiu, segundo Lênin, no fato de ter sido o germe do partido revolucionário, apoiada no movimento operário e dirigindo a luta de classe do proletariado. Os membros da organização que continuaram em liberdade prepararam o I Congresso do POSDR e elaboraram o Manifesto, publicado em seguida. Mas a prolongada ausência dos fundadores da “União”, especialmente de Lênin, deportados para a Sibéria, favoreceu o oportunismo político dos “jovens”, “economicistas” que desde 1897, através da Rabótchaia Myls, tratavam de introduzir ideias do sindicalismo inglês e do bernsteinianismo. A partir da segunda metade de 1898, a direção da “União” passou às mãos dos mais declarados “economicistas”.

[5] Nota do autor — A. A. Vaneiev morreu em 1899, na Sibéria Oriental, de uma tuberculose contraída quando se encontrava incomunicável, em prisão preventiva. Por isso, consideramos possível publicar a informação contida no texto, cuja autenticidade garantimos, pois que provém de pessoas que o conheciam, pessoal e intimamente.

[6] O editorial “Aos Operários russos” escrito por Lênin para o jornal Rabótcheie Dielo não foi encontrado até hoje. A revista histórica Russkaia Stariná (Antiguidade Russa) foi publicada mensalmente em Petersburgo, entre 1870 e 1918.

[7] https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1895/dec/31.htm

[8] Lênin faz alusão à repressão aos operários grevistas da Grande Manufatura de Yaroslavl, em 27 de abril (9 de maio) de 1895. A greve, da qual participaram mais de 4.000 operários, foi provocada pela introdução de novas tarifas que reduziam os salários e acabou sendo brutalmente reprimida. O artigo de Lênin sobre a greve não foi encontrado até hoje.

[9] Boletim Operário de São Petersburgo: órgão da “União de Luta pela Emancipação da Classe Operária” de Petersburgo, que teve apenas dois números publicados. Foi o órgão que introduziu a tarefa de unir a luta econômica da classe operária às amplas reivindicações políticas, assinalando a necessidade de criação de um partido operário.

[10] Nota do autor — “Ao manter uma atitude negativa em relação à atividade dos social-democratas de fins da década de 1890, o Iskra não leva em conta que à época não existiam condições para um trabalho que não fosse a luta por pequenas reivindicações”, dizem os “economicistas” em sua “Carta aos Órgãos Social-Democratas Russos” (Iskra n. 12). Os fatos presentes no texto demonstram que a afirmação acerca da “inexistência de condições” é diametralmente oposta à verdade. Não somente no final, mas em meados dos anos 1890 já existiam todas as condições para se desenvolver outro trabalho, além da luta por pequenas reivindicações; havia todas as condições, exceto o suficiente preparo dos dirigentes. E eis que, em vez de reconhecer com franqueza o despreparo da nossa parte (dos ideólogos, dos dirigentes), o “economicistas” querem jogar a responsabilidade para a “inexistência de condições”, para a influência da realidade objetiva que determina o caminho do qual nenhum ideólogo conseguirá desviar o movimento.