'Hat-trick – A Organização que Traz o Hexa' (Boto Vermelho, Harpia Dourada, Lhama Roxa, Capivara Tabagista e Mimercofaga)
Essa tribuna surge através de um debate que ocorre há anos no partido e acúmulo de camaradas que são da organização e daqueles que já saíram ou se foram. O objetivo dela é tanto ser uma memória histórica de uma possível resposta da pergunta “por que rachamos?".
Por Boto Vermelho, Harpia Dourada, Lhama Roxa, Capivara Tabagista e Mimercofaga para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Essa tribuna surge através de um debate que ocorre há anos no partido e acúmulo de camaradas que são da organização e daqueles que já saíram ou se foram. O objetivo dela é tanto ser uma memória histórica de uma possível resposta da pergunta “por que rachamos?”. Para alguns, foi somente por disputas do MCI; mas o que defendemos é que rachamos por conta da nossa antiga organização perseguir, invisibilizar e matar os nossos e se não tivermos uma mudança dessa história cíclica, estamos fadados a repetir esses mesmos erros e afundar com esse barco que atualmente nos encontramos acorrentados.
INTENÇÕES
Boto Vermelho: Esse documento se propõe a investigar algumas das questões em nosso próprio movimento, entendê-las e como nós podemos começar a responde-las. Para alcançar esse objetivo, foi usado como base intelectuais brasileiros e estrangeiros, tendo como tema o artista e pensador Djonga. Esse documento não se limita a responder tudo, mas é um convite para que comecemos a errar de forma diferente e, quem sabe, começarmos a acertar.
Tentamos refletir os desafios da construção de uma organização revolucionária capaz de cumprir a tarefa da mudança do Brasil de um país capitalista dependente, periférico, racista, misógino, lgbtfóbico, capacitista e colonizado, para uma pátria soberana de transição socialista para o comunismo. Entendemos tais questões como temas candentes e incontornáveis de nosso tempo histórico. Durante os debates levantados em várias tribunas, essas questões e, consequentemente, as respostas levantadas escapavam da avaliação do todo e incorriam em desvios semelhantes.
Harpia Dourada: As contribuições desta tribuna se apresentam a título de acréscimo, dúvidas e dores, bem como provocações e respostas quando possível, formuladas através de anos batendo a cara contra o muro que nos foi imposto, e que teve como resultado não só a nossa vitória ao ESBAGAÇAR o referido muro, bem como o desenvolvimento de um grupo de pessoas, algumas delas presentes neste artigo. Por não ter um repertório tão limitado como o de Boto Vermelho, acrescentarei também trechos que motivaram meus próprios comentários.
Lhama Roxa: Acho importante pontuar que a ideia geral desse escrito é incentivar o pensamento crítico de camaradas através da correlação de teoria, prática e o ‘lúdico’. Não sejamos inocentes, toda a trajetória até esse momento envolve luta – muita luta e luta inconvenientemente interna - e fomos capazes de aprender com algumas dores, exatamente por isso, intencionamos que os próximos não sigam iterando os mesmos erros. O clima geral atualmente é de “guerra entre nós e quem são os senhores?” O que se prova contraproducente e não é necessário usar mais de uma sinapse para compreender isso.
Busca-se então fomentar questionamentos, começar a formular soluções práticas e incentivar que considerem o contexto completamente descompassado em que temos operado como danoso a ninguém mais do que nós mesmos.
É preciso ser realista, camaradas... Estamos todos cansados. E muito desse cansaço se apresenta por ostensivamente esmurrar uma pontinha de faca que já anda torta e enferrujada – pensando no contexto geral e específico - e causa dor a quem esmurra e quase nenhum impacto à faquinha. Pensemos! Por nós, pelos nossos, por aquilo que consideramos basal e sejamos capazes de elaborar nossas possibilidades concretamente. É sempre muito bonito abordar academicamente, resumir, ler, debater e debater e debater, dar nomes, falar bonito e estender pautas intermináveis, sem encaminhar.
Realinhar, reconsiderar, especificar e fazer de novo mais 200 vezes é que complica, cansa, é desconfortável. Enquanto estivermos amarrados a nosso próprio vício teórico e à disputa de quem está mais correto, pouco se concretiza construtivamente, e aí? Parece que se repete o ciclo de cansaço mental do sistema moedor de dignidades que, em teoria, lutamos para mudar. Sejamos então capazes de pensar criticamente, maduros para reconhecer avanços - ainda que discordemos - e suficientemente alinhados com princípios coletivos, ou seguiremos dando murro em ponta de faca e pior, a referida faca seguirá ainda mais torta e enferrujada, mas não deixará de estar lá.
1 - MOTIVAÇÃO
“Falo o que tem que ser dito
Pronto pra morrer de pé
Pro meu filho não viver de joelho
Cê não sabe o que é acordar com a responsa
Que pros menor daqui eu sou espelho” – Djonga em Hat-trick
Boto Vermelho: Usarei durante o texto a canção do artista Djonga como espinha dorsal para sustentar o corpo dessa reflexão. Em alguns momentos, vou me permitir a liberdade poética de interpretar a letra para os fins desse documento. Em nenhum momento afirmo que isso foi ou é o que o artista pretendia dizer com sua letra.
Muitas pessoas se propuseram a analisar as questões de nosso país e uma parte delas entende que uma organização revolucionária de forma partido, ou semelhante a ela, seria a solução mais eficaz para a superação desses problemas.
Ainda assim, desde que comecei minha atuação coletiva, noto dores que são normalizadas como parte inevitável do problema dentro da organização e essas mesmas dores, por sua vez, impossibilitam a própria execução dos objetivos que a organização se propõe a resolver.
Lhama Roxa: Se me permite um adendo, reforço aqui a necessidade de sabermos quais as formas de atuação (e, ouso dizer, quais organizações) são realmente funcionais e permitem revalidações periódicas - porque esse funcionamento pode, de fato, existir e funcionar - para que possamos então, aderir a práticas que incentivem a camaradagem (figurativa e literalmente!), que criem acolhimento e espaço para TODAS as pessoas que se propõem a atuar e declara valores humanos aos que se colocam como revolucionários, se afastando da ideia de formigas operárias fazendo revolução. Ou tentando carregar folhas grandes demais, sem qualquer suporte.
Boto Vermelho: Gostaria de elencar quais dores me geraram esses incômodos e depois tratar das potências que acredito que podem nos ajudar a superar esses problemas.
1.1 – As dores
Várias dores e estranhamentos em minha experiência coletiva apareciam como particulares isolados. Várias perguntas surgiram e as tentativas de respostas internamente à organização foram proteladas ou vetadas. Enrolavam-se e quando se esgotavam as desculpas, negava-se o questionamento. Ao meu ver, isso era um sintoma.
Uma parcela crescente dos meus companheiros de atuação demonstrava as mesmas questões. Mais tarde, descobriria que travavam das mesmas lutas que eu tentava responder. Pouco a pouco, a realidade concreta se impôs aos discursos construídos e os tensionamentos se agravaram. Em pontos diferentes da organização, pessoas começaram a perceber que tinham os mesmos problemas e o mesmo fator em comum as impedia de buscar as respostas.
Vendo-se acuadas, algumas pessoas que se beneficiavam da não resolução desse problema, ao mesmo tempo que elas próprias sofriam com isso, decidiram por expulsar os que questionavam. Uma tragédia que beirou a comicidade em alguns momentos. Chegaram a tentar expulsar instâncias inteiras que ignoraram a expulsão e seguiram sua atuação. Em vez dos dirigentes expulsarem sua base, eles se retiraram perante o movimento das bases que seguiram unificadas contra a fração mandante. Seu trabalho prático não piorou com a ausência dos mandantes, mas passou a fluir melhor. O que faziam esses dirigentes?
Se 100 pessoas são lideradas por 10 e essas mesmas 10 pessoas resolvem expulsar as 90 a quem lideram, não expulsariam de fato os 90, apenas deixariam eles próprios a organização. O que é um líder sem liderados? Talvez ou uma pessoa delirante, se ela acreditar na própria ilusão, ou, se nem ela própria acreditar em suas mentiras, um golpista em busca de próximas vítimas.
Aderi, junto da maioria que atuava em minha região, ao Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB, publicado em 03 de Agosto de 2023, e ao XVII Congresso (Extraordinário) do PCB[1]:
“No último dia 30 de julho, em uma reunião virtual, a maioria do Comitê Central do PCB decidiu rechaçar o clamor da militância comunista pelo XVII Congresso (Extraordinário) do PCB, que poderia sanar de modo unitário e democrático a atual crise partidária. Além disso, do mesmo modo como iniciou a presente crise por meio de expulsões e perseguições, a maioria do Comitê Central optou também por tentar encerrá-la lançando mão de um expurgo – iniciado no CC, mas acrescido do indicativo aos Comitês Regionais de que promovam sua segunda onda.
Esse expurgo é um motivo a mais que se soma a muitos outros que já justificavam as razões e propostas aqui desenvolvidas, em que se destaca a realização do XVII Congresso (Extraordinário) do PCB.”
Da facção que perdeu o debate interno e se fez minoria mesmo com o aparelho partidário em mãos, chamarei de ala conservadora. Dos que continuaram seu trabalho, mesmo com a perseguição, até se libertarem, chamarei de ala transformadora. Elaboro essas categorias no capítulo 2.
Gostaria de tentar condensar os incômodos dentro da organização que me levaram ao questionamento em cinco pontos centrais. Três desses foram apresentados à ala conservadora que rejeitou sem entender. Talvez até hoje não entendam.
1.1.1 - Desmoralização e Saúde
“Cada vez mais objetivo
Pra que minhas irmãs deixem de ser objeto
E parece que liberaram o preconceito
Pelo menos antigamente esses cuzão era discreto” - Djonga em hat-trick
Desde que tive contato pela primeira vez com a organização que atuo hoje, lidei com pessoas em adoecimento, quebra de sua saúde física e mental, e em processo de desmoralização, quebra de sua vontade de atuar e sem condições psicológicas para estabelecer um raciocínio apurado do que está acontecendo ao seu redor.
Encontrei uma estrutura reativa. Depois de meses sem receber resposta do meu pedido de recrutamento. Fui a um ato nas ruas e solicitei que meu processo fosse seguido. Uma pessoa me contatou, a quem chamarei de recrutador. Esse recrutador me deu ghosting (ato de quando uma pessoa deixa de lhe responder em plataformas virtuais e se perde o contato). Fui a um ato por conta própria, encontrei o bloco da organização e informei do ocorrido. Depois de algumas semanas, consegui continuar meu processo de recrutamento com outras pessoas. A explicação que me foi dada é que meu recrutador estava com problemas de saúde mental.
Minha postura, na época, não foi responsabilizar a pessoa, mas me questionar sobre o porquê da organização não rotacionar a pessoa, quando estava indisponível, por outra. Dessa forma, eu entendia que não prejudicaria o processo de recrutamento e também preservaria o recrutador ferido emocionalmente.
Quando entrei em uma instância de atuação, não tive oportunidade de atuar com essa pessoa. Sua condição de saúde, assim como outras questões pessoais, como me foi apresentado, fizeram com que o mesmo não comparecesse pelos próximos 3 meses antes de sair da instância. Não tardou para descobrir que essa pessoa não era a exceção, mas a regra. Era normal ter metade das pessoas oficialmente participantes da instância ausentes por questões pessoais.
Ao mesmo tempo em que isso ocorria, outras pessoas se destacavam cumprindo sozinhas obrigações que seriam complexas para várias pessoas. Essas pessoas puxavam cada vez mais coisas para si na esperança de resolver as questões que se apresentavam. Havia um sentimento de que, se elas não fizessem, ninguém mais faria. E, se não fossem elas a fazer aquilo, as coisas deixariam de funcionar. Portanto, não podiam diminuir ou parar, até que sua própria saúde se tornasse um obstáculo intransigente.
“Não tendo uma organização bem estruturada, membros que se destacam podem ser sobrecarregados. Punindo a virtude e recompensando o vício“
Notei como as pessoas que tomavam essa postura, que eu também passei a reproduzir, se desgastavam ao mesmo tempo em que se destacavam. Enquanto que aquelas que não podiam acompanhar o ritmo eram deixadas para trás, minguando sua vontade de participar da militância. Quando se questionava as pessoas que deixavam e seus motivos, estas afirmavam que eram problemas delas próprias. Sua rotina não estava ajudando. Seu estado mental não estava adequado. Em outras palavras, seu mindset não estava vibrando na frequência da abundância.
Notava que, no discurso vigente dentro das reuniões, se tratava como se todos fossemos iguais em abstrato. Igualmente responsáveis por tudo. As tarefas eram igualmente urgentes entre si e, como é de se imaginar, nada era urgente e ninguém era responsável.
Como pode-se afirmar que somos iguais, se evidentemente metade dos membros não tem disposição igual para atuar da mesma forma? Sentia que esse comportamento era quase como um feitiço: se todos acreditarem em uma mentira, ela passaria a ser verdade. Questionar o feitiço era colocar toda a operação em risco, o ritual seria quebrado.
Quando questionava meus dirigentes regionais, as respostas que recebia eram desalentadoras. Afirmava-se que eram questões pessoais. Baseado em quais estudos? Não havia estudos. Ao meu ver, isso também era um sintoma.
”Sem o devido estudo do fenômeno sustentado em bases materiais, há o aumento do risco de se usar valores pessoais para julgamentos inacurados e incorrer em injustiças que desestimulam a renovação e melhora.”
Lhama Roxa: Aproveitando o questionamento de “quais estudos?” e da tensão latente, recomendo aos camaradas que se aprofundem em escritos que se propõem a relacionar a questão de saúde mental e militância – explorando como são (e se) são realizadas ações concretas no cuidado mental de militantes, se este é um tópico considerado amplamente e em hipótese de que organizações revolucionárias não tinham atenção suficiente a essa questão e, ainda mais, não se encontrava material suficiente sobre, de modo que cito:
“[...] movimento de dentro para fora, mas de fora para dentro; não como encarnação do funcionamento individual interno, mas como a materialização, na pessoa ou no grupo, do caráter humanizador ou alienante de uma estrutura de relações históricas”[2] (Martín-Baró, 2017, p. 251). Em suma: a saúde expressará as condições objetivas de vida dos sujeitos numa certa sociedade e como esse processo é subjetivado, singularizado por esses sujeitos.[...] Ou seja, esses sujeitos, [...] são concretos e multifacetados: têm nome, história e características que necessitam ser compreendidos para que seja possível analisar a forma como sua saúde mental se constrói, como expressam seu sofrimento psíquico para, assim, podermos qualificá-los.” [3](Clara BARBOSA; Argum., Vitória, v. 15, n. 3, p. 188-205, set./dez.2023.)
E recomendo aprofundar-se em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/53284/Clara_Santos_EPSJV_Mestrado_2022.pdf?sequence=2&isAllowed=yhttps://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/39979/28453
É necessário reforçar ad infinitum que a militância é formada de pessoas, e que lidamos diretamente com questões socioeconômicas e fragilidades que, com o frigir dos ovos, repercute em como vemos a nós mesmos e aos outros, o funcionamento geral da vida, mesmo. E é fácil esquecer esse “detalhe” quando estamos em modo intelectual e guerrilheiro, criando dores e afligindo aqueles que nos acompanham. E essa, acredito eu, não é a intenção. A unidade aqui valorizada, explora formas de amenizar sofrimentos, não de criar novos. Relembrar a humanidade, as nuances de vida e acolher pra continuar.
Capivara Tabagista:
Quando decidi me organizar em um partido comunista, optei por me organizar em algum coletivo feminista-classista, por entender, na época, que esta seria a área de militância que fazia mais sentido para mim e me despertava maior interesse. Ao buscar no google por coletivos desta linha no Distrito Federal, o único que encontrei foi o Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro (CFCAM), do PCB. Enviei uma mensagem no Instagram, que foi o único meio que encontrei para me comunicar com o coletivo. Após cerca de um mês, as militantes da organização entraram em contato comigo e me adicionaram em um grupo de Whatsapp, onde estavam todas as outras pessoas que iniciavam seu processo de aproximação com o coletivo. Participei de uma ou duas reuniões (que aconteciam mais ou menos uma vez por semana), antes de receber o informe de que o coletivo seria desativado porque as militantes que compunham o secretariado do organismo haviam pedido afastamento ou desligamento durante as semanas anteriores, e não havia outras militantes disponíveis para assumir a tarefa. Para não deixar as militantes que ficaram e as aproximações sem perspectiva de atuar no movimento por falta de um organismo de base onde militar, fomos todes transferides para o coletivo LGBT Comunista (LGBTCom), que havia sido inaugurado pouco tempo antes da desativação do CFCAM, e que já era considerado um coletivo irmão, já que todes es militantes do CFCAM haviam comparecido à inauguração do LGBTCom e haviam se sentido muito acolhides e interessades pelos camaradas do coletivo recém-nascido. Além disso, éramos todes LGBTIAP+, o que facilitava a transferência de nossa atuação. Eu nunca fiquei sabendo de muitos detalhes sobre os desligamentos no secretariado do CFCAM, mas eu sei que o coletivo nunca teve um militante do CR do partido designado para realizar a tarefa de assistência (o LGBTCom, mesmo tendo sido fundado no DF muito depois do CFCAM, possuía assistente, mas o coletivo levou cerca de três anos para ser estruturado, justamente devido à demora para designar um militante para a tarefa, e para encontrar militantes que pudessem fundar o coletivo e assumir seu secretariado. A maioria deles operava em dupla-militância a partir do momento em que o coletivo foi fundado), e as militantes que compunham o secretariado do coletivo acabaram se desligando não só por conta da sobrecarga advinda do acúmulo de tarefas partidárias e da vida profissional, acadêmica e pessoal, como também por terem sido pesadamente afetadas pela crise do PCB, que já se agravava havia alguns meses, mesmo tendo sido pouco discutida até então.
Quando eu entrei no LGBT Comunista, eu me deparei com um panorama que me surpreendia, mesmo sendo alguém que nunca havia militado em uma organização comunista antes: os camaradas tinham dificuldade de distribuir as tarefas, sobrecarregavam-se com o acúmulo de atuações em diferentes organismos de base, e não recebiam nenhum suporte do Comitê Regional para qualquer tipo de atividade, ato ou tarefa. Tudo era feito de forma muito artesanal, a partir do esforço autônomo dos camaradas que compunham.
Na mesma semana em que eu entrei no coletivo, aconteceria a Parada LBGT no centro do Distrito Federal e, por óbvio, era responsabilidade do coletivo compor um ato durante o evento. Nós tínhamos um panfleto fornecido pelo Comitê Nacional do coletivo para que imprimíssemos e distribuíssemos durante a Parada, e os camaradas haviam planejado panfletar e vender cervejas durante o evento, para que pudessem arrecadar fundos para o caixa do organismo, e, ao mesmo tempo, recrutar pessoas que se interessassem em militar conosco. Os camaradas só conseguiram se reunir para planejar isso um dia antes do ato (que ocorreria num sábado), imprimiram os panfletos no dia do ato, horas antes de se direcionarem para o local da Parada, e os cartazes levados ao evento foram confeccionados em um mutirão com militantes de diferentes organismos de base do partido, na sede do PCB, logo antes da concentração para o ato. Me assustava muito o nível de amadorismo empregado nesta tarefa, e o quão em cima da hora tudo foi feito. Tempos depois eu aprendi que isso era o normal dentro do partido.
Apesar da falta de organização para o evento, o LGBTCom teve um relativo sucesso durante esse ato, mas o balanço, na minha opinião e de outros camaradas que estiveram presentes, era de que poderia ter sido muito melhor, caso houvéssemos nos organizado com antecedência. Mais tarde, eu entendi que o motivo pelo qual nós não havíamos podido fazer isso era relacionado à sobrecarga e ao acúmulo de tarefas que os outros militantes tinham, atuando em diferentes organismos de base, além do fato de que nosso assistente do CR simplesmente não entrou em contato com o coletivo em nenhum momento para acompanhar a construção do ato ou prestar auxílio pra tal. Isso era regra durante o pouco tempo de atuação do LGBTCom, e fazia com que os militantes precisassem lutar pela mera existência do coletivo com unhas e dentes, de forma constante.
No dia em que este ato, na Parada LGBT, ocorreu, recebemos a notícia de que o Jones Manoel havia sido expulso do Comitê Central do PCB. A crise do partido se intensificava e começava, a partir dali, a se tornar mais visível e palpável para a militância de base, que até ali pouco sabia sobre o que vinha acontecendo no partido. Nas semanas seguintes, fomos recebendo mais informações e denúncias contra o Comitê Central e a ala conservadora como um todo, e percebíamos cada vez mais o esforço desta ala para silenciar o debate acerca da crise entre as bases. Em algumas semanas, nossa SecFin foi destituída da secretaria por ordem do CR do partido e do CN do coletivo, por supostamente assumir uma postura que não era condizente com a de uma pessoa em posição de secretariado do organismo (ela incentivava e solicitava que debatêssemos o que ocorria no partido nacionalmente, compartilhava as informações e denúncias que recebia via redes sociais, e exigia que buscássemos entender e nos posicionar acerca disso).
Poucos meses depois da inauguração do coletivo, o organismo se desfez numa só noite, como consequência dos desligamentos de quase todos os militantes, um depois do outro, após o recebimento da carta de desligamento de nosso SecPol, informando que a militância partidária havia degradado sua saúde mental até um ponto tal que o levou a um quadro aprofundado de depressão. Um dos militantes mais valorosos, preparados e atuantes que eu já conheci havia quebrado enquanto tentava construir, com enorme esforço, um coletivo marxista que se dedicasse à luta LGBTIAP+, e, desde então, eu nunca mais pude vê-lo contribuir para nosso trabalho revolucionário. Nós perdemos ali alguém que poderia ser uma liderança excepcional na luta LGBT e na luta marxista, e perderíamos posteriormente quase toda a militância do coletivo.
Dos 6 militantes que compunham o coletivo à época, um permaneceu no antigo PCB; outro (nosso SecPol) se desligou logo antes do racha; um compõe, desde o início do racha no DF, as instâncias de direção de nossa atual organização, mas sofreu uma sobrecarga tão grande neste processo, que precisou pedir afastamento há cerca de um mês e meio e não conseguiu voltar à militância desde então; uma se desligou de nosso partido antes da etapa distrital do congresso; outra precisou se afastar da militância em nosso partido porque precisou se mudar para fora do país a trabalho e não conseguiu encontrar uma forma de se manter atuando à distância; um se afastou do partido após a etapa distrital do congresso por razões que não nos foram comunicadas, mas que eu suspeito terem muito a ver com a saturação causada durante todo esse processo; e sobrou eu, que permaneço na direção do partido no DF desde a primeira plenária distrital e me mantenho atuando com grande esforço e a grande custo pessoal de tempo, energia e saúde mental.
1.1.2 - Injustiça pela Omissão
“Três ano, três grandes obra
E ninguém sabe o que tava pegando lá em casa
Então lave a boca pra falar de mim
O que me fez chorar não foi a morte do Mufasa” – Djonga em hat-trick
Boto Vermelho: Não tardou para meus questionamentos se tornarem provas contra minha própria pessoa. Infelizmente, já estava ciente de outras perseguições de pessoas que atuavam comigo e que, do trabalho que pude acompanhar, eram exemplares. As acusações eram feitas por entrelinhas, por boatos de corredor.
Revestia-se o discurso com uma prepotência de que eram coisas muito graves para serem colocadas às claras e supostamente, para preservar os acusados, não diziam quais eram as causas da acusação, somente conclusões abstratas: insubordinação, quebra de centralismo e outros jargões que pareciam dizer tudo sem explicar nada. No estatuto eleito por algumas daquelas mesmas pessoas, essas justificativas não eram previstas como um motivo para as hostilidades ou repreensões. Daí a necessidade de se embalar as acusações com justificativas que soassem como previstas no estatuto e esconder os próprios mecanismos de conservação da ordem vigente.
Repetia-se como um feitiço: não se precisa saber o que aconteceu, somente da gravidade. Se todos acreditassem, seria verdade. Novamente, quem questionasse ou pedisse provas parecia colocar esse encantamento em risco e, se não se calassem, tornariam-se os próximos alvos.
Diante dessa situação, minhas questões se acumulavam. Por quê? Por que uma organização com a proposta revolucionária se portaria dessa forma? Essas pessoas estariam fazendo isso por má fé ou incompetência? Seriam questões mutuamente excludentes? E, talvez mais importante, o que eu tinha a ver com isso? Deveria colocar em risco minha própria saúde para tentar entender e resolver essas questões? Deveria trabalhar de graça, tal qual um funcionário de start-up que veste a camisa da empresa, e é pago com um crédito de uma esperança de que as coisas vão melhorar no futuro?
Não somente estaria lidando com pessoas sabotando o processo, como também teria que fazer o trabalho de um departamento de pesquisa: o levantamento teórico e de dados. Valeria o esforço?
Atentavam contra a minha honra e a de pessoas que trabalhavam sério, com dinâmicas tóxicas que me lembravam o ensino médio. Em certos momentos, questionava-me se estaria em uma paródia do filme “Meninas Malvadas” com temática de nicho. E isso chega ao nível cômico, quando um dirigente de longa data, que era tido como referência pelos demais membros da ala conservadora, mostrou a necessidade de retaliação a outras forças, normalmente do campo da esquerda radical, quando essas forças teriam supostamente sabotado e tentado implodir a organização. Sabe que retalhação foi essa? A retaliação foi deixar de conversar diretamente com a força: não somente ao nível de reuniões formais, mas, mesmo no almoço universitário, não falavam mais com eles.
Mais ou menos nessa época, eu havia sido informado do espancamento e morte de uma pessoa desabrigada que residia precariamente em meu local de atuação. Supostamente, havia sido alvo de grupos de vigilantes locais com inspirações nazifascistas. Confesso não ter tentado a tática de não falar com eles durante o recreio para repreendê-los de suas ações.
O desespero do esforço que se apresentava e dos obstáculos me fez questionar se deveria deixar aquele espaço. Felizmente, eu não estava sozinho em minhas angústias. Em minha base de atuação, a realidade se impunha como obstáculo e mais pessoas se esforçavam para os superar. Pesquisavam e estudavam, aprendiam sobre o que estava acontecendo e ajustavam suas táticas. Agiam com honestidade e falavam com franqueza. Se algo está errado, está errado e precisa ser corrigido.
Por questões pessoais minhas, eu não teria a coragem de deixar aquelas pessoas lutando sozinhas por um Brasil emancipado e soberano, assim como por um mundo melhor. Como forma de lidar com os momentos de tristeza, coloquei como uma espécie de regra que não desistiria de lutar para melhorar antes deles.
As desgraçadas não desistiram e acho que não estaria melhor acompanhado se não fossem por elas. Essas pessoas me ajudavam em um sentido histórico, tanto aquelas que vieram antes de mim, quanto os que estavam ali ao meu lado.
Ainda não sei se valerá o esforço, mas até o momento não faria diferente.
Lhama Roxa: Há de se considerar estranho que haja o incentivo à atuação política, mas que isso ocorra até a página dois, isto é, até um limite determinado. Porque a impressão que fica é: produza muito e não questione. A verdade está na prática, mas a prática não faz sentido. Como há qualquer encaminhamento em uma atuação que te cobre de atividades, reuniões, formações, mas não tem o tempo de olhar pra você e te orientar sobre como essas coisas funcionam? O que se espera de todo esse tempo investido? Que incentive trocas e valorize a atuação de camaradas devotados?
1.1.3 – Conservadorismo Ativo
“Eu sou a volta por cima
Uma explosão em expansão igual o Big Bang
Eu sou um moleque igual esses outros moleque
Que a única diferença é que não esquece de onde vem” – Djonga em Hat-trick
Essa dor não foi apresentada para a ala conservadora, pois ela ativamente abraçava essa postura. Questionar era punido e questionadores eram estimulados a se adaptar ou deixar a organização. Os que se negavam a fazer isso eram perseguidos. Ainda que houvesse questões reais para serem investigadas em alguns casos, esses eram tidos como menor importância, a ponto em que, inclusive, se faziam delações premiadas em busca dos que eram acusados de instigar a desarmonia interna.
Conscientes ou não, o saldo dessa postura era um profundo conservadorismo revestido com verniz marxista. Os mesmos problemas aconteciam, as mesmas soluções eram propostas e não eram executadas. Repetia-se isso à exaustão, no caso, à exaustão dos próprios membros. Um maquinário girando em círculos usando seres humanos como combustível.
O agravamento dessas questões chegou ao ponto de escutar em conferências regionais, em 2023, situações como “É impossível resolver o problema do recrutamento, pois faltam pessoas disponíveis para recrutar.”. Perceba aqui o paradoxo em que pessoas talvez bem intencionadas se colocavam. Por que faltam pessoas? Porque os recrutamentos não andam com velocidade suficiente. E por que os recrutamentos não andam? Porque faltam pessoas.
Um ciclo preso em si mesmo que não se resolve, um ouroboros da inutilidade, e, o pior de tudo, tratava-se como sendo tão natural quanto o sol nascer ou haver chuva: uma circunstância inerente à pratica do coletivo. Não bastaria estudar o porquê das pessoas saírem tanto? Ou o porquê de estarem sem tempo para seguir com os recrutamentos? Não havia nada que se podia mudar?
Mimercofaga: Tudo estava determinado previamente, como em um fato do destino, da vontade de um deus determinista maligno que imputou a Prometeu suas correntes ou a Sísifo a punição de erguer a grande rocha declinante da revolução socialista? Mal sabem que a única certeza que temos é de que tudo se transforma e nada está determinado aprioristicamente, apenas é um desdobramento, uma elevação da existência anterior. Tanto sabemos disso, que buscamos interferir e moldar esse processo para atender nossos objetivos concretos, nossa revolução.
“Se as mudanças forem rejeitadas direta ou indiretamente, a organização tende a um engessamento e incapacidade de se adaptar. Aqueles que seguem contrários podem ser vistos como dissidentes internos.”
Boto Vermelho: As propostas de mover pessoas de outras áreas de atuação para auxiliar nos processos de recrutamento foi rejeitada. Depois, eu descobriria que desconfiavam de que isso poderia ser usado para disputas políticas ou, ainda, que o sucesso da proposta poderia fortalecer os dissidentes da ordem vigente. Estavam dispostos a sacrificar quantos jovens fossem necessários para se manter no status quo e cristalizar uma estrutura que lhes permitia se manter no topo. Entretanto, não percebiam que as pessoas não queriam ser lenha para sua máquina.
Nessa mesma conferência, foi afirmado por um membro da ala conservadora que as queixas com relação ao adoecimento e desgaste eram até válidas. Porém, essa própria pessoa havia sofrido também quando era mais jovem e isso havia lhe ajudado a se construir como membro da organização.
Mimercofaga: Um martírio, uma paixão cristã, um autossacrifício para purgar os pecados do marxismo brasileiro.
Boto Vermelho: A violência havia formado o seu caráter. O trauma era quase um rito de passagem. Como um filtro de seleção dos melhores funcionários. Os melhores auto-flagelados seriam recompensados
Mimercofaga: os últimos seriam os primeiros...
Boto Vermelho: Essa própria pessoa não descartava continuar em sofrimento, no entanto, agora tinha maior resiliência com relação às dores. Isso foi afirmado enquanto se tentava questionar e corrigir essas questões. Parecia que era tão tolo tentar mudar o nascer do sol ou a chuva quanto tentar mudar os mesmos erros que se cometiam a anos. Tudo isso reivindicando o centralismo-democrático. Centralismo-democrático virara sinônimo do conservadorismo. Era usado como sinônimo da própria ordem vigente das coisas.
Mimercofaga: Enquanto que o materialismo dialético lhes parecia uma doutrina mística, um mito órfico cujas verdades estariam disponíveis apenas aos iniciados e mais imersos no pântano.
Boto Vermelho: Ao meu ver, isso era um sintoma. Era necessário superar o conservadorismo. Cada vez mais pessoas percebiam isso.
Capivara Tabagista:
“Sarcasmo é minha doença e minha arma contra a tirania
Chama os tiras, toda essa ira agora é poesia
Lembra que eu dizia
Antes de tudo, o que eu seria
Você ria:
‘Isso não é pra homens fracos eu não indicaria’.” - A Pior Música do Ano (part. Djonga) – Froid
Qualquer demonstração de humanidade ou fragilidade era entendida como uma inaptidão para o trabalho, se tornando, inclusive, uma forma de ofensa. Se você apontasse que um membro da organização estava sobrecarregado e em um processo de adoecimento psicológico, esta pessoa se ofenderia com o seu apontamento. Era uma organização semi-darwiniana onde só os fortes sobreviviam, e os fracos eram rapidamente descartados, seja através da intensificação dos processos adoecedores para que a pessoa quebrasse logo, seja jogando a pessoa ao ostracismo com a desculpa de que ela não “tanka” a militância, e seria mais útil contribuindo como “amiga do partido”.
O mesmo acontecia se você não se encaixasse naquilo que eles impunham como a postura correta para um comunista organizado: alguém que usasse um vocabulário comunista, um comportamento comunista, talvez um “dress code” (termo em inglês frequentemente usado para definir um código de vestimenta imposto para uniformizar um grupo delimitado de pessoas e diferenciá-las do resto) implícito na forma como as pessoas ao redor reagiam ao seu comportamento. Não ouse falar diferente deles, jamais faça piadinhas ou se utilize de sarcasmo ou ironia, somos uma organização séria, aqui não tem brincadeira, se quer brincar, que o faça longe do meu partido, aqui dentro só há homens sérios, tão sérios, que nem humanos parecem ser.
Isto era tão longe da realidade, até mesmo, dos membros da organização, que os impedia de se conectar justamente com os membros da classe que buscavam emancipar. Eu conheci diversos ex-membros e pessoas que conheciam ou se relacionavam com membros do partido, que expressavam uma espécie de aversão ao trabalho de militância organizada, quase um medo, uma admiração, como quem se refere a alguém que faz um trabalho tão perigoso e difícil, que poucos teriam a capacidade de desempenhar. Como quem se refere a um policial ou a um bombeiro: “admiro seu trabalho, mas não teria coragem, não conseguiria trabalhar com isso. Você está sempre cansado, sobrecarregado, parece colocar sua saúde sempre em risco”. Meu próprio companheiro sempre viu meu trabalho de militância desta forma, razão pela qual nunca desejou se organizar no partido.
Harpia Dourada:
“a Corrida aqui é de uma vida inteira
Tu não tava lá
Não vem cá falar
Que acreditou
Pra me abafar quis ignorar
Só fortificou
Se não tá ligado
Também não inventa
No Garimpo sou pedra 90
Nascido e criado onde tu não entra” – MV Bill em Aulas e palestras
Boto Vermelho: Nessa mesma conferência citei o russo Vladimir Lenin através do indiano Vijay Prashad na obra A Estrela Vermelha Sobre O Terceiro Mundo[4]. Lembrando sobre o interesse do advogado soviético em uma entrevista com jornalistas japoneses em 1920. Entre outros temas que perguntou, acerca do Japão, Lenin teria questionado sobre o castigo corporal em crianças pelos pais. Quando os jornalistas afirmaram que não era uma prática dos japoneses, o bolchevique teria “manifestado satisfação e disse que o governo soviético tinha como política abolir essa prática”.
Vijay Prashad lembra ainda que em 1917 os soviéticos teriam abolido a prática de castigos corporais e, em 1924, o código penal da URSS incluiria a proibição de castigos em crianças, em particular os que causassem sofrimento físico, humilhação ou injúria.
No país em que nasci, isso ainda era e é praticado. Eu vivenciei questões como essas em meu crescimento e não pretendo questionar nesse documento a idoneidade dos meus pais ou de outras pessoas. Já escutei comentários como que aquela violência sofrida havia tornado-lhes o que eram hoje.
Poucos minutos antes da minha citação, pessoas começaram a chorar depois que o tema do racismo, LGBTfobia e capacitismo havia sido colocado. A ala conservadora argumentava e justificava a insolubilidade dos problemas quando não conseguia mais os negar. Um estudante do ensino médio relatava sofrer atuando naquele organismo o que eu descreveria como sofrimento físico, humilhação ou injúria.
Lembrei desse comentário durante essa conferência. Esse tipo de argumentação me parece uma espécie de redenção pela dor ou ainda um martírio. Como se a dor do processo compensasse os erros em vez de serem agravantes para toda a situação.
Mais à frente pretendo elaborar sobre uma tribuna escrita por um membro da ala conservadora. Mirou em Lenin escalando uma montanha e acertou no mito de Sísifo. Seu mérito não vinha de se libertar da maldição de subir a pedra até o topo da montanha, mas do martírio de subir a mesma pedra para o topo da mesma montanha e a ver rolar dia após dia. O grego do mito, o Sísifo já estava morto, nós estamos vivos.
A ala conservadora só conseguia apresentar um não, uma negação, enquanto as bases experimentavam, tentavam resolver seus problemas e apresentavam soluções, a afirmação. Durante essa conferência, várias pessoas de outros locais vieram me contatar para aprender sobre como estávamos solucionando as dores que elas também sentiam. Também falavam, empolgadas, sobre suas próprias táticas e avanços. Entusiasmado, garanti a elas que compartilharia minha pesquisa.
Somente nos fora permitido nos conhecer e conversar durante aquela conferência, porque tínhamos a comunicação censurada. Meus pedidos de socializar o conhecimento em seminários ou reuniões foram barrados três vezes por questões burocráticas. Acusavam minha produção de, potencialmente, violar o regulamento. Deveria ser avaliado por uma instância superior mais sobrecarregada, eu esperava que, com temas mais pertinentes, e sem prazo de conclusão.
Durante o racha, eu descobriria que as demais pessoas que gostariam de apresentar seus avanços também estavam tendo seus pedidos rejeitados com justificativas semelhantemente espúrias. Justificativas igualmente desonestas.
Perguntava-me se ao se debruçar pelas pesquisas, ainda que a ala conservadora já demonstrasse hostilidade, ela perceberia os avanços e, mesmo que discordasse, teria de construir pesquisas bem fundamentadas para rejeitá-las, levando a um saldo coletivo melhor para todos, em minha visão.
Ainda assim, suas próprias dinâmicas internas pareciam dificultar sua percepção.
Talvez não tivessem o tempo, o estudo e o ferramental para acompanhar o ritmo de suas bases.
Foram atropelados.
1.1.4 – Ferramental Teórico e Prático Precário
“Eu peço bênção pra sair e pra chegar
Não canto de galo nem no meu terreiro
Honra com os adversários, na luta
Porra, eu sou filho de São Jorge, guerreiro” – Djonga em Hat-trick
Se as ferramentas à minha disposição não estão resolvendo o problema, considerei então que, ou não estava operando-as corretamente, ou não eram as ferramentas adequadas. Isso era tratado como um obstáculo pela ala conservadora, pois os estudos informais eram considerados como perda de tempo em um contexto com pessoas já sobrecarregadas. E a formação interna, ainda que formalmente respeitada, era preterida devido à própria condição de falta de tempo.
Sintomas como esses me eram evidentes quando indagava meus dirigentes. Certa vez, questionei onde poderia encontrar pesquisas para tentar entender como funcionava a atuação de uma secretaria de organização. Foi-me dito que eu deveria me esforçar para cumprir as tarefas e que, caso precisasse de ajuda, chamasse outra pessoa igualmente inexperiente para delegar ordens. Entendi, na época, que eu deveria me sobrecarregar com o trabalho intelectual braçal e, se não aguentasse mais, tornar-me-ia cúmplice e faria outra vítima. Não reclame, trabalhe.
Em outro momento, quando questionei sobre a quantidade de pessoas tendo colapsos mentais, foi-me afirmado que eram todos ou em sua maioria por questões pessoais e, portanto, não havia responsabilidade vinda da organização, ou que eram impossíveis os resolver. Lembrei-me de como os liberais de direita explicam a violência das corporações de segurança e alguns de seus integrantes: trata-se de casos isolados. Não há o que se concluir do todo.
Ainda que, publicamente, a ala conservadora se posicionasse dessa forma, em seus espaços de diálogos fechados tratavam de forma diferente. Os problemas da organização eram causados por dissidentes internos, infiltrados de outras forças de esquerda – nunca do aparato de repressão burguesa – e essa forças de esquerda, citadas como estalinistas, desejavam a completa destruição de tudo que era bom.
Essa lógica das maçãs podres que contaminavam as demais maçãs e que precisavam ser removidas não me era estranha. Já havia acompanhado em discursos de liberais que se veem à esquerda. Voltando ao mesmo exemplo do problema das corporações de segurança: Pode até ser que existam alguns indivíduos isolados que se portam de maneira negativa dentro da estrutura. Porém, se eles forem reeducados ou removidos da estrutura, o todo seria purificado.
“Sem o ferramental adequado para entender a situação e como a superar, gasta-se energia de forma difusa sem resultados tangíveis. A tendência é a se agarrar ao pouco que parece dar certo. ”
O que me intrigou foi como essas pessoas poderiam reproduzir esse tipo de comportamento. Mesmo que elas acreditassem em suas intenções como as melhores para seus interesses, como elas poderiam incorrer nos mesmos erros que os liberais? Será se não reconheciam o próprio liberalismo em sua lógica de entender e atuar? Seriam eles os únicos?
Poderia eu estar praticando liberalismo achando que usava o materialismo dialético? Poderia eu aplicar idealismo em vez da dialética materialista? Será que, se nós removermos as maçãs podres da ala conservadora, as boas maçãs da ala transformadora mudariam a qualidade do mesmo cesto?
Mimercofaga: Uma coisa é certa, a verdade é uma questão prática, é na práxis que o ser humano comprova seu ponto. É na totalidade dialética da teoria e ação que seremos capazes de transformar o mundo segundo nossa vontade. Pensar sem agir ou agir sem pensar é o mesmo que andar em círculos.
Capivara Tabagista:
“As coisas queimam ao meu redor
É bem pior do que você tá vendo
Quando tudo voltar ao pó, Mocotó
Não vamos voltar a vender veneno” – Froid em Flow de Lázaro
Durante a crise que levou ao racha, nós vimos o partido queimando ao nosso redor. Mas o que eu percebi, olhando para a experiência de camaradas que já militavam na organização desde muito antes de eu me somar às fileiras do partido, foi que essa estrutura já estava em chamas há muito tempo. Militantes em posição de direção – a maioria alinhada à ala conservadora – permaneciam atuando ali como se estivesse tudo bem, enquanto a desorganização, o imobilismo e a sobrecarga consumiam como fogo tudo o que a militância de base se esforçava para construir. Como o monóxido de carbono produzido por um incêndio, o abuso, a perseguição e as práticas espúrias que a ala conservadora mantinha para controlar as dissidências e sufocar os questionamentos envenenavam qualquer um que ousasse se esforçar para apagar o tal incêndio e reparar as estruturas danificadas. Não demorou muito para se tornar claro, como descrito no Manifesto rem Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB, que a manutenção do fogo e do envenenamento e quebra da militância eram intencionais. A ala conservadora esperava que a divergência e a dissidência virassem pó, para que pudessem então dar um fim ao expurgo e voltar a “trabalhar em paz”.
Por outro lado, a ala transformadora, ao colocar luz neste processo e denunciar o fato de que tudo isso se tratava de uma prática sistemática que se reproduzia nacionalmente, e que a crise era muito pior do que aquilo que éramos capazes de ver enquanto base, esperava que, rachando com o partido, esta estrutura opressiva empregada na quebra da militância voltasse ao pó e isso nos permitisse parar de vender veneno (ou reproduzir as práticas abusivas e persecutórias da ala conservadora ao repassar a sobrecarga e a desorientação como forma de “seguir as regras” que nos eram impostas) aos nossos iguais como parte do cotidiano e da cultura partidária.
No fim, eles nos queriam fora de seu partido, e, encarando o fato de que a disputa interna pela estrutura partidária era inócua naquele momento, nós decidimos que estaríamos melhor fora deste que passamos a chamar de PCB-CC. Após o incêndio, tudo voltou a o pó. Agora não iríamos voltar a vender veneno.
1.1.5 - Crescimento da Organização
“Mente fria, sangue quente
Paralisam do meu lado, choque térmico
Quando saí, prometi que não voltava com menos que o mundo
Tá aí, mãe, o que cê quer, pô?” – Djonga em Hattrick
Ao meu ver, uma organização que se proponha a mudar o nosso país de uma forma profunda e estrutural nesse tempo histórico deve ter como pontos principais o crescimento em quantidade e qualidade em diversos aspectos.
”Relações e dinâmicas que antes podiam se sustentar em confiança, amizade e proximidade começam a incorrer em atritos e a engessar o funcionamento.”
Do ponto de vista humano, essa organização precisa aumentar tanto o número de pessoas atuando concretamente, como também a capacidade de atuação dessas pessoas dentro e fora dela. Pessoas que entram na organização, em vez de se prejudicar em suas vidas pessoais e profissionais, podem ter amparo e estímulo dentro da organização de forma a melhorar sua qualidade de vida assim como de suas pessoas próximas. Essa melhora de qualidade permite com que mais pessoas queiram se aproximar da organização e se mantenham por mais tempo. Com mais pessoas atuando com melhor qualidade, é possível melhor diluir as cargas de tarefas e superar novos desafios.
Do ponto de vista geográfico, o partido precisa atuar em cada vez mais localidades, e também aprofundar sua relação com esses locais para ter maior entendimento da situação da classe trabalhadora de seu país. Estando em mais locais, pode ter acesso a pessoas com conhecimento, experiências e demandas diferentes. Isso reforça o recrutamento assim como também aumenta a diversidade de quadros e de pensamentos dentro da organização, levando a um salto qualitativo. O que pode levar a novas situações problema a serem resolvidas e ao ganho do aprendizado de como as resolver.
Do ponto de vista da aprendizagem, deve-se ter uma rede de informações crescente, assim como estudos teóricos cada vez mais profundos. A organização precisa ter uma boa passagem de conhecimento do que fez anteriormente, assim como os estudos de teóricos do passado para não repetir os mesmos erros e a aperfeiçoar seus acertos. A própria organização deve produzir novas contribuições teóricas a partir de sua prática e reforçar sua prática a partir do que foi feito anteriormente e em outros locais: um organismo que retroalimenta práticas positivas e desenvolve aumento de quantidade e de qualidade de sua ação, uma exteriorização que se autorregula e que cresce em espiral. Para isso, há custos necessários para a produção teórica, a tradução, acesso a bibliografia e formação dos membros.
Do ponto de vista financeiro, deve-se ter maior quantidade de receita e melhor qualidade no investimento de recursos. Com mais renda é possível melhor pagar o trabalho dentro da organização, assim como parcerias fora dela. Permite melhor acesso a materiais e ferramentas de qualidade para a resolução de problemas, assim como possibilita que mais pessoas atuem dentro da organização em diferentes lugares, permitindo que, inclusive, se tornem militantes profissionais, em que sua subsistência depende do avanço do próprio partido e do movimento revolucionário.
Para isso, entendo como necessário uma estrutura capaz de se adaptar e se renovar para cada localidade e temporalidade, um monstro dialético capaz de engolir e permear toda realidade brasileira e suplantar a sociabilidade burguesa, criando um governo paralelo e mais eficiente. Ela própria deve ter capacidade de crescer em quantidade e qualidade, e também de descartar ou mudar formas obsoletas para resolver os problemas apresentados.
Dinâmicas e processos que funcionem para uma quantidade de membros não necessariamente funcionam para outras quantidades. Uma estrutura deformada para o propósito que buscamos, pode levar a atritos e tensionamentos internos, assim como a seleção e estímulo de pessoas com comportamentos divergentes das necessidades históricas da própria organização.
Harpia Dourada:
“Eu peguei minha flauta e juntei uns rato
Sem sorte de caminho fácil
Eu peguei meus trapo e pulei de casa
Matei na batalha, métrica de aço” De volta ao básico – puro suco.
Havendo superado a existência da madame economista paulistana e seus admiradores, resta-nos o grande desafio: rompemos finalmente com sua patota, mas quanto do que internalizamos é necessário deixar com ela? Parece-me insuficiente o esforço em compreender esta questão, se dá em qual medida por aceitarmos as premissas apresentadas no capítulo anterior? Considero ser claro que ainda batemos em nossos filhos para que sejam corrigidos e formatados como fomos, fico contente, por exemplo, ao ver nosso querido colosso rubro apontar o resultado em nossa base do método organizativo ao qual estávamos tópicos, mas incapaz de apontar o caminho ORGANIZATIVO de superação destas questões, muito menos considerar quais elementos de nossa estrutura sustentam e perpetuam a nossa incapacidade atual de irmos do complexo ao simples.
Fico feliz ao ver a incapacidade de nosso Optimus Prime do Maracatu de sequer se atentar que sua tribuna 'Agitação, propaganda e poder popular: para onde estamos indo?' (Jones Manoel)’[5] sobre nossos rumos aponta o caminho em que estamos, o que deve ser um dos nossos caminhos futuros, e também que o congresso presente é meramente uma preparação pro momento em que pautaremos verdadeiramente estas questões (o nosso segundo congresso, por termos o balanço do primeiro, bem como uma estrutura rígida e pelo menos 3 anos de crítica e autocritica quanto a ela.). Mas não pauta, por exemplo, os empecilhos que este congresso apresenta para a solução dos nossos problemas verdadeiros, como de que forma disputaremos nossas bases e nos educaremos junto a elas, se priorizamos os militantes mais destacados para tarefas nacionais, e também como criticamos e apontamos a necessidade de superação do que estas e estes camaradas consideravam como a certeza inescapável a partir do método narrado anteriormente, mas fico feliz por considerar poder acrescentar as questões apresentadas por nosso Thomas Sankara hipertrófico ao invés de tentar alcança-lo, me sinto inclusive digno da confiança que me foi dirigida.
Não temos claro o que precisamos superar! Não temos um debate sobre estrutura e superestrutura a nível de partido! Mantemos a lógica de que não temos formação para cumprirmos tarefas e mantermos a organicidades porque não nos focamos em atender as questões de nossas bases e nem na formação que precisam.
ESTAMOS FODIDOS CAMARADAS! Somos tão incompetentes perante as nossas necessidades quanto eles, porém, nós rachamos por estarmos dispostos ao avanço, diferente deles. Considero que a presente tribuna nos ajudará a delimitar nossas prioridades e botar a bola no chão.
Lhama Roxa: Em acordo com camarada Harpia, adiciono: vamos nos propor a acertar. Conseguimos ver as falhas, os furos, as rachaduras (haha!) e isso nos impulsionou a elaborar um caminho novo, mesmo que parte desse caminho tenha as heranças históricas da organização, temos dado a cara pra descobrir como recomeçar. E novamente digo: não é teorismo que vai levar isso adiante ou causar uma derrubada, é ação. E o agir precisa ser muito bem elaborado e embasado como foi até aqui, mas não significa que é impassível.
Capivara Tabagista:
“Ninguém realmente tá rico aqui
Os caras mentiram
Correntes falsas, mulheres pagas
Não curtem rap
Não com esse estilo
Qualquer promessa é menor que o destino
Ou dá o máximo ou desiste
Que o inimigo meu tem Astra, barca, Blazer
Arma, cú e medo
Porque nós é psico” – Flow de Lázaro – Froid
Finalmente rachamos, e nos libertamos da obrigação de nos submeter a uma estrutura que nos mata, mas agora desvelamos a verdade sobre ela, e sobre nós: o buraco é bem mais embaixo do que imaginamos, os inimigos (que consideramos ser todos aqueles que se colocam como obstáculo à revolução brasileira) são ainda mais poderosos do que parecia, e o trabalho de reconstruir um partido que se desfragmentou de uma forma completamente caótica é mil vezes mais exaustivo do que o trabalho de se manter correndo na roda de hamster de onde saímos. Mas nos propusemos a fazer isso mesmo assim. Mesmo sabendo que, na verdade, nunca houve glória em “ser partido” quando diziam que nós, que pertencíamos aos coletivos e à juventude, não éramos partido. Que, assim como nós, eles também não ganhavam nada com o que faziam (a não ser talvez algum nível de status social entre seu séquito de academicistas brancos da ala conservadora). Mas se nós fizemos mesmo assim, fizemos para completar esse trabalho. Fizemos para concretizar o objetivo da luta revolucionária. O inimigo (a burguesia) tem astra, barca, blazer, arma; mas também tem cu e medo. E nóis é psico.
1.2 - Príncipe Moderno e Djonga
“Abram alas pro rei, ô
Abram alas pro rei, ô
Abram alas pro rei, ô
Me considero assim
Pois só ando entre reis e rainhas
Abram alas pro rei, ô
Abram alas pro rei, ô
Abram alas pro rei, ô
Me considero assim” – Djonga em Hat-trick
Boto Vermelho: Enquanto escutava essa música, refleti a capacidade do artista de elaborar uma letra que fosse ao mesmo tempo sobre sua própria experiência particular e soasse particular para diversos ouvintes. Atingia-se aqui, talvez, uma expressão de um particular que fala de uma comunalidade.
No entanto, a questão da monarquia me gerava incômodo. Quem era o rei que deveriam abrir alas? Era o próprio cantor? Como ele poderia pensar em libertação sendo ele próprio o monarca? E ainda mais, como poderia ele estar cercado de outros monarcas se essas pessoas eram justamente as representadas na canção como as perseguidas?
Lembrei-me do príncipe do florentino Maquiavel[6]. Em sua obra, príncipe é sinônimo da monarquia, mas principalmente de seres capazes de agência em seu tempo histórico. A configuração dos países, se haveria fome ou se haveria abundância. Se haveria guerra ou se haveria paz. O príncipe, ou rei, era a síntese dos interesses de uma região, um novo mito. Um novo horizonte a dar esperança para desesperança, um novo mundo que está logo ali e que podemos e vamos alcançar.
Sua regência não seria somente sua própria vontade, ainda que importante, mas um conjunto pragmático de decisões que pesam os interesses da aristocracia, dos soldados e dos servos.
Nessa reflexão, lembrei-me do príncipe moderno do italiano Gramsci em seus cadernos do cárcere[7]. Esse príncipe moderno seria o partido revolucionário. O ser capaz de agência em seu tempo histórico, o príncipe-mito, seria um coletivo.
No entanto, para responder quem poderia ser esse tal de partido, recordei-me da canção Vozes da Revolução e da participação da artista Paula Ana[8]:
“O Partido somos nós.
Nós somos o partido.
Jovem, com vigor,
Revolucionário, vivo!”
E, a partir daí, resolvi reinterpretar a letra de Djonga. Quem era o rei? O partido revolucionário e o seu objetivo de construir um novo país. E quem era o partido revolucionário? Os reis e as rainhas: Os que constroem ele à sua imagem e semelhança e são moldados por ele de volta, desde que esse ir e vir se aproxime de uma organização jovem, com vigor e viva. O rei se considera rei, porque anda entre esses reis e rainhas.
Entender a letra dessa forma, com o próprio Djonga sendo o partido revolucionário e através de Paula Ana como o Partido como sendo os membros que trabalham nele, permitiu-me relacionar com outras questões que vivemos.
Essa estrutura coletiva se alça à posição de realeza. Nessa interpretação, o coletivo se dá a posição de poder agir sobre seu tempo e mudar sua realidade por conta dos reis e rainhas que o compõem. Por sua vez, esses reis e rainhas somente são reis e rainhas mediante sua participação nesse movimento coletivo para a própria mudança da realidade.
O partido, para ser transformador do Brasil, precisa ele próprio ser transformativo de si mesmo e de seus membros. Conservadorismo, nesse momento, seria contra-revolucionário.
Porém, o que ocorre se o rei, nesse caso, o partido revolucionário, for inapto para esse propósito?
1.3 - Peles Negras, Estruturas Brancas
O pedido de abrir alas para o rei pode ser visto também como um anúncio. O tópico da ação avança e anuncia que continuará independente dos obstáculos a sua frente, com uma vontade indestrutível.
A partir disso, se esse rei somente tem sua realeza, nesse caso a capacidade de transformar o mundo, a partir dos reis e rainhas que compõem esse coletivo, e esses reis e rainhas somente são reis e rainhas devido ao seu próprio movimento em direção a estarem aptos e realizando sua tarefa histórica de mudança do Brasil e do mundo, poderíamos ter um falso rei? E, se tivéssemos, o anúncio de abrir alas para o rei não valeria também para que os falsos reis saíssem da frente? Poderiam reis e rainhas serem subjugados a servir um rei falso? Um estrangeiro, ou, como diria o artista e pensador brasileiro Don L na canção Vila Rica, um rei gringo?
Reformulando minhas perguntas, poderíamos ter uma estrutura moldada à forma e semelhança, não para atender as necessidades e demandas da vasta maioria dos reis e rainhas de nosso país, mas para saciar demandas de uma fração?
Antes de tentar responder isso, gostaria de refletir sobre o clipe da canção Hat-Trick. O protagonista inicial do clipe aparece com o rosto pintado de branco. Referência semiótica a Frantz Fanon com sua obra pele negras, máscaras brancas.
Suas ações são hostis com as pessoas de sua comunidade, que se pareceriam com ele, se não estivesse pintado. Seu sorriso só abre quando está em uma mesa com homens brancos, a maioria mais velhos.
Seguindo essa linha de pensamento, isso me recorda episódios que vivenciei, em que os dirigentes da ala conservadora demonstravam maior admiração e simpatia, não pelas organizações do campo revolucionário, mas com as do social-liberalismo. Em suas reuniões internas teciam elogios aos coletivos ligados ao PT, do PDT, Rede, PSB ou afins. Enquanto, com relação a forças que se colocam como pertences a esquerda radical como PSTU, UP ou mesmo coletivos anarco-comunistas, espalhavam pânico moral de que teriam intenções perversas.
Quando as figuras públicas escolhidas para a campanha de 2022 precisaram ir para praças públicas dialogar com a população, em vez disso, fizeram entrevistas para grandes jornais (nas quais o candidato ao governo parecia despreparado para a função que lhe foi dada) e comícios. Lembro-me de um episódio em uma praça, em que nosso equipamento e qualidade de atuação foi tão precário que um pastor local nos cobriu com sua pregação.
Ao contrário dos candidatos, aquele pregador frequentava aquele espaço periodicamente, treinando em sua função. Arrisco que a maior parte das vezes que passei por ali, ele parecia um incômodo quase cômico. Gritava para os transeuntes que seguiam com suas vidas apressadamente. Mas naquele dia, naquela praça, com o equipamento falhando e com nossos candidatos sem conseguir encantar nem mesmo os membros da organização presentes, eu refleti que aquele pastor era não somente mais preparado e mais treinado, como talvez menos fora da realidade do que a própria organização e, consequentemente, que as pessoas que a compunham, como eu.
Quem poderia ser o rei que, em vez de se esforçar pela sua coroa, era tão pequeno e covarde que atacaria os próprios reis e rainhas que tentavam o construir como rei, antes de aceitar sua própria realidade? Não fiquei surpreso com o que viria meses depois com o racha, talvez somente desapontado com a própria pequenez até mesmo de seus recursos de autodefesa contra a melhora. Nunca o comunista deve ter medo, a coragem é sua determinação primária, é a condição necessária para ser comunista.
Do ponto de suas referências teóricas, quanto mais europeu e, aparentemente, mais distante de ter realizado uma revolução, melhor. Sempre com sua bússola apontando para o norte global. Como construir a organização que mudaria o Brasil? Pergunte a um português que fala como se misturasse uma novela de época com um filme soviético pós-segunda guerra mundial.
Como poderia ser referência um autor escrevendo após guerras coloniais de seu país contra diversos países do continente africano, que não falava sobre racismo no livro sobre como organizar um partido? Ainda mais para alguém que se proponha a aplica-lo no Brasil? De fato, há uma citação da palavra racismo como algo que deve ser combatido por gerar no “plano moral” sentimentos de egoísmo, rapacidade, domínio ilegítimo e desprezo pelos outros seres[9]. Seria esse o maior impacto do racismo para formulação de um projeto de emancipação da supremacia racial no Brasil? Hoje eu rio, mas ainda é de nervoso.
Como poderia esse autor ter uma visão para a particularidade da luta pela soberania nacional em um país marcado pelo racismo? Não haveria autores no próprio continente africano, em países mais próximos da realidade brasileira? Talvez na América Latina? Quem sabe no Brasil? Pretendo elaborar sobre isso mais a frente no capítulo 1.4.
Mas sabemos que, inevitavelmente, uma estrutura reproduz uma superestrutura, um reflexo daqueles que dominam a estrutura.
Capivara Tabagista:
“Vocês tão agindo como siameses
A cópia da cópia é muito mais fake
Sou mais o funk que assume mesmo
Que quer dinheiro
É menos fei que o que dura pouco
Igual Mustafary do Marco Luque
Gravo outro take com outro look
Todos eles com o mesmo truque
Lázaro nos ajude” – Flow de Lázaro – Froid
Sempre me chama a atenção perceber o quão pouco nos referimos a autores e autoras de uma realidade próxima à nossa, de nosso tempo e de nosso espaço geográfico. Falamos sobre as questões raciais pelo ponto de vista de europeus, sobre a questão LGBTIAP+ a partir da teoria Queer (que, como o próprio nome já infere, não é brasileira), sobre colonialismo, imperialismo e capitalismo dependente pelo ponto de vista daqueles que vêm dos países que nos colonizaram, e continuamos buscando em obras de autores que nunca se aproximaram de qualquer tipo de revolução a orientação sobre como construir a revolução brasileira. Assim como eles, não nos aproximamos, desde a fundação do PCB, nem um milímetro a mais da revolução, mesmo depois de 102 anos lendo essas obras.
Assim como os partidos da esquerda liberal, continuamos reproduzindo liberalismo e chamando de marxismo. Quando alguém aponta a fragilidade de nossa práxis revolucionária, mudamos a “roupagem” de nosso discurso, adicionamos alguns “ismos” para justificar nossa imobilidade, usamos os mesmos truques que a esquerda liberal usa para apaziguar a classe trabalhadora, quando esta reclama da não melhoria da qualidade de vida sob seus governos, e pronto! Já podemos dizer que renovamos e reconstruímos nossa atuação, e que, agora sim, a revolução está mais próxima.
A ala conservadora fez assim durante todos os diversos rachas que houveram no partido desde a sua fundação. Será possível que a ala transformadora esteja reproduzindo a cópia da cópia desse modus operandi, uma cópia muito mais fake, já que nos recusamos a admitir que talvez a nossa incompetência para resolver os problemas seja intencional por parte de alguns de nós, ou que, no mínimo, talvez se deva a um medo que parte daqueles que racharam conosco têm de fazer as coisas de um jeito diferente daquele que fizeram a vida toda, sem saber prever o que acontecerá agora que tudo está diferente? Será que poderíamos estar produzindo o mesmo partido misógino, LGBTfóbico, capacitista e racista quando nos resignamos a nos adequar às estruturas e dinâmicas criadas por e para homens brancos academicistas, e ignoramos o Manifesto em Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB, quando ele diz “Queremos um Partido Comunista Brasileiro que, à altura do seu nome e consequente com sua estratégia anticapitalista e anti-imperialista [...] E isso significa, entre outras coisas, dar à nossa estratégia revolucionária rigorosa definição não só tática, mas organizativa, encarando abertamente tanto quanto possível as questões das mais diversas formas de organização e luta do partido revolucionário.” ?
Boto Vermelho:
Voltando ao clipe. É no refrão que Djonga aparece pela primeira vez. Ele aparece com os braços sobre os ombros do protagonista de máscara brancas. Em seus braços tem correntes que envolvem o pescoço do primeiro personagem. Sua presença é como a de uma entidade. Um ser fantasmagórico que somente o protagonista parece perceber, mas ainda assim tenta ignorar. Uma espécie de consciência que perturba a ordem estabelecida até aquele momento.
Para o pesquisador Rogério Leão Ferreira no artigo “E se fosse ao contrário?” Djonga e Fanon: um diálogo sobre racismo e alienação[10], o artista ao entrar em cena toma o controle da situação e a partir dali começa o processo de desconstrução da alienação do protagonista por meio de sua música.
Para o pesquisador, a frase “Ou tu vai ser mais um preto que passou a vida em branco?” é uma das que leva o protagonista a assumir seus valores, origens e se tornar humilde.
Trazendo para a nossa interpretação do clipe, o protagonista pode ser visto como essa pessoa que não foi coroada, não tem a agência por si própria, servindo a um rei gringo. Vê o mundo com os olhos do seu senhor, apresenta-se e se reconhece como um dos senhores, não como eles, mas desejando ser como eles. Distancia-se do que considera as massas à medida que as hostiliza repetidas vezes.
Esse protagonista se senta nas posições que os homens brancos lhe permitem, desde que se porte como eles. Pense como eles. Se ele quiser ter sucesso, precisa agir como os brancos ao seu redor.
Isso me fez refletir se poderia um coletivo sofrer de questões semelhantes. Ao se relacionar e se espelhar em certos espaços de atuação com dinâmicas pré-estabelecidas, poderia uma organização ser moldada para absorver e reproduzir certos comportamentos sem refletir criticamente? Poderia um coletivo ter estruturas feitas para reproduzir e recompensar certas dinâmicas e lógicas a imagem e semelhança não da maioria da população, mas de uma fração embranquecida. Poderíamos ter estruturas feitas para servir a um rei gringo?
Capivara Tabagista:
“Tem uma pá que sai do gueto vem ver onde eu to morando
De manhã uma tia preta passeia com um bebê branco
Da onde eu vim a tia veio e só ela me dá bom dia
Aqui no prédio eu sou o único de dia
A noite tem o porteiro” – Froid em “A Pior Música do Ano”
Será que, se vivemos ainda em um prédio onde os únicos pretos são os funcionários explorados, esse prédio pode não servir para algo além da exploração deles? Será que sob o pretexto de emancipar nossa classe, não estamos nos tornando iguais àqueles que a oprimem? Se a gente continua esperando que a esquerda branca do norte global nos note, enquanto ignoramos nossos iguais que tentam se aproximar, talvez a gente esteja apenas reforçando a dinâmica de exploração e submissão que nos trouxe até aqui: um contexto de 102 anos de um partido que parece estar, a cada novo ano, mais longe da tal revolução.
1.4 Leviatã Europeu Contra Curipira Embrasado
Harpia Dourada:
“Nunca subestime
Jovens rapazes que sabem da origem
LATINOS !!!
Hermano, eu tô com a ideia certa
Mermão, vai chapar tua cabeça
É Alá Virgulino
E capitães de areia
Fundaremos a nossa
Rataria popular brasileira” Bom dia Vietnam – Puro suco.
Boto Vermelho: No clipe, o rei verdadeiro, Djonga, surge como uma assombração, um fantasma que ronda o falso rei. Suas correntes envolvem o pescoço do protagonista de máscara branca enquanto ele canta. Há um racha na harmonia anteriormente apresentada.
Antes de continuar, gostaria de conversar com o que o militante Zenem Sanchez, da célula de São Carlos, escreveu em sua tribuna de agosto de 2023 “O Partido não é um Leviatã”. Ele faz uma leitura do inglês Thomas Hobbes e seu monstro, o leviatã, formado por um pacto coletivo.
De que esse monstro, para existir, exige a liberdade individual dos seus servos em troca de manter a harmonia daquele coletivo. Por que os servos aceitariam essa chantagem? Porque os servos seriam maus por natureza e incapazes de se organizar por si próprios. Ele liga de forma interessante a visão do Partido que algumas pessoas poderiam ter a essa monstruosidade.
Mimercofaga: O Leviatã é mais do que uma mera exteriorização de uma vontade dominante, ele é um demiurgo que cria seu próprio universo para sua glória e adoração, mas que descansa no sétimo dia para nunca mais fazer nada em seu trono de sangue. Contemplando a si mesmo em sua própria mediocridade e feiura como um narciso torto e cego que admira sua própria cegueira, nada mais é que um monstro metafísico absolutista e unilateral que acha que basta a si mesmo e que busca transformar a realidade segundo seu reflexo sujo e demoníaco. Não há como fazer revolução a partir de um monstro bíblico como esse, ele é uma ameaça ao próprio militante e ao povo. Deixemos esse leviatã se afogar em suas ilusões de grandeza.
Boto Vermelho: Eu achei que aquilo me soava familiar de alguma forma. Lembrei-me de o caderno de formação do MST nº35 que estava lendo para tentar aprender sobre o tema de organização.
As minhas tentativas de aprender pelo exemplo interno ou pela formação que era prestada pelos dirigentes da ala conservadora se mostraram escassas, para não dizer inexistentes. Felizmente, na base eu tinha o apoio e o suporte de pessoas que se mostravam abertas ao estudo e a melhorar sua prática.
Voltando ao texto do MST e à reflexão sobre o monstro do inglês. Tem um capítulo: “3 – Desvios políticos que levam os lutadores à derrota” do professor doutor Ademar Bogos em que ele abre com:
“Nas ações concretas geralmente temos a tendência de prender-nos em detalhes e esquecemos o todo, principalmente quando se trata da realidade externa. Isto pode conduzir uma luta com possibilidade de ser vitoriosa à derrota, justamente porque as coisas sempre evoluem e retrocedem no seu movimento interno. Vence quem consegue interpretar e reorientar as táticas a qualquer momento. Vejamos alguns descuidos e desvios que levam à derrota.”
Mesmo relendo para escrever esse documento, volto a me surpreender com a proximidade dos avisos. Ele lista esses descuidos e desvios. Pretendo comentar e destacar cada um de seus títulos e trechos que acho interessantes para essa reflexão.
Lhama Roxa: O vício de esquecer o contexto latino e brasileiro no campo de estudo e atuação precisa ser vencido. É um erro básico, reverbera alto demais e infelizmente reforça uma estrutura desorganizada, falha de premissas coletivas e que incentiva egos a digladiarem por fetiche, sem mais.
1.3.1 - Desvio 1
“3.1 – Confundir instrumento e objetivo
Método e organização são instrumentos que se tem para alcançar o objetivo traçado. Quando se quer construir o instrumento subordinando a ele o objetivo, nem o instrumento nem o objetivo serão alcançados.[...]
Tanto o objetivo como o instrumento devem servir como referência. O Objetivo como referência futura e o instrumento como referência imediata a quem se deve procurar para alcançar o objetivo estratégico. Sem ele as pessoas descobrirão que jamais poderão chegar onde pensaram chegar.
Este problema portanto se equaciona assim: temos um objetivo a alcançar, agora necessitamos de um instrumento que nos leva até lá. O instrumento pode ser uma equipe, um setor, um movimento, um partido, uma frente, um exército, etc. ” – Caderno de formação nº 35, MST.[11]
Boto Vermelho: Nesse primeiro desvio já vejo esse monstro britânico. Se a besta necessita de ser alimentada com o sacrifício de seus servos, ela é mais importante que seus servos para si própria. Ainda que, obviamente, não existiria se não fosse a própria existência dos servos.
Trazendo para a organização, seria estranha a premissa que um instrumento seria mais importante que seu empunhador. Ainda mais se a própria existência e a razão de existir do instrumento deixa de fazer sentido sem o seu empunhador.
Em vez da criatura desengonçada e rígida do europeu, a recomendação do professor Ademar Bogos vai no sentido contrário. Precisa-se de algo ágil e flexível, esperto o suficiente para mudar sua tática para atingir o Objetivo. Gostaria de ilustrar com a representação de um Curupira Embrasado. Pretendo elaborar ao longo dos desvios. Antes, podemos voltar um pouco.
Mimercofaga: Seu propósito único é manter a obediência em relação a seu poder absoluto.
Qual é o objetivo da besta britânica? Conservar a harmonia dos servos. Ela existe a partir dos servos, mas existe para se alimentar dos servos. Os servos participam disso, em um primeiro momento, por não terem alternativa ao suposto caos de sua própria organização. Somente um dos dois depende do outro para existir, mas, ainda assim, quem teria o poder de decidir seria o Leviatã.
Quando falo aqui da criatura do Hobbes, estou refletindo também sobre o que vivenciei na ala conservadora. O que essas pessoas entendiam pelo seu coletivo, que chamavam de Partido, talvez no sentido burguês de ser um CNPJ registrado em cartório com o fim sendo prolongação da sua própria existência, ele era colocado como um ente distante e etéreo. Algo que pairava sempre vigiando, raramente presente e mais raro ainda ajudando na construção.
Essa entidade do partido surgia nas discussões e nas ordens por escrito como uma última barreira do porquê algo não poderia ser feito. Do porquê não poderia ser melhorado. De vez em quando, dava a ordem para algo ser feito, mas os seus representantes não apareciam, exceto nos membros que estavam mutuamente em várias instâncias do complexo partidário.
Os membros dos coletivos se esticavam em múltiplos coletivos incluindo o próprio partido. Fazer parte do que chamavam de partido poderia em um primeiro momento permitir alcançar essa entidade metafísica.
Na minha interpretação dessa situação através da mitologia Hobbesiana, parecia contraintuitivo estar em uma relação como essa não sendo o Leviatã. Um servo poderia inclusive desejar ser ele, vestir uma máscara com as cores dele e tentar se diferenciar dos demais por isso.
Capivara Tabagista:
“Lázaro avisa pra Thaís
Que eu to muito feliz em ver os dois juntos
Desde Cobras e Lagartos, eu torci por vocês
Mano juro, que orgulho
Esquece isso, trampar pra Globo
Eu não te julgo, também me submeto
Pois todo preto, só quer ar fresco
Família perto e um lugar seguro
Preto, negro, crespo, praga
Faca nas track no estúdio do Batman
Porque não podemos ligar pros home
Olha o que fizeram com Rafa Braga
Desculpa eu, quando eu falei da prata
Tava cego, isso não muda nada
Ainda me olham do mesmo jeito
É muito pior do que eu imaginava” Froid em “Flow de Lázaro”
O trecho acima, da música “Flow de Lázaro”, do rapper Froid, me fez refletir sobre a dialética entre as relações de identificação e distanciamento entre a comunidade preta e celebridades de sua mesma etnia, que desempenham um papel de representatividade para aqueles que se identificam com elas. A letra cita Lázaro Ramos e Taís Araújo, dois atores pretos que iniciaram suas carreiras em produções nacionais e ganharam muita projeção, principalmente, em novelas de grande audiência da Rede Globo. Taís Araújo interpretou a primeira protagonista preta de uma novela da emissora (A Cor do Pecado, de 2004) e Lázaro Ramos, que iniciou sua carreira no cinema nacional, teve sua estreia na televisão interpretando o personagem Foguinho na novela Cobras & Lagartos (2006), papel pelo qual recebeu uma indicação ao Emmy de melhor ator. Um ano depois de contracenar na novela, Lázaro e Taís se casaram, e hoje são pais de duas crianças. A história do casal representa um ponto fora da curva no panorama da mídia brasileira, em vários aspectos. Dois pretos que conseguiram ascender aos holofotes da TV aberta, se tornar ícones de representatividade preta no início dos anos 2000, quando havia pouquíssimo espaço para corpos negros na mídia de massas, e que, além do sucesso profissional, tiveram conquistas pessoais frequentemente negadas às pessoas que se sentiam representadas pelo casal, como manter um relacionamento saudável, formar uma família e ter uma condição de vida estável e confortável.
Eu imagino que, para uma pessoa preta como o rapper Froid, que tinha o sonho de ser artista e que não nasceu em berço de ouro, acompanhar a trajetória desse casal deve ter sido uma grande fonte de esperança. Vê-los alcançando tanto sucesso profissional e se tornando referências artísticas e intelectuais, mas, acima disso, construindo uma vida completa e confortável, certamente os transformou em uma fonte de inspiração para muitas pessoas pretas. Eu imagino, pela forma como Froid se refere a Lázaro em sua canção, que o ator deve ter se tornado, ao mesmo tempo, alguém com quem o cantor podia se identificar enquanto artista negro, o que lhe causou orgulho pelo sucesso alcançado, mas, ao mesmo tempo, uma referência que foi se distanciando das expectativas do rapper conforme foi ocupando espaços controlados e hegemonizados pela mídia branca. Quando Froid diz “esquece isso, trampar pra Globo, não te julgo, também me submeto”, ele demonstra essa dicotomia entre não gostar das decisões tomadas por alguém que se torna uma referência, mas entender essas decisões após chegar ao mesmo lugar desta pessoa, e perceber que precisou tomar caminhos parecidos para isto.
Trago esta referência porque acredito que, se nós (a ala transformadora) nos compararmos com Froid, e militantes como nós, que foram oprimidos e quebrados pela estrutura do velho partido, mas que em algum ponto foram obrigados por ela a reproduzir estas opressões e se distanciar da base oprimida, forem comparados com Lázaro Ramos, podemos traçar um paralelo que ilustra a forma como o tal Leviatã é construído pelas mesmas pessoas das quais ele se alimenta. Ao mesmo tempo em que nos orgulhamos de camaradas que conseguiram se manter firmes na luta revolucionária apesar dos obstáculos postos pela própria estrutura, em algum momento nos distanciamos deles por se submeterem a se tornar parte dessa estrutura. Ao mesmo tempo em que muitos de nós criavam restrições em relação aos nossos camaradas, buscávamos formas de alcançar conquistas e avanços em nosso movimento sem fazer parte da máquina de quebrar militante que aquele partido se tornara. Eventualmente, a maioria daqueles de nós que conseguiram se manter na militância por tanto tempo quanto eles, precisou se submeter também. Conforme nos destacamos e nos mantivemos firmes na organização, fomos precisando nos tornar parte desta máquina, ao passo em que nos sobrecarregávamos e, sem condições de solucionar os problemas estruturais antes de repassar nossas sobrecargas para os novos militantes, fomos nos tornando parte da estrutura à qual dissemos que não nos submeteríamos. Dissemos, eventualmente, aos nossos camaradas em CRs e outras instâncias que tomamos como nossos grandes algozes: “não te julgo, também me submeto”.
Me parece que continuávamos (e talvez ainda continuemos hoje) alimentando o Leviatã porque em algum ponto desta roda de hamster aprendemos, tal qual um animal de laboratório que é castigado sempre que se comporta de maneira diferente da que o cientista espera, que não vale a pena resistir. Em algum momento olhamos para a ala conservadora e dissemos “não te julgo mas não me submeto”, e então, quando nos alçamos ao lugar onde eles se assentavam (a posição de operadores da máquina partidária) preferimos nos submeter às mesmas dinâmicas, quase que com medo do castigo que sempre vinha quando tentávamos fazer diferente, ainda que o carrasco que nos castigava não esteja mais presente para aplicar o tal castigo. Em algum momento fomos convencidos de que a conservação do status quo significava a manutenção da paz e da segurança, e preferimos isto.
Para nós, na base, que rachamos com a esperança de que o partido nos veria como uma possível fonte de renovação e criatividade, a realidade se tornou muito pior do que imaginávamos. Temos orgulho do que conquistamos através do racha, fizemos questão de colocar a faca nos dentes pra lutar encarniçadamente contra o conservadorismo e contra o sistema, achávamos que agora, fora daquela estrutura da ala conservadora, poderíamos olhar ao redor e nos ver entre iguais, mas ainda nos sentimos olhados do mesmo jeito, o que é muito pior do que imaginávamos que seria o período de reconstrução pós-racha.
“Alguns de nós achados e alguns de nós perdidos
E a chave do mistério
São enigmas em livros
Alguns de nós as chaves alguns de nós vendidos
E a chave do mistério
São metáforas em livros” – Froid em “A Pior Música do Ano”
1.3.2 - Desvio 2
“3.2 – Dogmatizar formas organizativas, métodos e concepções ideológicas
As formas organizativas geralmente são o resultado das concepções ideológicas que temos. Se as concepções são dogmáticas, as formas organizativas também serão dogmáticas e nem uma nem outra evoluirão. [...]
[...] O dogmatismo equivale a uma pessoa idosa, que aprendeu um tipo de dança na juventude. Ao ver os jovens na atualidade, critica. Por não ter acompanhado o desenvolvimento da música e dos ritmos, acha que todos estão errados.
As formas organizativas e os métodos de trabalho são como as sementes só germinam de acordo com o clima e o tempo certo de plantio.” – Caderno de formação nº 35, MST.
Seria plausível entender o interesse do Leviatã em manter as coisas como estão. Seu Objetivo está alcançado. Nessa harmonia imposta, talvez os servos de máscaras, ainda que sendo servos, tentem conservar a ordem vigente com avisos de que sem o Leviatã será pior, precisam desconfiar de sua própria capacidade de construir algo novo. Poderiam contar histórias e justificativas para manter as coisas como estão. Usar o pânico moral da alternativa.
Ainda que a besta britânica tire prazer de comer mais liberdades, uma criatura parasitaria como essa não necessariamente poderia ter inclusive a ambição de se tornar o maior dos monstros. Por mais que crescer lhe seja interessante, se sua existência não for ameaçada, pode perder muitos se isso resultar em manter a sua própria existência.
Durante o racha em meu local de atuação, os coletivos do complexo partidário convulsionavam a cada ordem que chegava da ala conservadora. A cada tentativa de abafar ou controlar a situação, empurravam mais pessoas para a ala transformadora enquanto quebravam o espírito de outras mais. Pessoas que levantavam dúvidas sobre o que estava acontecendo eram tratados como possíveis dissidentes e, com a própria incapacidade de responder dos dirigentes, desacostumados a tomar decisões próprias e aguardando as ordens de cima, elas se tornavam dissidentes.
Quando chegavam diretrizes da alta hierarquia dos coletivos, eram péssimas. Chegaram inclusive a usar poesia de mau tom como uma forma de apaziguar os questionamentos. Além de escárnio e risos, isso revelava o próprio despreparo dos dirigentes para alcançar seu próprio Objetivo. Ainda que esse objetivo fosse conservar a harmonia vigente. Tinham se especializado no conservadorismo e nem nisso se mostravam competentes.
O Curupira Embrasado, em resposta, precisaria dançar com o desenvolvimento dos ritmos e das músicas. Uma estrutura flexível que fosse capaz de entender quais problemas precisa superar e quais metas precisa atingir. Quais músicas estão sendo tocadas e em quais ritmos. Com isso, precisaria se adaptar e se mover de acordo. Se uma tática não funcionar, aprender com ela, corrigir ou mudar. Se um problema não foi identificado, ajustar-se para o reconhecer mais rápido e melhor no futuro.
Fazer germinar sementes estudando qual o clima e o tempo certo para o plantio. Precisa ter memória para não repetir os erros e acelerar os novos acertos. O que funciona, porquê funciona e como funciona? Entender onde interceder e como interceder. Reconhecer seus próprios limites e se planejar para os superar.
Harpia Dourada: Ao produzir o racha, e em sua duração, conseguimos ser este curupira, a imenso custo individual (espero que as camaradas e os camaradas que se adoeceram em prol de nossa organização consigam voltar a dispor seus ombros ao lado dos nossos, e é o objetivo dessa tribuna que o façam a um custo pessoal cada vez menor, ser mártir não pode ser algo aceito.) conseguimos vencer o Leviatã que se impunha sobre nós tal qual Davi venceu Golias. Entretanto, nos apresentamos cada vez mais como um novo leviatã, ou, caso prefiram, como o jogador de futebol Junior Baiano da política para nossas bases: sempre atrasado na jogada e dando voadora.
Mimercofaga: Como um dogma, uma reza, repetir os versículos para estar próximo de Deus, sem sequer entender a palavra. Pior, fingindo entender a palavra enquanto continua sendo apenas um filisteu. Não basta repetir, é necessário superar.
Harpia Dourada: Estamos cada vez mais reativos, lentos, dogmáticos e dóceis aos nossos problemas, estamos também cada vez mais dispostos a docilizar nossas e nossos camaradas com respostas prontas e pouco refletidas, embasadas não em estudos materiais dos nossos problemas, mas sim porque “Lenin disse que”, porque na “União Soviética era”. Independente de ser verdade ou não camaradas, responder a QUALQUER questão apresentada por uma pessoa brasileira no século XXI com respostas análogas às anteriores em nada nos difere de um pastor qualquer que diga “porque Deus quis”. Nos deixa pior no sentido de que pastores pelo menos têm o carisma de usar termos variados, internos e que levantam O moral de seus súditos com termos como “Varão”, “abençoado”, “profeta”, falam de jeitos engraçados, inventam idiomas próprios e arranjam empregos, cestas e apoio diverso (mesmo que de eficácia duvidosa) aos seus em primeiro lugar. Enquanto nós pautamos como carro chefe internacionalismo a uma classe majoritariamente subempregada, sem comida na mesa e com a atenção internacional destinada a povos marrons do sul global, associamos nosso único termo de reconhecimento coletivo a desgaste emocional, e acima de tudo, como nosso mais absoluto ponto de vergonha: SOMOS ESTATISTICAMENTE PAULISTANOS!.¹
Capivara Tabagista:
“Seja Basquiat
Não seja DiCaprio
Aprenda a ler lendo Bell Hooks
Não lendo cardápio!
Trafique drogas
Roube bancos
Não seja um larápio
Eu quis dizer Da Vinci
Europeus são iguais a Leonardo DiCaprio
Eu encontrei hoje a resposta para barbárie
Garotos de Hotwheels
Só garotas brincam de Barbie!
Os garoto quer ser ladrão
Cresce, vira polícia
Nem mudou a profissão
Só o que pedem que você vista!” – Djonga em “A Pior Música do Ano”
Seguimos tentando aprender a ler usando um cardápio do Paris V, em vez de Bell Hooks, sendo larápios que tentam se parecer com todos os europeus brancos, reproduzindo a dinâmica “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” (vide a divisão de gênero ainda presente em nossa estrutura, mesmo com o fim dos coletivos que representavam, na realidade, um depósito de militantes divididos em caixinhas rotuladas de acordo com as opressões que sofriam). A gente nasceu durante o racha querendo ser o ladrão que roubaria o poder possuído pela ala conservadora, será possível que crescemos e viramos o polícia que espanca quem veio de onde viemos?
Se nós seguimos lidando com o partido como esta estrutura pétrea e inflexível, acreditando que sua forma organizativa determina o conteúdo político de nossa atuação e, portanto, não pode ser alterada sob pena de se macular o marxismo-leninismo em seu âmago, apenas reproduziremos uma cópia do Leviatã que nos cuspiu de suas entranhas quando nos recusamos a servir de alimento ao monstro. Não vamos mudar o partido, só a roupa que pedimos que os militantes usem ao participar de atos representando nossa organização.
Mimercofaga: O marxismo é exatamente oposto ao dogmatismo, a rigidez, ele é como a água que assume inúmeras formas e inúmeros estados, seja sólido, líquido ou gasoso. Essa permeabilidade, sempre unida a partir da força tensora e de sua coesão, permite-lhe superar qualquer barreira, qualquer poro ou fresta e reassumir outras formas, sem, no entanto, perder seu conteúdo - sua água.
1.3.3 – Desvio 3 e 9
“3.3 Confundir unidade com uniformidade
Consegue-se a unidade quando se respeita as opiniões e as submetemos à vontade da maioria; a isto chamamos de centralismo democrático, onde todos podem apresentar seus pontos de vista e disputá-los.
[...]
A uniformidade seria a proibição de discordar como se tivesse um único caminho para se chegar a um objetivo. Por sermos humanos, temos ideias, opiniões, gostos, vontades, temperamentos, emoções, habilidades diferentes.
No estratégico portanto temos unidade, nas táticas temos flexibilidade despertando em cada lutador e lutadora a capacidade de criar. Na luta de classes a criatividade é a arma principal para derrotar os inimigos.
Se termos unidade em torno dos objetivos estratégicos, e humildade para reconhecer que a vontade da maioria é que decide, as discordâncias sempre existirão, mas ficarão restritas à questões pontuais que o tempo supera rapidamente.”
“3.9 – Usar uma linguagem maliciosa e ‘preconceituosa’
Existem pessoas que, no intuito de serem modernas, utilizam uma linguagem que dá margem ao preconceito.
No trabalho de base, geralmente a classe trabalhadora possui um raciocínio associativo construindo imagens através das palavras ditas. Se a linguagem for direta mas preconceituosa, as pessoas tendem a satirizar ou a retraírem-se, estabelecendo-se um bloqueio na participação.
[...]Ignorar a questão da linguagem é causar problemas. É violentar a cultura e criar resistências de relacionamento entre os trabalhadores.’”
Harpia Dourada: Quão atentos estamos ao fomento da critica e autocritica a nível de base? Enquanto dirigentes, estamos orientando e portanto garantindo o tensionamento e debate de qualidade entre nossas bases? Resta claro² que estamos no máximo reagindo quando os tensionamentos passam dos limites, sem nunca socializar os comos e porquês, não apresentando saldos e aprendizados as nossas bases e nem como fazer esses momentos serem de avanço ao invés de momentos de desgaste.
Capivara Tabagista:
“Ruim de rima, ruim de flow
Bom de patrocinador
Sangue ruim, ruim de mira
Você quase me acertou
Sanguessuga, sai de cima
Você tem o sangue azul
Azul piscina
Nego eu sou a sina do terceiro mundo”
A crítica e a autocrítica no nosso partido só servem como pontos de desgaste e quebra de unidade porque, acostumados com o sanguessuga de sangue azul que parasitava nossas fileiras e vivia montado em nossas costas, nós aprendemos a usar a crítica como uma arma para ferir o outro, e a autocrítica como uma penitência para expurgar nossos pecados. Dessa forma, hoje, quando aqueles que se acham possuidores da iluminação advinda da verdadeira palavra profética do salvador direcionam suas críticas e autocríticas, mirando em acertar a raiz de algum problema interno que percebem como a fonte de todo o mal que nos impede de avançar, eles só conseguem acertar o próprio pé, e, muitas vezes, a nós. Não à toa estamos fartos de tanto fogo amigo.
Boto Vermelho: Relacionando ao Leviatã e aqueles que vestem as máscaras com as cores da besta, fazer parte de seu coletivo aparentava ser determinado principalmente pelo parecer ser. Precisa-se parecer o mesmo, vestir parecido, falar parecido, gostar parecido, emocionar-se parecido, ter temperamentos parecidos, ter ideias parecidas, às vezes, ter sobrenomes de origens parecidas.
Lembro-me de como a ala conservadora vigiava a linguagem. Os documentos deveriam ser assinados e escritos com os mesmos termos. Palavrões, gírias ou falas mais exaltadas eram repudiadas. Parecia que seu vocabulário tinha se reduzido às mesmas centenas de palavras que ninguém fora do coletivo usava.
O uso de termos normalizados na periferia, que poderiam ter caráter de reprodução de opressões, em vez de serem corrigidos de forma pedagógica, eram usados como argumentos de corredores do caráter das pessoas. Certa vez, ao presenciar uma pessoa usando um termo que eu considerava inapropriado, chamei a pessoa para conversar e expliquei o que achava daquela expressão em questão. Depois dessa pessoa entender que não era uma questão de autoafirmação da minha inteligência, ou de impor minha crença pessoal por cima dela, mas de que eu honestamente queria entender o que ela queria dizer e que poderíamos expressar aquilo de formas melhores essa pessoa não retornou a reproduzir. Informou-me que não tinha tido acesso àqueles debates.
Fiquei refletindo sobre aquilo: esperava-se certa postura dos militantes como se tivéssemos todos nascidos das mesmas famílias, vivido os mesmos caminhos, frequentado os mesmos lugares. Ou, ainda, que aquelas pessoas deveriam aceitar, impostas de cima para baixo, da iluminação do seu saber contra o não saber da pessoa sem luz própria, que ser como elas era o correto.
Quem usava as palavras e termos corretos parecia ter, quase que um como um feitiço, uma legitimidade de que sabia do que estava falando. De que se havia compreendido a teoria e se usava-a adequadamente naquela situação. De forma semelhante, pessoas que não vinham dos mesmos lugares em comum, que não se sentiam confortáveis em se expressar daquelas formas, eram escanteadas. Seu jeito de existir, de pensar, de socializar era, de alguma forma, contrário ao que estava sendo construído ali. Muitos não se viam naquele lugar.
Participei de uma longa reunião entre lideranças certa vez, em que esses termos eram usados como um arsenal. O que chamavam de convencimento era normalmente uma enxurrada de jargões repetidos entre membros da ala conservadora, um após o outro. Ainda que já tivesse sido dito anteriormente, parecia ser necessário reafirmar. Seja para demonstrar alinhamento com a facção dirigente, ou para exaurir possíveis dissidências.
Seus argumentos eram, muitas vezes, ataques morais rasteiros e platitudes revestidas de verniz marxistas. Acusavam os militantes de coisas nefastas, além de comentários maldosos, mas desde que se afirmasse ao final “Não de forma, pessoal. Mas política.” ou se, em vez de se chamar uma mulher de vadia, insinuassem diversas vezes que suas ações eram motivadas por uma mescla de insanidade e lascívia perversa com pitadas do que chamavam de estalinismo, intercalassem as acusações com termos marxistas e eufemismos, estaria agora o conteúdo do afirmado mudado. Aquelas pessoas pareciam acreditar, ou confiavam que ao menos os demais o faziam e agiam de acordo, que, ao mudar o nome da coisa, estariam mudando a própria coisa.
Ao final desse encontro, questionei aos presentes o que queria dizer um dos termos que usaram para justificar certos argumentos que não compreendia na época, porém desconfiava da integridade de seu uso. Indaguei a qual autor estavam se referenciando para o uso naquele contexto e recebi um silêncio tragicômico. Entreolharam-se embasbacados. Não sei se não estavam acostumados com aquele tipo de pergunta, talvez não julgassem pertinente a definição do termo dado ou ainda que tinham receio de estarem usando bases de autores diferentes. Depois que uma pessoa tentou me responder, outra a corrigiu afirmando que estava em um capítulo de um livro usado no recrutamento, porém não era obrigatória a sua leitura completa. Li o texto. Não só não se encaixava no que tinha sido afirmado em reunião, como achei o que o autor descrevia pouco interessante.
Parecia que, mais importante do que construir algo que melhorasse o que estávamos fazendo, era estar alinhado com os interesses e limitações dos que dominavam os ritos e linguagens. Dado a própria precariedade das formações, os que melhor dominassem essa forma viravam referências. Suas falas e ações eram espelhadas nas pessoas que buscavam aprender ou se adequar.
Mimercofaga: Como os padres da igreja católica que impunham a unidade da interpretação da palavra através da manutenção do latim como linguagem vernacular, impedindo que os servos, que mal sabiam ler, jamais pudessem ler eles próprios a bíblia, mas necessitassem sempre de um intermediador, de um litúrgico que interpretaria a palavra ao servo. Infelizmente, mal sabem eles que existem aqueles que querem traduzir a bíblia, vulgarizar a palavra e destruir o poder dessa igreja que nos mantém na idade das trevas, nessa escuridão dogmática, inflexível e que rejeita qualquer transformação. Iremos mostrar não um Lutero que queria ocupar o lugar do papa, mas um Thomas Münzer que guiará os servos contra o império e a nobreza.
Boto Vermelho: Porém, desde que não soasse como diferente do que os dirigentes exigissem, a busca pelo inimigo se dava também pela diferença do que era aparente. Parecer uniforme indicaria que não havia dissidências.
Centralismo-democrático era quando obedecíamos a uma minoria.
Usando a alegoria junto da de Thomas Hobbes, se o objetivo da criatura, seu propósito de existir parasitário, é se manter sugando os seus próprios servos, sua estratégia seria manter o que entendia como harmonia funcionando. Essa harmonia implicava também em manter as mesmas táticas uniformes, mesmo que amadoras, desde que continuassem a manter o objetivo.
Os ritos mantinham a besta alimentada. Seu objetivo era continuar na mesma ordem imposta. Mudanças, quando não eram barradas, seriam proteladas em seu enrijecido movimento. Estava confortável por cima de seus subordinados. Qualquer dissonância poderia indicar uma crise, a própria morte da criatura. E, pela lógica imposta pela própria besta ou de seus sacerdotes mais altos, seria o fim dos servos que jamais poderiam viver melhor.
Gostei do que o professor Ademar Bogos apresenta. O centralismo democrático se dá aonde tem diversidade na tática e integridade na estratégia para alcançar o objetivo. A criatividade é parte fundamental da sua construção. A vontade da maioria não é expressada somente em um breve momento eleitoral, como em uma eleição burguesa, mas na própria construção da ação.
Eu confesso que evitei citar alguns autores clássicos que tenho de referência e estudo para tentar entender o que faziam e como resolver os problemas que tenho hoje. Tentei isso na esperança de que instigasse à reflexão sem que soasse como um apelo à autoridade dessas figuras.
Porém, eles se mostram saltos qualitativos para a construção de um processo de mudança da realidade. Mesmo os evitando, refletem em obras posteriores mesmo que sejam usados termos diferentes. Há uma continuidade na essência através da ortodoxia dos métodos materiais históricos e dialéticos.
Lembrei-me de Lenin ao escrever em 1917 em seu texto sobre Como Organizar a Emulação:
“A emulação deve ser feita entre organizadores práticos a partir dos operários e camponeses. Toda tentativa de estabelecer formas estereotipadas e impor uniformidade de cima, como intelectuais são tão inclinados a fazer, deve ser combatida. Formas estereotipadas de uniformidade impostas de cima não têm nada em comum com a democracia e o centralismo socialistas. A unidade do essencial, dos fundamentos, da substância, não é perturbada, mas assegurada pela variedade dos detalhes, das características locais específicas, dos métodos de abordagem, dos métodos de controle, dos modos de exterminar e tornar inofensivos os parasitas(os ricos e os intelectuais desonestos, desleixados e histéricos, etc., etc.).”
Pretendo elaborar mais sobre a categoria da emulação socialista nos capítulos seguintes.
Lembro-me, novamente, de como a ala conservadora vigiava a linguagem. Os documentos deveriam ser assinados e escritos com os mesmos termos. Certa vez escutei de uma liderança da região tida como referência intelectual que um hífen a mais ou a menos entre o nome da organização e a unidade federativa poderia passar a ideia do que chamavam de federalismo.
Usavam o termo para descrever um fenômeno de divisão de poderes regionais entre os adoradores de seu Leviatã. Nesse tal de federalismo haveria um pacto silencioso entre essas oligarquias locais de não interferir no espaço de influência de outra oligarquia. Pretendo elaborar sobre essa falta de centralidade, de capacidade de impor sua vontade sobre outra região, mais à frente.
Voltando ao hífen que muda a materialidade do fenômeno. A prova do pudim estava no parecer ser um pudim. Caso não parecesse um pudim, a coisa deixaria de ser um pudim.
Pretendo elaborar mais nos capítulos seguintes o porquê de achar que havia essas oligarquias locais, mas não seria mudado pelo hífen. Talvez a expressão das diferenças pudesse indicar o sintoma e permitir sua correção devida.
Voltando à emulação socialista descrita pelo calvo russo. Ao longo do texto do qual essa citação foi extraída, ele relata que os intelectuais da burguesia se julgavam superiores às pessoas comuns. Aos trabalhadores comuns e camponeses pobres. Acreditavam que essas pessoas seriam incapazes das tarefas organizacionais que a construção socialista impunha sobre elas. Atribui isso ao que chama preconceitos gerados a partir de uma rotina apodrecida, de uma visão petrificada e hábitos escravocratas.
O próprio advogado se posiciona contrário a isso. No trecho citado acima, afirma inclusive que deve ser combatida a uniformidade e formas estereotipadas vindo de cima, porque seria o que esses intelectuais descritos acima são inclinados a fazer. Mais ainda, que isso não teria qualquer relação com o que acreditava ser a democracia e o centralismo socialistas.
A variedade dos detalhes, das particularidades de cada característica local, asseguraria a unidade dos essenciais, dos fundamentais, da substância. O critério da verdade estaria na realização da organização prática do proposto. Do como fazer a coisa.
1.3.4 - Desvio 4 e 5
“3.4 – Diferenciar democracia de organicidade
[...]Preocupar-se com democracia e não com a organicidade é ser antidemocrático por natureza, pois organicidade é o elemento fundamental para que as bases possam participar, dando suas opiniões para que as instâncias tenham mais elementos para decidirem questões menores, e as bases possam contribuir na implementação das decisões encaminhadas pelas instâncias.
Organicidade portanto, é a relação que deve ter uma parte com a outra da mesma organização. Embora as tarefas sejam diferentes, as partes têm a mesma importâncias, pois sem elas a responsabilidade das tarefas recaem sobre algumas delas. Se fossemos perguntar aos pneus traseiros de um caminhão qual deles é mais importante, o de dentro ou o de fora? A resposta seria nenhum dos dois. Se um furar o peso cairá em dobro sobre o outro e poderá furar também.”
“3.5 – Pensar em conduzir o movimento de massas em ‘linha reta’
Todo movimento das massas na história da humanidade caminhou por ondas. Ou seja, após longos períodos de luta e enfrentamentos, as massas retrocedem como que para recuperar as forças. Não significa que estão abandonando a luta, estão pedindo um tempo para respirar, olhar para frente e retornar a luta com mais força e determinação. Não compreender este dinamismo no movimento de massas é levar a organização ao fracasso. [...]
Embora se tenha que lutar até o fim para alcançar os objetivos, é preciso saber elaborar as táticas e combinar as formas de luta. Se torna indispensável para crescer saber combinar os dois elementos de avanço e recuo.”
Após o racha, houve um levantamento de dados na região. Os poucos e escassos documentos, em sua maior parte já gerados por iniciativa das pessoas que estavam sendo perseguidas por, entre outras questões, quererem superar a uniformidade do amadorismo.
Ao avaliarmos o que aconteceu durante o período anterior, constatamos que era comum em diversos espaços a presença em reuniões de deliberação pouco acima da metade e, não poucas vezes, menos do que isso.
Do que emergiu do racha, parece que isso se reproduzia inclusive a nível nacional. Eu me perguntava como isso podia ser possível dado que essas pessoas presentes poderiam perceber isso e tentar corrigir. Talvez não estivessem à altura do problema à sua frente ou mesmo que não fosse um problema para elas, existia inclusive a possibilidade de que só conseguiriam estar aonde estavam por conta disso.
Veja, se faltam pessoas constantemente em uma tarefa, talvez seja necessário reavaliar como essa tarefa foi especificada. Se os membros da organização estão constantemente sobrecarregados com o que se dispõem a fazer, talvez precisem reavaliar o que estão fazendo.
Eu me desapontei diversas vezes ao observar que os métodos de avaliação e resolução da falta de organicidade se resumiam a manipulações emocionais. Conversas com os militantes quebrados, muitas vezes com sua saúde mental fragilizada, era o mais avançado que era permitido. Quase como se fosse uma questão de mudar a mentalidade, a forma como enxergava as coisas, e resolveria o problema.
O pudim parecia marxista. Na prática, era discurso de vibrar na frequência quântica da abundância. Era, ao meu ver, o que pretendo descrever como idealismo dando o benefício da dúvida aos que não agiam de má fé.
Ouvi lideranças afirmarem que um membro do coletivo havia relatado que não conseguiria mais atuar em uma secretaria. Uma tarefa contínua, normalmente com uma temática genérica e sobrecarregada de diferentes temas, que era proibida de ser descrita como cargo.
Esse membro teria dito que pretendia focar em formação universitária e em sua própria vida. Havia indicado o nome de outra pessoa que havia demonstrado disposição, podia sacrificar de sua vida pessoal, e interesse em atuar. Eu esperava que, para outra pessoa assumir a tarefa, era esperada uma nova eleição.
Pessoalmente, nunca vi alguém terminar um mandato, se é que existisse um tempo de mandato para novas eleições de base. Não tive conhecimento de pessoas que conseguiram chegar ao fim do mandato na base. Mesmo em um espaço de liderança a nível regional, chegamos a ter somente 1/4 dos militantes originalmente eleitos atuando após um ano. A próxima eleição oficial somente seria realizada dois anos depois.
No caso do militante que relatou querer sair da secretaria, essa conversa teria ocorrido antes da eleição no espaço de atuação. Tinham receio com o nome indicado. Essa figura havia sido descrita como problemática por fazer muitas perguntas. Era o que chamavam de indisciplinada.
Entendiam que o membro deixando a secretaria não estava realmente incapacitado de assumir o cargo. Podia tirar tempo de sua vida pessoal para se sacrificar pelos interesses da facção dirigente. Era necessário para impedir que o adversário alcance o que pareciam ver como uma posição de poder, talvez de acesso a informações ou às decisões.
Nesse mesmo espaço foi relatado que uma dessas mesmas lideranças, quando a eleição estava acontecendo e achavam que iriam perder contra a figura indicada, partiu para ataques pessoais que desmoralizaram o membro da base e que essas acusações seriam políticas. As acusações políticas e não pessoais seriam de que era indisciplinado e violava o centralismo-democrático.
Não informaram contra quem estava concorrendo, porém não seria incomum uma eleição contra manter vazia a secretaria e os demais secretários se sobrecarregarem ainda mais tentando compensar.
O golpe foi tamanho, pelo que um dos próprios perpetradores afirmou, que a eleição que perderiam foi adiada para outro dia. Não porque as pessoas teriam sido convencidas a mudar o voto, mas porque quem venceria as eleições não se considerava em condições de continuar.
O adversário tinha sido incapacitado emocionalmente. Pediu um afastamento pouco depois. Era a forma como descreviam que uma pessoa se ausentaria por algumas semanas do coletivo.
No período entre as eleições, continuaram a tentar convencer o ex-secretário a voltar. Entendiam que ele podia dedicar mais tempo para o coletivo, só precisava ser convencido. Precisava mudar sua forma de ver a situação, suas prioridades e suas dores. Ele não cedeu na primeira semana.
A figura retornou mais rápido do que esperavam, só que, dessa vez, talvez tivesse entendido a mensagem. Pelo que as próprias lideranças relataram, foi conversar com algumas delas em privado e foi convencido a corrigir sua postura de desobediência. Após garantir sua adesão à essa facção, esses teriam lhe garantido que seria eleito.
No dia da eleição, o ex-secretário havia voltado para se dispor à função. Após o acordo de corredor, a própria facção dirigente traiu o acordado.
Acredito que esse relato, sendo o que eu entendo como uma confissão, exemplifica certos sintomas que eu percebia nos espaços que tinha acesso. A democracia era uma formalidade. Desde que ocorresse um momento para se votar alguns cargos, estaríamos reproduzindo o que entendiam como democracia. O próprio tempo disponível, capacidade de articulação e acesso a informações da pessoa não interferiria com a expressão da democracia do coletivo.
Perguntava-me se entendiam que o poder popular seria expressado a partir de eleições de votos e longos debates em cimas de abstrações. Seriam os problemas da ditadura da burguesia em sua aparência democrática resolvidas por expandir os números de eleitores?
Vejo um reflexo disso em uma denúncia feita no Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB:
“Com as contradições acirradas dentro do Partido e do Congresso, com a ala esquerda disposta a abrir às claras a discussão sobre os desmandos, perseguições e boicotes, rapidamente o Secretário Geral começou a organizar um “acordo”, que colocamos a público pela primeira vez neste documento. Esse “acordo” implicava que a ala esquerda abriria mão da denúncia no plenário de diversos dirigentes em troca da garantia de que se encerrariam os processos disciplinares e perseguições internas. [...]
A ala defensora da Reconstrução Revolucionária buscou, nesse momento, preservar a unidade do PCB por meio do trabalho prático positivo – construindo nossa inserção no proletariado e nas lutas de classes em uma situação em que o mundo mal saía de uma pandemia global[...]
“Aqui, no entanto, é necessário ressaltar uma autocrítica da ala defensora da Reconstrução Revolucionária: ela tardou demais a reconhecer a fragilidade do “acordo” costurado pelo Secretário Geral no XVI Congresso, que não interrompeu os boicotes e perseguições. [...]“
Fizeram um acordo em vez de publicizar para as bases o que ocorria. Considero compreensível a decisão, dado o caráter de vigilância e punição que a ala conservadora expressava. A própria estrutura estava montada para reproduzir a mesma tendência, os mesmos perfis e formas de atuar.
Quando entrei, isso não parecia ter surtido efeito. As perseguições continuavam. Os problemas também.
Capivara Tabagista:
“E, meu povo sofre que o estado caia
Em uma piscina de sangue, quem foge da raia?
Meu povo sangra que o estado caia
O tsunami vem aí vamos morrer na praia” – Djonga em “A pior Música do Ano”
Enquanto a estrutura decadente que chamamos aqui de Leviatã convulsionava à medida em que a ala conservadora se recusava a demolir suas bases opressoras, nossos camaradas sofriam e caíam. Esta estrutura é capaz de bater recordes de quebras, afastamentos e desligamentos, mês após mês, enquanto nos esforçamos para apagar incêndios e pedimos que os militantes fechem os olhos e mentalizem água cristalina no lugar da piscina de sangue onde nos afundamos. Vimos o tsunami vindo e tememos morrer na praia.
1.3.5 - Desvio 6
“3.6 – Defender o princípio de direção coletiva sem preparo intelectual
Toda direção democrática deve funcionar de forma coletiva. Mas a direção para ser coletiva, deve ter domínio de conhecimentos e nível de consciência política elevada. Onde um apenas domina o conhecimento, concentrará também o poder em suas mãos, pois “saber é poder”.
Vendo de outra forma, a organização que ao invés de qualificar as instâncias qualifica apenas um ou alguns líderes, corre o risco da destruição pelo subjetivismo, oportunismo ou pela repressão. Os ideais revolucionários não podem depender de uma só pessoa para serem defendidos e alcançados. Tudo deve ser obra coletiva mesmo que às vezes as habilidades individuais estejam em destaque.
Formar quadros significa incorporar os lutadores em todos planos e tomada de decisões. Dirigir é tomar decisões, por isso é que se torna quase impossível formar quadros fora do espaço onde se tomam as decisões.
O preparo intelectual vem através dos conhecimentos. Não importa como os conhecimentos cheguem até nós, importa que os assimilemos. Mas fundamentalmente todo dirigente deve ser autodidata, ou didata de si mesmo. Buscar por conta própria o conhecimento. Daí é que a leitura que faz um dirigente é diferente das leituras que fazem os estudantes universitários. O dirigente estuda o que os problemas exigem pois a prova que deve prestar é com a construção da história. Se este falhar, seus seguidores perderão o ano e talvez a vida..”
Relendo esses trechos, me maravilho com a qualidade do método. O que o professor descrevia eu conseguia perceber em diversas experiências que tive sob o Leviatã. Nos estudos que fizemos, era perceptível uma sobrecarga elevada e uma desproporcionalidade de como esse esforço está distribuído. A tendência era que pessoas com mais experiência se desgastassem tentando realizar o que era proposto ao mesmo tempo que precisavam tentar compartilhar o que sabiam.
Muitos não aguentavam atuar por muito tempo naquelas condições e novas pessoas precisariam ser formadas. Esse processo de formação, por si só, era atravancado pela indisponibilidade dos membros do coletivo. Quando não eram ausentes, eram ministrados pela ala conservadora de forma precária.
Capivara Tabagista:
“Alguns de nós matados
Alguns de nós morridos
Policiais safados
Assassinam meus amigos
Alguns de nós chapados
Alguns de nós perdidos
Muitos de nós calados
Os que falam soam bandidos!” Froid em “A Pior Música do Ano”
Alguns de nossos camaradas foram expulsos, outros decidiram se afastar da militância, forçados a isto pelo adoecimento que o partido lhes causou. A ala conservadora foi muito bem-sucedida em, não só realizar um expurgo para limpar as fileiras do partido de toda divergência política e de afinidade pessoal, mas também garantir que o processo tivesse uma eficiência tal que eles não precisariam expulsar, um por um, cada militante que não se submetesse às suas vontades. A maioria sairia por conta própria, fosse porque tiveram seus espíritos e sua esperança na luta revolucionária da organização quebrados, fosse porque sua saúde mental foi completamente degradada em decorrência dos abusos sofridos.
Muitos de nós se sentiam completamente perdidos durante boa parte do processo de cisão, sem conseguir compreender o que realmente estava acontecendo com o partido e em quais informações acreditar. Mas isto não era novidade, já que era prática corriqueira da organização manter a base desinformada e perdida em meio aos processos partidários, até mesmo através da linguagem, como se tivéssemos colocado um dispositivo alienígena nas mãos de um terráqueo e exigíssemos que ele operasse o dispositivo sem qualquer instrução. Quando abríamos a boca para questionar esta conduta ou para criticar seus resultados, éramos repreendidos. Quando finalmente falamos, publicamente, sobre a decadência daquele partido e seus vícios, tomando a coragem de deixar claro que nós somos, sim, partido, porque o partido somos nós, que o construímos diariamente, fomos chamados de bandidos. Segundo eles, nós roubamos o partido, seu nome, suas siglas, seus militantes, seus símbolos. Chegaram ao cúmulo de organizar um ataque coordenado às nossas redes sociais, com o argumento de que, se não pudéssemos ocupar a internet, deixaríamos de existir. Não funcionou, continuamos aqui. Se antes eles afirmavam que nós éramos um grupelho de sectários seguindo figuras personalistas da internet, irrelevantes para o avanço do partido deles, após o racha, eles se disseram vilipendiados por nós. Reclamaram de prejuízos aos trabalhos que estavam em andamento, nos acusaram de roubar deles tudo o que estavam construindo. Ora, se não éramos partido e não éramos relevantes, como é que nossa saída poderia ser culpada pela interrupção e inviabilização dos trabalhos do partido?
Porque era esse o discurso cotidiano e era essa a cultura partidária que sempre permeou esta estrutura. Quando, em vez de cumprir de cabeça baixa as ordens que vêm de cima, a base passa a se manifestar, a questionar, a apontar os problemas, para quem quer conservar a estrutura opressora e manter vivo o Leviatã, essa base soa como bandidos.
Boto Vermelho:
O que, ao meu ver, aparecia na prática como uma manutenção de sua própria influência assim como reprodução da sua própria visão de mundo.
Em meu espaço de atuação, priorizamos a formação e o trabalho prático. Seguindo a apostila de formação do coletivo voltamos aos clássicos Marx, Engels, Lenin e outros autores com foco anticolonial e com um olhar orientado ao sul global. Também para o nossa própria forma e local de atuação. Através dela e além dela, nós compreendíamos que aquilo que sentíamos não somente não era aquilo que pregavam, mas também que esses autores propunham soluções melhores para os problemas que enfrentávamos.
À medida em que aprendíamos com os autores, tentávamos melhorar a qualidade dos estudos. Incentivar que mais pessoas participassem do processo intelectual.
Infelizmente, quando uma pessoa não aguentava mais participar do coletivo, esse conhecimento era perdido. A memória do que foi feito, como foi feito e o que foi preciso era retida de forma oral. O que dependia da própria disponibilidade da pessoa de compartilhar o que sabia e pessoas esgotadas dificilmente tinham como realizar isso com qualidade.
A avaliação coletiva, como qual o balanço dessa ação, se é possível fazer melhor, se devemos fazer menos ou mais, era muitas vezes feita somente através do que era anotado de reuniões de forma manual. Normalmente, uma pessoa era incumbida com a tarefa de registrar esses relatos orais, e ela poderia estar sobrecarregada. O que poderia desestimular a sua participação nas decisões e questionamentos. Essa pessoa, por sua vez, muitas vezes para acompanhar o próprio desenrolar do evento, era estimulada a fazer sínteses com critérios pouco claros. Em situações de tensionamento, o próprio documento poderia ser questionado.
Não foram poucas as vezes em que solicitamos ajuda para a facção dirigente. Pedíamos para aprender sobre como outros espaços estariam resolvendo a questão da sobrecarga ou com a alta rotatividade de pessoas. Até mesmo se teriam informações sobre o balanço de ações anteriores de nosso espaço de atuação, ou sequer quais eram.
As respostas que recebíamos eram pouco satisfatórias, às vezes beirando que pedíssem que nos esforçássemos mais. A própria passagem do conhecimento era feita por pessoas sobrecarregadas, autorizadas a se comunicar e ser a ponte entre um espaço com a direção. A lentidão e a precariedade das respostas eram atribuídas ao próprio funcionamento organizativo. Precisariam esperar até o próximo encontro para avaliarem a validade do pedido. Esse pedido era muitas vezes protelado como menos prioritário que os demais temas, ou jogado para outra instância avaliar, instância esta que, por sua vez, poderia fazer o mesmo. Várias vezes o pedido era somente negado após semanas e esse processo se repetia com recursos ou pedidos novos.
Quando estudávamos e aplicávamos as mudanças em nosso espaço de atuação, nossa iniciativa era censurada sob os mesmos pretextos. Isso, junto das perseguições, indicava que as prioridades da facção dirigente e as nossas talvez não fossem as mesmas. Ao longo desse movimento, descobriríamos que eles não estavam interessados em resolver essas questões, ou se mostravam incapazes de aplicar uma mudança.
Lembrei disso nesse trecho do Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária(2023):
“Mais preocupados com o controle da máquina do que com a discussão política, a esmagadora maioria do então CC não contribuiu para a discussão nas Tribunas. Essa maioria da direção, que sempre foge a expor perante a militância suas convicções políticas, permanece politicamente amorfa, merecendo a velha designação consagrada por Lênin de pântano. “
Nossa prioridade foi construir uma memória histórica e ampliar as formas de socialização dos avanços.
1.3.6 - Desvio 7
“3.7 – Ver disciplina como simples obediências às normas
Toda organização deve ter normas, estatutos, etc, que são critérios estabelecidos pelo conjunto da organização para serem observados por todos. Mas respeitar normas para provar que a “instituição” funciona é um crime contra a consciência e a criatividade dos seus lutadores. O mesmo ocorre quando as normas são cumpridas por medo de sofrer punição ou castigo.
A observância das normas deve ser consciente. Quem as está cumprindo, assumiu o objetivo a ser alcançado pela organização como seu, por isso não reclama do sacrifício nem do esforço a mais e voluntário que deve empregar.
A diferença entre uma organização revolucionária e uma seita é, fundamentalmente, o aspecto do fazer de forma consciente, e o de fazer de forma doutrinada. À primeira é dialética, a segunda é sectária.
Para se chegar à disciplina consciente deve-se buscar a formação da consciência. À disciplina neste sentido garantirá o princípio da unidade. Fazer por acreditar é diferente do fazer para cumprir com a obrigação. Após ter-se adquirido a consciência da disciplina não é difícil um lutador do povo manter a disciplina, faz de forma natural pois esta já se tornou parte de seu caráter. Difícil neste caso é deixar de ser disciplinado. O tormento maior é não falhar, não esquecer do compromisso e estar sempre preocupado com a contagem regressiva do tempo em que se realizará a ação.
A disciplina também fortalece a convicção de respeito e do compromisso com os demais membros da organização e da sociedade.”
A ala conservadora parecia se surpreender com a acusação de que as suas decisões eram baseadas em afinidade pessoal. Foi tratada como ultrajante a acusação de que prioridades eram tomadas em razão de os envolvidos serem colegas ou amigos. Também era considerada inconcebível a possibilidade de que teriam desavenças ou inimizades e que isso afetaria seu julgamento.
Se as pessoas presentes nos espaços de decisão não tiverem estudado os problemas que avaliarão profundamente, seria compreensível uma tendência a se referenciarem em quem parece dominar melhor o tema. Esses, por sua vez, precisariam dispor de mais tempo, tanto para estudar o tema proposto, como para participar do próprio processo de decisão. O que estimulava, inclusive, contatos privados com pessoas tidas como referência.
Em caso de dissidências de opiniões, isso era tratado através de argumentações orais, muitas vezes embasadas na própria experiência que a pessoa afirmava ter. Os autores da tradição marxista-leninista, os poucos lembrados, eram usados como se citassem profetas. Se o profeta tivesse afirmado que uma parede seria pintada de azul, estaria ganho o argumento a menos que alguém soubesse do profeta falando em pintar de outra cor. Independia muitas vezes o contexto, ou se o problema era sequer sobre pintar paredes.
De forma semelhante, as normas e regras eram interpretadas de forma flexível quando convenientes e absolutamente rígidas, se fosse necessário para a facção dirigente. Em alguns momentos, tive a sensação de estar em disputas judiciais internas em que um documento era barrado por alguma formalidade: o título não era adequado, alguma palavra usada era incorreta. Descartava-se o pedido em nome da correção. Descartava-se o conteúdo pela forma.
Se o acesso ao que, como e porquê fazer algo ficam restritos a uma minoria de indivíduos que conseguem resistir as próprias condições impostas pela estrutura para permanecer nela, é evidente que essas pessoas se tornarão polos de influência.
Esses polos de influencia podem por sua vez usufruir da máquina partidária para atingir seus interesses e objetivos. Não foram poucas as vezes que vi lideranças quebrando as regras do coletivo abertamente, quanto mais alta a hierarquia, maior a flexibilização. Ainda que, formalmente, era comum os membros terem o mesmo tempo para falar sobre um tema, era mais difícil pedir para um dirigente que encerrasse a sua fala em caso de exceder o limite. Ou que retornasse ao tema, caso fugisse. Em alguns casos, poderiam ser considerado inclusive uma desavença pessoal.
Ao mesmo tempo, membros recém chegados poderiam ser mais facilmente censurados por fugir do tema, ou acusados de estarem atrapalhado o funcionamento do espaço. Mesmo o funcionamento e as tarefas de uma reunião tinham a metodologia passada de forma oral, muitas vezes aprendida por experiência e contato com pessoas que militavam a mais tempo na organização.
No caso de denúncias contra a facção dirigente, essas eram engavetadas como se fossem fruto de uma mesquinhez de caráter pessoal. No próprio estatuto, a única investigação possível era chamada de processo disciplinar, amarrado em burocracia e amadorismo. Levavam meses avaliando longos processos com várias etapas que eram burladas ou ignoradas dependendo do desejo da facção dirigente.
Em minha região de atuação, levaram mais de 8 meses para construir um caso com sustentação em cima de tweets (textos em mídias sociais) e uma delação premiada para tentar expulsar seus adversários políticos. A acusação era a de que estariam formando um agrupamento contrário ao coletivo, o que chamavam na época de tendência. Não conseguiram.
Horas e mais horas gastas em um processo interno espúrio e nem para fazer cumprir suas intenções conseguiriam. Parecia que a própria lentidão e desgaste era a arma sendo usada. Uma faca sem cabo que dilacerava o esfaqueado e o esfaqueador. Normalmente, funcionava mais expulsando as pessoas pelo próprio peso do processo do que pelo resultado.
Muitas vezes, os envolvidos poderiam ser as vítimas de acusações envolvendo opressões. Não entrarei no mérito de certas violações, em respeito às vítimas envolvidas. Somente gostaria de refletir a responsabilidade de uma pessoa que tem o poder de impedir que questões como essas se repitam. Ao menos diminuir a possibilidade de que ocorra novamente.
Não sei se todos tinham consciência desse processo. Pode ser que achassem que aquilo, de alguma forma, os redimiria. Se o mal fosse feito com dor e pesar, isso deixaria de ser injusto. Se, ao permitir uma violência de opressão dentro de um coletivo, eu tiver feito isso por estar emocionalmente ferido, mudaria o conteúdo da violência. Não vejo dessa forma, porém não tenho interesse em discutir sobre ética aqui.
No estatuto do coletivo, as únicas formas de deixar a organização seriam pela categoria que chamavam de expulsão, ou a deixando de forma voluntária. Essa expulsão era usada tanto para casos de acusações triviais, como desrespeitar os ritos internos, não comparecer a reuniões ou faltar em tarefas. Também era usada em ações previstas até mesmo o código penal burguês brasileiro.
No partido com paredes de vidro da ala conservadora, a ordem é mais importante que a justiça. Lembrei-me do reverendo estadunidense Martin Luther King Jr.:
“Devo fazer duas confissões honestas a vocês, meus irmãos cristãos e judeus. Em primeiro lugar, devo confessar que ao longo dos últimos anos tenho estado gravemente desapontado com os moderados brancos. Quase cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo do Negro no seu caminho para a liberdade não é o Conselheiro do Cidadão Branco ou o Ku Klux Klanner, mas o branco moderado, que é mais devotado à “ordem” do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que é a presença da justiça; que diz constantemente: “Concordo contigo no objetivo que procuras, mas não posso concordar com os teus métodos de ação direta”; que acredita paternalistamente que pode definir o cronograma para a liberdade de outro homem; que vive de acordo com um conceito mítico de tempo e que constantemente aconselha o negro a esperar por uma “época mais conveniente”. A compreensão superficial por parte de pessoas de boa vontade é mais frustrante do que a incompreensão absoluta por parte de pessoas de má vontade. A aceitação morna é muito mais desconcertante do que a rejeição total.”
O reverendo se refere aos liberais brancos estadunidenses e seu falso apoio à real mudança da realidade. Até podem concordar com os objetivos quando são colocados de forma difusa, porém tem receios com relação ao caos que pode gerar esse processo. Mais importante que o conteúdo da mudança é a forma dela. Do que adiantaria ser livre se não for com a alma pura?
Se eu vejo uma injustiça ocorrendo em minha frente, mas priorizo a ausência de tensão do que a resolução do problema, o que eu sou? Se a tendência da estrutura é estimular esse tipo de comportamento, o que ela reproduz? Para um autor referenciado pela ala conservadora, seria um partido comunista capaz de mudar um país com mais de 200 milhões de habitantes.
Se isso acontece a partir de pessoas com o coração pesado, entristecido, com sofrimento, o que muda?
Notava como havia uma espécie de discurso de valorização do próprio sofrimento. O sacrifício do corpo pela redenção da alma. Uma pessoa sofrer em uma tarefa era considerado não somente tolerável, mas expiatório. Uma espécie de autoflagelamento como espetáculo. Uma meritocracia da derrota.
Quando questionados sobre o porquê de os avanços estarem sendo protelados, a facção dirigente se desculpava pelos atrasos e afirmava não ter tido condições de executar o planejado. Não poucas vezes, a sequer ter um planejamento. Confundiam-se as arbitrariedades da sua vontade com uma incapacidade de realizar as tarefas. O que não era necessariamente de má fé, dado que a própria quantidade de tarefas e o tempo que elas demandavam exigia uma priorização.
Enquanto isso, nós seguíamos em outras frentes, tentando melhorar aonde podíamos, expandir nossa atuação e a qualidade dela. Isso também era interpretado como uma dissidência.
Vi essas experiências refletidas nesse trecho do Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária:
“Essa oscilação e a indefinição de um plano tático independente impedia, naturalmente, a unificação do trabalho de massas em escala nacional sob uma orientação comum, com palavras de ordem comuns, dentro de um plano comum de organização e profissionalização do trabalho de massas. Nesse período, como regra, o enraizamento em meio às ocupações urbanas e rurais e a ampliação do trabalho político nos bairros periféricos se deram pelo esforço e espírito de iniciativa das bases, em especial as mais jovens, e em contraste com a completa ausência de um planejamento geral das direções. Essa oscilação e a indefinição de um plano tático independente impedia, naturalmente, a unificação do trabalho de massas em escala nacional sob uma orientação comum, com palavras de ordem comuns, dentro de um plano comum de organização e profissionalização do trabalho de massas. Nesse período, como regra, o enraizamento em meio às ocupações urbanas e rurais e a ampliação do trabalho político nos bairros periféricos se deram pelo esforço e espírito de iniciativa das bases, em especial as mais jovens, e em contraste com a completa ausência de um planejamento geral das direções.“
Com critérios pouco claros, e muitas vezes, as próprias pessoas realizando essas tarefas em sobrecarga e em fragilidade emocional, as próprias decisões a se expressavam por hábitos e afinidades pessoais. Eu me perguntava se sequer reconheciam o que estava à sua frente.
Levar horas e mais horas realizando tarefas era considerado meritoso. Se fosse em horário insalubre ou com equipamento precário, era de alguma forma mais nobre. Quanto mais difícil e cansativa fosse mantida a tarefa, mais virtuosa seria a pessoa que a realizasse. O que poderia ser, inclusive, acesso a certo poder.
Mimercofaga: A mortificação como sendo nobre e a saúde ou até mesmo a efetividade como sendo de menor valor.
Boto Vermelho: Por exemplo, redigir uma ata era considerado maçante de forma majoritária, porém permitia aos redatores selecionarem, conscientemente ou não, partes de interesse do que estava sendo redigido. No entanto, a própria sugestão dessa possibilidade era descartada sob argumentos de que era muito trabalhoso fazer isso ativamente. Para assegurar a imparcialidade do processo, poderia ser oferecido à pessoa questionadora o trabalho de registro. Que, por sua vez, poderia aceitar e se cansar tentando registrar de forma precisa o escrito, agora sob o escrutínio da facção dirigente.
Eu me surpreendia por não se unirem para tornar o processo menos cansativo. Menos maçante. Pesquisássemos como melhorar a própria tarefa para que levasse menos tempo e fosse mais acessível. Formássemos as pessoas para poder participar com melhor qualidade. Ainda que nossas tentativas fossem bem recebidas em meu espaço de atuação, os dirigentes se incomodavam. Agiam desconfiados e questionavam se essas novas formas não poderiam serem usadas para fins persecutórios. Demonstrei como havia diversas formas de minar essa possibilidade, porém insistiram no tema.
Eu não entendia como a primeira resposta para possíveis soluções que tínhamos era da possibilidade de usar para ferir os membros do coletivo. Mais à frente, entenderia que era assim que usavam seus próprios processos, como dificultar que as pessoas façam contra elas o que já faziam contra seus adversários. E eles não aperfeiçoavam nem isso.
Parecia que o sofrimento era um custo associado ao poder. Se uma pessoa estava em múltiplas partes do coletivo em simultâneo e, portanto, sobrecarregado com diversas cargas horárias em simultâneo, podia ter acesso a mais decisões, partes do aparelho burocrático e, consequentemente, influência.
Lembrei do intelectual brasileiro Jones Manoel em seu texto Marxismo ocidental, fetiche pela derrota e a cultura cristã (2020).
“[...]Outro elemento muito comum é tratar o sofrimento e a miséria como elemento de superioridade. Então, note: é muito comum na cultura de esquerda do ocidente apoiar o martírio, a dor. Então, todo mundo gosta hoje de Salvador Allende. Por quê? Salvador Allende é uma vítima, é um mártir. Ele foi assassinado num golpe de estado do Pinochet. Hugo Chávez, quando estava vivo, vários e vários setores da esquerda torciam o nariz para Hugo Chávez. Se ele tivesse sido morto, por exemplo, na tentativa de golpe de estado, em 2002, Hugo Chávez também seria adorado pela imensa maioria, a quase totalidade da esquerda, né? Como símbolo de sofrimento, de martírio. [...]
Então, todo mundo na esquerda internacional, na esquerda brasileira, gosta da Palestina. Inclusive, têm verdadeiros gozos com aquelas imagens que eu acho horrível, que eu não acho um negócio que é fantástico, que é uma criança ou um adulto com uma pedra enfrentando um tanque. Ou então com aqueles instrumentos para jogar uma pedra enfrentando um tanque. Veja, isso é um instante de heroísmo, é claro, mas isso é sobretudo um sinal de barbárie. É um povo que não tem capacidade de se defender porque está enfrentando um estado colonialista armado até os dentes. Ele não tem capacidade igual de resistência, mas isso é romantizado. Então, se gosta da situação de opressão, a opressão, o sofrimento, o martírio.”
O pensador elabora sobre mais sobre a relação entre a cultura do cristianismo europeu ocidental e ao que chamo de esquerda centrada no norte global, mais à frente. Pretendo conversar com essas elaborações nos capítulos seguintes.
Acho que aqui voltamos, inclusive, ao desvio 1 do professor Ademar Bogos: confundir instrumento e objetivo. A pedra arremessada contra o tanque, e não o objetivo da libertação palestina, e, por sua vez, da própria espécie humana, se torna o foco.
Como Faris Odeh lutando contra o genocídio de seu povo. O ato heroico de sua resistência é exaltado, não por melhorar a própria condição do herói, de sua comunidade, de seu povo ou de sua classe, mas por ser um martírio. A violência continua: a criança foi assassinada dias depois. A luta continua, quem está fazendo isso para ir além das pedras contra os tanques? Para que nenhuma criança ou adulto precise passar por isso novamente?
O que estão fazendo os marxistas-leninistas de lá? Por exemplo, a Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP)? Como eles se organizam? Como conseguem lidar com uma situação tão precária? Estaríamos mais próximos de Lisboa ou de Gaza? As pessoas que precisamos para construir esse coletivo vivem em condições mais próximas de um europeu ou de um palestino? Eu teria algo interessante para aprender com essas pessoas?
Em vez de fazerem essas perguntas, poderiam avaliar quão puro era o seu marxismo. Quão aderente ao que entendiam como as normas de sua doutrina. No caso dos processos, confundiam o instrumento com o objetivo. Qual era o critério para a realização de uma tarefa? Para alguns, parecia que era sofrer fazendo ela mais do que resolver o próprio problema.
A dor pode fazer parte do processo, porém não é o objetivo. Fazemos o que é necessário hoje, pensando em como melhorar, a partir de hoje, o futuro. Se podemos realizar o objetivo com melhor qualidade e com menos esforço, não poderíamos fazer mais em menos tempo? Ou ainda, ter mais tempo para nossas vidas fora da organização? Existe vida fora do templo com paredes de vidro?
Mimercofaga: Talvez seja necessário jogar pedras nessa estrutura tão frágil e quebradiça...
Boto Vermelho: Pretendo elaborar sobre certas dinâmicas que eram estabelecidas com membros novos e egressos do coletivo nos capítulos seguintes.
Se alguém do coletivo é submetido a um trabalho em condições precárias, não entendo isso como mérito próprio mais do que uma falha da própria organização. Se é necessário hoje fazermos dessa forma, como podemos amanhã fazer algo melhor? O sacrifício de hoje é para que não haja mais mártires amanhã. Que as pessoas heroicas não precisem morrer para serem reconhecidas.
Se eu vejo alguém levando a mesma pedra ao topo da mesma montanha pelo mesmo tempo e da mesma forma diariamente, ela pode estar sendo torturada. Quem a submete a isso? Seria quem vê isso, e é complacente, cúmplice? Se essa pessoa se voltar contra seus torturadores, não é justa a rebelião?
Mimercofaga: Sísifo feliz não seria aquele que derruba a pedra contra o deus que o submeteu a essa punição para nunca mais ter de subir a maldita montanha?
Boto Vermelho: Formamos as próximas gerações de membros do coletivo para que elas não levem tanto tempo resolvendo os mesmos problemas. Se levei anos para entender razoavelmente um tema, não seria melhor que a próxima geração levasse menos tempo? Até para que possam alcançar problemas novos que não conseguimos. Desenvolvermos nosso arsenal do conhecimento coletivo para que a cada nova leva de membros o processo de formação seja mais rápido para irmos mais longe.
Nós próprios não poderíamos crescer muito mais, se tivermos como fazer nosso trabalho melhor? Vocês já tentaram dar férias para um membro dedicado do coletivo? Para minha preocupação, raramente vi realmente tirarem férias: quando entram em um período de férias, vão pesquisar e repensar sua atuação, como podem melhorar e onde estamos deixando a guarda aberta.
A transformação que o coletivo faz com essas pessoas pode ser também benéfica para elas próprias. As normas, se são feitas por essas pessoas, podem atender à realidade dessas pessoas. Se há desobediência à organização que essas pessoas decidiram por si próprias, há algo que precisa ser consertado. Seja no processo de recrutamento, no processo de formação, no processo de democracia interna para estabelecer essas normas, para estabelecer quem aplica as normas ou ainda para como é fiscalizada sua aplicação. Muitas vezes, essas questões estão interligadas entre si e se retroalimentando.
Pretendo elaborar sobre disciplina, a crítica e autocrítica nos capítulos seguintes.
1.3.7 - Desvio 8
“3.8 – Ignorar os valores culturais do povo
Existem muitos princípios científicos corretamente aplicados na realidade. Existem verdades já descobertas na convivência social que é perda de tempo discutir se são corretos ou não, e existem valores culturais de um povo ou apenas de grupos sociais, que embora parecendo “infantis” sobrevivem ao longo do tempo.
O materialismo dialético e histórico nada mais é do que a ciência da história em desenvolvimento. Significa dizer que o marxismo é uma ciência inesgotável que se “alimenta” da própria realidade para se desenvolver.
Vendo desta forma, o conhecimento somente será verdadeiro se partir sempre da realidade, buscando extrair dela os próprios elementos para a sua própria transformação. Portanto, condição objetiva da realidade não é apenas a parte do desenvolvimento das forças materiais, mas mesmo os elementos subjetivos se tornam objetivos quando deles depende a transformação da realidade. Por isso o materialismo não é sinônimo de afastamento da cultura, da religião, da arte, da língua e dos costumes. Tudo isto faz parte da vida objetiva da sociedade, elas estarão juntas no processo de transformação.
Pode-se, com o decorrer do tempo ir agregando aspectos científicos, mas isto somente se conseguirá através da elevação do nível de consciência da sociedade.
No trabalho de base é fundamental compreender no que o povo acredita e porque acredita. Respeitar seus símbolos, crenças, valores e buscar através da reflexão dar-lhes novo conteúdo.”
Se essa estrutura organizativa se beneficiava e estimulava certos perfis em detrimentos de outros, seria de se esperar que se houvesse um esforço ativo de mudar essa estrutura para acolher e estimular outros perfis, desde que se tenha o objetivo de crescer a organização e abarcar mais pessoas, assim como as manter por mais tempo para que possam aprofundar sua formação. Parece-me que manter os olhos fechados para a avaliação estrutural expressaria conservadorismo nas decisões e, consequentemente, a própria reprodução das tendências externas ao coletivo.
Seria possível, ainda que nenhum dos particulares de um processo se reconhecessem expressando uma opressão, que a sua expressão comum resultasse em violências opressivas? Se isso fosse verdade, qual o critério para saber se um coletivo poderia expressar racismo, misoginia, capacitismo, lgbtfobia ou outras opressões? O que a prática nos mostra?
Participei de uma reunião entre lideranças em que se afirmou que não existia racismo dentro do coletivo. Essa afirmação era feita enquanto se construía um caso espúrio contra um militante negro, de que seria uma espécie de predador compulsivo de mulheres, uma ameaça constante à integridade de militantes do gênero feminino.
A sustentação da acusação? Uma delação premiada de outro militante branco que, ao ser acusado de assédio contra uma ex-militante de outra organização que estava alcoolizada e ter sido denunciado no local público pelos antigos companheiros de coletivo da vítima, buscou a proteção da facção dominante em troca de entregar seus antigos colegas de críticas dentro da organização. O que o delator apresentava como justificativa foi a referência a uma piada tirada de um filme chamado Deadpool.
A própria delação afirmava que a piada havia sido corrigida. Nem ela e nem eu voltaríamos a ouvir esse tipo de comentário depois da repreensão. Além disso, o comportamento do acusado em nada sustentava o afirmado. Ainda assim, a delação era tratada como apenas um rapaz desviado do bom caminho, enquanto o acusado, além de tudo, era um corruptor de boas almas.
Nessa mesma reunião, descobri que a própria ex-militante tinha cometido o erro de tentar entrar no coletivo que eu atuava. O caso construído contra ela era de que teria interesses escusos demonstrados por sua instabilidade mental e comportamentos promíscuos gerados pela sua não-monogamia. Suas queixas contra a lentidão da burocracia da organização, assim como o tratamento dado pela mesma em ser recrutada por outra pessoa com quem tinha tido relações no passado, eram provas de sua malícia.
A delação premiada seria inocentada. A mulher acusada de ser louca e lasciva e o negro violento seriam condenados. Eu fiquei horrorizado com o que via. Ainda que aquelas pessoas acreditassem estarem praticando uma ação justa, não lhes incomodava o fato de só conseguirem aquilo de prova? Se fossem verdadeiras as acusações de que uma teria mentido sobre a acusação de assédio e o outro realmente era uma ameaça para pessoas do gênero feminino, não tinham interesse entender o que aconteceu para evitar no futuro?
Não houve um aprofundamento das investigações para além disso. Mesmo as punições foram pequenas para o que estavam sendo acusados. Parecia que a própria morosidade e falta de preparo do processo era a punição. Presenciei destruições de reputações enquanto os processos eram mencionados como graves em debates, porém seus teores não eram discorridos por um suposto respeito à privacidade dos envolvidos. Quase como uma cartada que se colocava em cima da mesa sempre que achavam que o debate estava deslizando contra o seu favor. A cartada era colocada no debate como uma vírgula, quem se interessasse por saber mais era desencorajado. Tanto os acusados quanto os acusadores eram cerceados de tratar do tema com detalhes.
Parecia ser útil para a facção dirigente fechar os olhos para as violências de opressões. Mais fácil do que construir um caso sólido e um plano de ação com objetivos a serem alcançados em um prazo, era permitir a construção de casos espúrios flutuando em cima de preconceitos e da expressão dessas violências. Mais fácil do que uma avaliação histórica e comunal do que permitia aquilo, era individualizar essas questões em vilões desequilibrados emocionalmente.
Dentro da própria organização, a denúncia parecia que só tinha pertinência se fosse na perseguição do que consideravam dissidentes. Eram tratados com um sigilo dentro da facção dirigente e a sua própria incapacidade de investigar ou avaliar o que fora apurado era usada como justificativa para o não avanço dos casos.
Parte das redes de apoio eram tratadas por fora da estrutura organizativa. Uma pessoa ou outra comentava que uma certa figura tinha comportamentos estranhos. Que outra tinha saído por denúncias graves. Havia um clima de que todos sabiam do fato, só que ninguém podia comentar. Era danoso expor as falhas do coletivo, mesmo para os membros do coletivo.
Essa harmonia com paredes de vidro parecia quebrar, não quando uma violência era cometida contra uma vítima, mas quando a denúncia do ocorrido era publicizada internamente. A própria lentidão dos processos podia implicar em algoz e violentado serem colocados para atuar juntos. Solicitar uma mudança em uma organização que já tem dificuldades de priorizar suas tarefas parecia um ataque da pessoa ferida contra a estrutura.
Questionamentos quanto à reiteração da violência e algumas vezes até mesmo a própria denúncia, eram entendidos como um atrito pessoal. Uma desavença com a pessoa acusada. E ataques a pessoas da facção dirigente eram entendidos como atentados contra o próprio coletivo. Ainda que todos concordassem que nossa sociedade seja permeada dessas opressões, a organização não seria afetada por essas tendências. Parecia que sua harmonia vibrava em outra frequência, talvez uma em que a própria ala conservadora, assim como a própria teoria organizativa e prática das normas, estaria acima das contradições estruturais.
Parecia que seu entendimento da negação de um fenômeno era uma negação absoluta. Se há racismo fora da organização, não haveria racismo dentro da organização. Ainda que se afirmasse que era estrutural fora da organização, não haveria misoginia dentro. Não haveria capacitismo. Não haveria transfobia ou lgbtfobia.
Ainda que se afirme que a própria estrutura expressada nos membros em particular somente reproduza essas violências por conta de tendências externas, é evidente a necessidade de um esforço ativo para gerar contratendências.
Como se pode atuar na correta resolução de uma questão, se não se consegue investigar o problema? Se não há, inclusive, estudos de como cada parte do coletivo lida com essas opressões, pode-se permitir que isso seja reiterado até a normalização como prática, apenas envernizado com uma forma marxista-leninista.
Voltando à questão da denúncia contra a harmonia imposta. Mesmo que não precisassem construir um clima de hostilidade contra o denunciado, o próprio prolongamento para se resolver as questões levava a um acolhimento do acusado e afastamento de quem fizesse a denúncia. As vítimas recorriam, muitas vezes, às partes do coletivo compartimentadas pelo combate às opressões.
Na estrutura anterior, entendia-se que o coletivo estaria dividido em partes com diferentes relações hierárquicas. Presenciei situações semelhantes às descritas no Manifesto Em Defesa Da Reconstrução Revolucionária do PCB:
“Em paralelo, internamente, a Comissão Política Nacional do CC buscou impedir a reeleição de camaradas da Coordenação Nacional da UJC com a diminuição da idade máxima para a participação na UJC. A perseguição foi rechaçada parcialmente e a intervenção na UJC não conseguiu impor a nova linha – em flagrante desacordo com o XVI Congresso – no próprio IX Congresso da UJC. Esse episódio, evidentemente, foi apenas um entre dezenas de boicotes ao trabalho da UJC e dos coletivos partidários.
Na prática, os coletivos partidários estão sendo construídos apesar de determinadas direções partidárias a nível nacional e estadual. Não adianta termos coletivos que tentem expressar e abarcar as contradições de classe, gênero e raça, se eles são secundarizados na vida partidária. Ao não serem vistos como tarefas da organização, militantes que estão nos coletivos, em geral, têm múltiplas tarefas de militância entre células, direções, coletivos e trabalhos nas bases. Essa sobrecarga da militância inserida nos coletivos não deixa de ser uma expressão das contradições da divisão sexual e racial do trabalho em nossa organização.”
Antes da cisão, um militante que construía um excelente trabalho me relatou o porquê de se desgastar mantendo uma atuação em múltiplas partes do coletivo ainda que sofresse o que eu considerava perseguições: ele contou, que, ao menos no coletivo de luta antirracista, ele poderia relatar as violências que sofria e escutar às dos demais membros de outras partes do coletivo. Lá, eles se acolhiam e se amparavam. Isso renovava suas forças para continuar atuando, mesmo com a sobrecarga e as desmoralizações. Em sua visão, o coletivo antirracista funcionava quase como um quilombo. Foi a partir desse coletivo que tive acesso ao meu primeiro livro do professor Clóvis Moura, pelo que sou grato. Nos próximos capítulos, pretendo elaborar mais sobre o que aprendi com esse autor e esse membro do coletivo.
Ao mesmo tempo, ele relatava que não podia atuar naquele espaço, porque o coletivo não tinha poder de decisão no que ocorria. Suas ações externas eram, quando não ignoradas de apoio, paralisadas pelas direções sob pretextos de avaliações mais profundas da decisão tomada.
Após meses na organização, soube, durante um julgamento, que a origem das desconfianças para o atual grupo de acusados partiria de uma carta de desligamento de um militante negro. Em sua carta, o militante relatava diversas violências cometidas contra sua pessoa e as questões que levaram a sua saída. O coletivo negro da região divulgou o documento. Foram retaliados.
A carta foi proibida de ser compartilhada e aqueles que burlassem essas regras se tornaram alvos de escrutínio. Não me apresentaram o documento enquanto o resumiam como fruto de desavenças pessoais e comportamentos problemáticos. O desligamento havia ocorrido próximo à minha data de ingresso e até aquele momento eu não fazia ideia de sua existência, porém me incomodava a rapidez com que descartavam a possibilidade de haverem ocorrido expressões de violência racial.
A sensação era de que os coletivos contra opressões que fizessem muito barulho, ou acolhessem dissidentes, poderiam sofrer retaliações da ala conservadora.
Próximo ao processo de cisão entre as alas, a parte conservadora da região intensificou sua interferência no coletivo contra à lgbtfobia. Os membros mais presentes foram se desmoralizando. Tentaram gerar insegurança com relação à uma liderança eleita que perguntava demais. Afirmavam que essa pessoa não teria capacidades emocionais de estar na posição em que estava.
Não era a primeira vez que, após ingerências da facção dirigente, uma organização que normalmente já possuía dificuldades para se movimentar, era levada a quedas de presença nos coletivos. Espaços de atuação que antes conseguiam realizar diversas tarefas deixavam de conseguir o básico. A memória sendo oral e retida somente nessas pessoas era perdida. Volta-se ao zero. Pretendo elaborar mais sobre o tema do fluxo de informações e sua memória nos capítulos seguintes.
Capivara Tabagista:
“E eu demorei anos
Pra escrever isso aqui
Mas foi tudo num dia
Que eu escrevi isso aqui
E eu, demorei anos pra entender isso aqui
Mas se o Froid rimar primeiro
Você não vai ouvir isso aqui!” Djonga em “A pior Música do Ano”
Demoramos anos para construir trabalhos que foram destruídos através do apagamento sistemático desses avanços e expulsão dos militantes que os produziam. Depois de anos alimentando o Leviatã e sobrevivendo às suas arbitrariedades enquanto construíamos a crítica pelo positivo e juntávamos forças para resistir às opressões, eventualmente fomos capazes de transformar a teoria em prática revolucionária para transformar nossa militância em ação consequente. Escrevemos manifesto, tribunas, desenvolvemos formações e fizemos debates: tudo aquilo que nos era proibido pela ala conservadora. Levamos demasiado tempo para compreender mais a fundo as contradições que nos trouxeram ao contexto onde nos encontramos hoje. Mas ainda damos mais relevância à voz de alguns, que à de outros. Ainda há aqueles a quem é reservado o direito de falar primeiro, o que faz com que a maioria não ouça o que todos têm a dizer. Não à toa, soterradas entre dezenas de tribunas que são publicadas mês a mês, há várias, muito menos discutidas do que aquelas que se propõem a debater as questões que chamam mais atenção nas redes sociais, denunciando um panorama cada dia mais alarmante de quebras, afastamentos e desligamentos, principalmente entre militantes não brancos, do gênero feminino, e LGBTIAP+.
Boto Vermelho:
Gostaria de realizar uma reflexão a partir do revolucionário estadunidense Fred Hampton:
“E nós entendemos. Vocês sabem, muitas pessoas se irritam com o Partido porque o falamos sobre uma luta de classes. E as pessoas que se irritam com isso são oportunistas, covardes e individualistas,e qualquer coisa que não revolucionários. E eles se utilizam dessas coisas como desculpas para justificar e invocar um álibi e para bonificar sua falta de participação na luta revolucionária real. Então dizem: ‘bem, eu não posso entrar no Partido porque os Panteras estão absortos lidando com radicais do país opressor, ou pessoas brancas, ou alemães ou o que quer que seja. Eles dizem que essas são algumas das desculpas que eu uso para negar o motivo pelo qual realmente não estou na luta’.
[...]Nós nunca negamos o fato deque há racismo na América, mas dissemos que o subproduto, o que decorre do capitalismo, resulta ser o racismo. Que o capitalismo vem primeiro e depois vem o racismo. Que quando eles trouxeram escravos para cá, o fizeram para ganhar dinheiro. Então, primeiro veio a ideia de que queriam fazer dinheiro, então os escravos vieram com esse objetivo. Isso significa que o capitalismo tinha que[vir antes]; em termos históricos, o racismo tinha que vir do capitalismo. Tinha que haver o capitalismo primeiro e o racismo foi um subproduto deste.
Qualquer um que não admita isso está mostrando, por meio de sua não admissão e sua não participação na luta, que não é nada de uma pessoa incapaz de estabelecer um compromisso; e que a única coisa que está em jogo, para ela, é a educação que recebe nessas instituições – educação suficiente para ensiná-la alguns álibis e ensiná-la que tem que ser negro e tem que mudar seu nome. E isso é maluco.”
O contexto do texto é de que estava acontecendo um julgamento contra membros do Partido para Autodefesa dos Panteras Negras, e Fred Hampton denunciava o fato, enquanto criticava a postura de militantes e representantes populares do campo contrário ao Estado burguês estadunidense.
Achei interessante como, ainda que considerando o contexto da classe trabalhadora estadunidense, o seu discurso me fez refletir sobre a relação das constantes denúncias e a morosidade para resolver as questões envolvendo opressões. A forma como eram abafadas e esquecidas quando conveniente, ou tomavam focos táticos relacionados a disputas internas.
No desvio 8, o professor Ademar Bogos fala sobre respeitar os valores e crenças do povo. Para o que acredito ser a principal base de atuação do MST, seriam talvez pessoas ligadas à produção agrícola. Pode-se pensar em quais superstições e crenças estariam relacionadas a essa compreensão de mundo.
Se as bases de atuação de um coletivo fossem relacionadas a outros perfis, pode ser que outras crenças seriam esperadas. Para lidar com essas questões, o professor recomenda usar o conhecimento. Esse conhecimento somente seria possível a partir da realidade e extraindo dela as próprias determinações para a superação dessas questões. Uma negação dialética, em que partes do primeiro negado, assim como partes segundo negado, fariam parte de um novo estado. Esse novo estado, por sua vez, não se congela, mas é negado continuamente por novas intervenções. A prática dessas superstições poderia ser trabalhada para ser transformada em conhecimento ao longo do tempo.
Se não temos o devido estudo de como expressamos essas opressões internamente, corremos o risco de expressar essas crenças. Esse risco é agravado em situações de sobrecarga e vulnerabilidade de saúde. Isso poderia, inclusive, interferir no processo de democracia interna se o critério para as eleições for o carisma dos envolvidos. Se o critério para resolução de debates for em cima de abstrações teóricas, coalhadas de manipulações retóricas, seria possível, inclusive, se utilizar desse tipo de valores para estimular decisões.
Os próprios mecanismos para negação do problema poderiam estar inapropriados para resolver o que se propunham. Tratando como uma negação absoluta, quem insistisse que a questão era dialética poderia ser tratado como uma pessoa problemática.
Parecia que, em um coletivo com paredes de vidro, falar sobre uma opressão ocorrida dentro da organização irritava a facção dirigente. Fazia-me, inclusive, refletir se eu estaria nessa luta. Se não estaria utilizando de justificativas para a própria incompetência de minhas ações dentro da organização.
No discurso de Fred Hampton, há uma crítica contundente a essas figuras que ele descreve como pessoas incapazes de estabelecer um compromisso. Seu único objetivo seria buscar uma educação em instituições. Sua expressão da transformação se limitaria à aparência. Como se a forma determinasse o próprio conteúdo. Lembrei-me de uma referência prussiana que talvez risse com a possibilidade de que um pudim quando chamado de torta, deixaria de ser pudim para se tornar torta.
Se o combate às opressões se dá somente no campo das aparências, corremos o risco de estimular, não o conhecimento, mas que o conteúdo dessas crenças se expresse de formas diferentes. Pretendo elaborar mais sobre isso nos capítulos seguintes.
Durante o processo de cisão, às partes do coletivo concentradas na luta contra opressões foi negado o direito à participação das decisões da parte hierarquicamente acima do coletivo, parte essa que chamavam de partido. A ala transformadora parecia ter sido respaldada em suas denúncias de que faltava comprometimento com essas questões das direções.
Na minha região de atuação, os números a que tive acesso indicavam que a maioria dos que resistiriam às sabotagens consecutivas da facção dirigente dentro dos coletivos se moveu a favor da transformação. Nas tragicomédias desse processo, usaram o maquinário do coletivo para expulsar os membros dos coletivos contra opressões e de jovens. Circulava uma pergunta: se a maior parte dos jovens, negros, feministas, lgbts+ e os trabalhadores relacionados aos sindicatos havia sido expulsa, quais eram os perfis que restavam?
Para o Manifesto do PCB-RR:
“A despeito de seu menosprezo pelos obreiristas, a fração academicista antileninista estabeleceu com eles uma aliança tática em questões de organização, em nome do combate à linha dura antiacademicista da ala esquerda. De fato, a recente recomposição da Comissão Política Nacional do Comitê Central do PCB, em julho de 2023, marca a vitória dessa tática da fração academicista antileninista que, apoiando-se na ala mais à direita para esmagar a ala esquerda, colheu os espólios da fragilização de alguns quadros centristas e avançou nas nomeações para a CPN.
Ao longo desse processo, a ala direita partidária conformou-se como um bloco constituído principalmente por essas frações academicista e obreirista, que têm na prática perdido o horizonte revolucionário e se conformado dentro da estrutura sob práticas burocratizadas, buscando manter-se na direção a todo custo. Essa aliança tática se deu sob a égide daquilo que há muito tempo denominamos “pecebismo”: o chauvinismo partidário acrítico, o espírito de seita, na contramão do profundo espírito autocrítico que marca a Reconstrução Revolucionária.“
Essa aliança pela ordem vigente teria sido feita entre os obreiristas e os academicistas. Estariam dispostos a colocar suas diferenças de lado e manter seu controle das normas e cargos do coletivo.
Tive mais contato com membros atuando nas universidades. Não entrarei no mérito das posturas individuais que vi serem normalizadas nesse espaço. Tenho a esperança de que essas pessoas possam reavaliar seus comportamentos e melhorar. De algumas, espero que o façam o mais longe das pessoas que tenho carinho o possível.
Pretendo elaborar o que acho sobre a necessidade de responsabilização de erros em capítulos futuros.
Na tentativa de tentar entender quais crenças poderiam permear as bases que constituiriam o coletivo no qual ingressei, gostaria da ajuda do artigo “Pesquisa inquietante versus ativismo: como os estudos críticos sobre deficiência podem romper as fronteiras tradicionais da pesquisa?”[12]
“[...]Os estudos críticos sobre deficiência que reconhecem e procuram corrigir as disparidades globais Norte/Sul oferecem um conjunto importante de ferramentas para compreender a situação das meninas e mulheres com deficiência no Vietnam. Utilizamos estudos críticos sobre deficiência como uma abordagem específica para romper discursos monolíticos sobre deficiência no Norte Global e no Sul Global, ao mesmo tempo que abrimos uma plataforma “para pensar, agir, resistir, relacionar-se, comunicar, envolver-se uns com os outros contra as formas hibridizadas de opressão e discriminação que tantas vezes não falam exclusivamente de deficiência” (Goodley 2013, 641).
Para trabalhar com os participantes do Sul Global, adotamos uma abordagem descolonizadora, reconhecendo os impactos das estruturas coloniais na formação da consciência de uma pessoa. Esta abordagem recusa a aplicação de epistemologias ocidentais sobre a distinção entre deficiência e impedimento em uma pesquisa sobre deficiências no Sul Global. Em vez disso, tentamos envolver-nos com as perspectivas do Sul sobre a deficiência através do uso de abordagens críticas às metodologias participativas (Nguyen 2018). Aqui, vemos o colonialismo como uma forma de imperialismo que tem um efeito na “realização da imaginação imperial” sobre si mesmo e sobre o Outro (Smith 1999, 24). Está profundamente enraizado em formas de pensamento sobre a ordem social e a estrutura de poder que regem as relações sociais entre homens e mulheres, entre colonizadores e colonizados, e entre pessoas com e sem deficiência e as suas comunidades.
[...]Refletindo sobre a nossa questão, como os estudos críticos sobre deficiência podem ser mais reflexivos sobre o conhecimento que privilegia formas particulares de conhecimento do Norte Global, argumentamos, juntamente com Akemi Nishida (241), para criar uma possibilidade 'desmantelar a hierarquia de conhecimento estabelecida e mantida pela academia'. Esta hierarquia perpetuou as opressões através das relações de investigação tradicionais entre pessoas com e sem deficiência, entre investigadores e/ou ativistas no Norte Global e no Sul Global. Como estudiosos ativistas, precisamos de “desestabilizar” esta política de inclusão, repensando quem foi incluído e excluído, e de que forma, bem como criando um espaço para descolonizar a deficiência a partir da perspectiva do Sul Global (Nguyen 2018). Historicamente, a academia não incluía nem a deficiência nem o ativismo (Goodley e Moore 2000). Esta política de exclusão privilegiou o conhecimento academico, ao mesmo tempo que perpetua as práticas coloniais e imperialistas que enquadram os estudos ocidentais sobre deficiência (Goodley et al. 2019; Grech 2015; Nguyen 2018).”
Para as pessoas canadenses responsáveis pela pesquisa, existiria em sua universidade uma política de exclusão que privilegiava o conhecimento acadêmico, enquanto reproduzia práticas que chamam de coloniais e imperialistas. Essas práticas abarcariam até mesmo as áreas de estudo sobre deficiências. Como mesmo em uma área de pesquisa voltada para resolver a opressão capacitista poderiam expressar esse tipo de comportamento?
Imagino um modelo educacional e institucional que poderia exigir uma espécie de uniformização de padrão de indivíduo, de tempo de dedicação para uma produtividade exclusiva a esse espaço. Que não se interessa se há limitações em suas condições materiais externas a esse espaço.
A avaliação do valor de uma ação não seria necessariamente se ela determina a realidade da maior parte da população, mas, principalmente, se é reconhecida por outras pessoas submetidas a um processo semelhante. Seus pares. Aonde, à medida em que subissem na hierarquia, menos contato poderiam ter com outros grupos, e normalizariam cada vez mais a própria estrutura, assim como as consequências dela. Inclusive violências.
Parecia semelhante a experiências que tive. Não digo que seria algo que não se perpetuaria em outros coletivos ou instituições, mas que seria também afetado por essas tendências e, se não houvesse uma análise crítica e constantes intervenções, poderia inclusive se expressar de formas entendidas como válidas.
Junto dessa reflexão, citarei mais à frente a tribuna 'Misoginia e machismo no seio da nossa organização' (Célula da Zona Sul – SP) escrita por uma autoria coletiva da Célula da Zona Sul – SP.
Gostaria de saudar essa tribuna três vezes. A primeira pelo esforço de pensarem e apresentarem suas reflexões coletivamente, de realizarem esse trabalho em conjunto em vez de depositar suas esperanças no esforço individual de algumas pessoas. Sem desmerecer os particulares que fizeram tribunas individuais, pois estes também têm seus méritos.
Pergunto-me o porquê de haver tantas obras sendo defendidas por um único nome, se é permitido que mais pessoas possam atuar em pesquisas e reflexões coletivas para produzir uma obra mais robusta. Também me questiono o tipo de tradições que teria uma organização em que seria melhor, por exemplo, 10 textos de qualidade parcial falando sobre o mesmo tema no limite de seus esforços individuais, do que ter um texto de melhor qualidade produzido por 10 pessoas.
A segunda saudação é por fazerem a exigência da autocrítica e da denúncia das práticas misóginas e machistas em nossa organização. Sua avaliação não se limitou à busca de maçãs podres, de violões, mas foi até a exigência de que houvesse um exame apurado das estruturas vigentes. Destacam a importância de que isso seja priorizado e que seja prontamente combatido.
A terceira é uma saudação fraternal de um espaço de atuação com um olhar a partir do sul para o que pode ser outro. Espero que sejamos muitos mais.
“[...]Em exame empírico, observamos com o decorrer do tempo um considerável desbalanceamento no número de desligamentos de membros da militância que pertencem a minorias. Essa conduta por parte de alguns camaradas não só não promove um ambiente propício à permanência dessas camaradas, como também contribui para o aumento dos motivos que levam a sua “quebra”. É dever das instâncias superiores um exame mais profundo sobre as causas desses desligamentos e como superá-las, a fim de tornar o partido um ambiente de acolhimento para essas camaradas e não um fator extra de adoecimento.”
Gostaria de destacar primeiro a exigência direcionada às instâncias superiores à sua. Em um coletivo com sustentações de vidro, a própria cobrança de que assumam a responsabilidade poderia trincar a estrutura. O martelar do conserto não ajuda a fortalecer o coletivo, mas compromete seu funcionamento. A contradição se resolveria pela eliminação absoluta de uma das partes. Salta-se de um suposto ponto de equilíbrio e se busca o próximo ponto mais conveniente. Sob o julgo da ala conservadora, parecia convergir para remoção dos adversários da facção dirigente local. Também existia a possibilidade de que eles próprios se exaurissem emocionalmente no processo. Os problemas estruturais se conservavam.
Entendo do texto que a contradição precisa ser superada para outro estado, que também terá suas contradições e, por sua vez, precisará ser continuamente superada. De um ponto de desequilíbrio para outro. Solicitam o exame. Que as instâncias superiores dediquem parte de seu trabalho para estudar o que está acontecendo em seu espaço de atuação e, imagino, proponham um plano de ação para resolução do problema conjuntamente com o espaço de atuação. Tenho esperança de que essas questões foram corretamente avaliadas.
Durante o contato que tive com o que considero a ala conservadora, solicitei diversas vezes que estudos fossem feitos. Não era priorizado. Ofereci-me para apresentar meus estudos e, após postergações, aceitaram. Ao final de uma longa reunião em que colocaram outras pautas como prioritárias, foram-me permitidos menos de 30 minutos para apresentar algo que, com a participação de diversas pessoas interessadas, leva em média 3 horas.
Não somente isso, tinham feito suas anotações previamente. Algumas questões já seriam explicadas pelo pouco que tinha sido apresentado. Outras seriam respondidas no tempo não permitido. Insistiram que a iniciativa precisava ser descartada. Tinham muitos temores com relação a extrair qualquer melhoria daquela experiência. Nem mesmo a categoria de emulação socialista precisaria ser considerada.
Seria encerrada porque eles próprios fariam os seus estudos para resolver a questão? A prática que observei não indicava para esse sentido. Pergunto-me como poderiam estar tão certos de suas conclusões sem apresentar quais experiências sustentavam essa posição. Pretendo elaborar mais sobre o P.E.T.O.F.E.M mais à frente.
No artigo intitulado “New Life” escrito em 1947, o revolucionário vietnamita Ho Chi Minh escreveu sobre a relação dialética entre o novo e o velho na construção de uma nova sociedade:
“Nem tudo que é velho deve ser abandonado. Não precisamos reinventar tudo. O que é velho, mas ruim, deve ser abandonado. O que é antigo, mas problemático, deve ser corrigido apropriadamente. O que é velho, mas bom, deve ser desenvolvido. O que é novo, mas bom, deve ser feito...
Crescendo na velha sociedade, todos nós carregamos dentro de nós traços mais ou menos ruins da velha sociedade em termos de nossas ideias e hábitos... Hábitos são difíceis de mudar. Aquilo que é bom e novo provavelmente será considerado ruim pelas pessoas porque é estranho para elas. Pelo contrário, aquilo que é mau, mas familiar, é facilmente confundido com normal e aceitável.”
Pretendo elaborar nos capítulos seguintes sobre o que considero um dos princípios basilares da dialética materialista: o princípio do desenvolvimento. Enquanto escrevia, um dos pensadores citados nesse texto teria sido acusado publicamente de abandonar o comunismo ao usar as categorias de determinação e desenvolvimento. Acredito que a ortodoxia do método do materialismo dialético e histórico seja fundamental para a prática do marxismo-leninismo, que entendo como a teoria e a prática mais avançada para alcançar os objetivos pelos quais luto.
Quero acreditar que seja uma minoria que tenha cometido o que considero um desvio de análise. Infelizmente, não tive acesso a estudos sobre. Ainda assim, gostaria de entender melhor como se expressa esse fenômeno. Estou aberto a aprender. Talvez nossas diferenças sejam menores do que imagino. Sou motivado pela questão de que os senhores continuam em paz, enquanto algumas guerras não resultam em saltos qualitativos do coletivo.
Voltando à pesquisa “Pesquisa inquietante versus ativismo: como os estudos críticos sobre deficiência podem romper as fronteiras tradicionais da pesquisa”, achei interessante como destacam a existência de um Norte e um Sul global, cientes dessa relação em sua própria pesquisa realizada entre o Canadá e o Vietnã.
Pergunto-me se nas crenças da ala conservadora eles concordariam. Se existiriam um conjunto de relações coletivas entre esses dois países que estabelecessem a opressão do Canadá contra o Vietnã. Caso existisse, a superação da questão estaria na parte opressora? Seus olhos estariam vendo o mundo a partir do centro ou da periferia? Será se, ao olhar no espelho, eles reconheciam cidadãos do mundo ou brasileiros? Veriam uma pessoa cosmopolita, um cidadão sem fronteiras? Pretendo elaborar mais sobre essa visão de mundo melancólica e cosmopolita nos capítulos seguintes.
Lembrei-me de um trecho do francês Marcel Péju que conheci através da leitura dos Condenados da Terra de Frantz Fanon[13], publicado pela editora Zahar:
“Distinguir radicalmente a edificação do socialismo na Europa das ‘relações com o Terceiro Mundo’ (como se tivéssemos com este apenas relações de exterioridade) é, conscientemente ou não, favorecer o rearranjo da herança colonial em detrimento da libertação dos países subdesenvolvidos, é querer construir um socialismo de luxo sobre os frutos da rapina imperial — como, no interior de uma quadrilha, se repartiria de forma mais ou menos igual o butim, mesmo que fosse para distribuir um pouco aos pobres sob a forma de boas obras, esquecendo que eles é que foram roubados.”
Pretendo elaborar reflexões a partir do revolucionário martinicano Frantz Fanon nos capítulos seguintes. Por enquanto, fico com o que talvez seja um francês consciente de seu papel, ainda que subjugado como classe, sua classe desfruta as migalhas, as quais ele próprio descreve como roubo, de suas classes dominantes.
Seria possível se maravilhar com os países que desfrutaram e, o que eu acredito, ainda continuam realizando relações de transferência de riqueza do sul para o norte. Ao meu ver, esses países subjugados são mantidos nesse tipo de transferências em relações de controle e violência. Sendo alvo dessa violência, uma pergunta que me faço ao avaliar esses autores é como que essas pessoas estão agindo para superar essas questões. Como está fazendo para organizar sua classe em seu país e como afeta sua interferência em outros países do sul, em especial o que vivo, o Brasil.
Acho importante me relembrar dessas questões. Como esse conhecimento poderia mudar a realidade em que vivo. Como poderia intervir no território em que vivo. Como poderia afetar o Brasil. Poderia eu, se estivesse distraído, se não buscasse o conhecimento devidamente da questão, descartar o estudo de um país que compartilha uma tradição de luta anticolonial marxista apenas pela aparência. Sem me aprofundar em seu conteúdo e extrair de lá o que há de mais avançado.
Mesmo se eu não acreditasse que a economia de mercado orientado ao socialismo vietnamita não fosse interessante para a construção de uma revolução em território brasileiro, não haveria nada a ser apreendido daquele processo? Não teriam eles superado vários dos problemas que enfrento? Como teriam feito sua reforma agrária? Como lidam com pessoas desabrigadas? Há pessoas desabrigadas? Como lidam com a fome? Eles têm fome? Como funcionam suas indústrias? Como lidam com o meio-ambiente? Como lidam com diferenças étnicas? Como se expressam as relações de gênero? Como são suas eleições? Como as pessoas se organizam? Qual sua visão de mundo?
Tantas perguntas que poderiam ser descartadas pelo cansaço, talvez pela falta de atenção. São algumas das perguntas que eu faria para entender outros países, em especiais os que se reivindicam, eu acreditando ou não, como em um processo de transição do capitalismo para o comunismo. Assim como, outros países que desfrutam de relações em comuns com as que preciso superar. Por exemplo, gostaria de investigar como alguns desses países conseguiram se tornar e manter soberanos.
A cada cinco pessoas vivas em 2023, quatro viviam nos países de África, Ásia e América Latina. Ainda que eu acreditasse que houvesse diferenças qualitativas entre cada pessoa seria proporcional ao tamanho da própria diferença? Pergunto-me se seria a melhor produção coletiva marxista-leninista do norte global quatro vezes superior que a melhor marxista-leninista do sul global.
Capivara Tabagista:
“[...]Resultado do povo organizado em guerrilhas
Tomando e distribuindo terras de colonialistas
Redução de jornada de trabalho pra 8 horas
Dois milhões de alfabetizados apenas em um ano
Resistência armada tá unificada agora
Participação popular enfim tá respirando
Ainda em 54, conferência de Genebra
Reconhecido Vietnã sua independência[...]" - O Coice do Gafanhoto (Vietnamitas), Primi
Boto Vermelho: Por que eu dedicaria meu tempo desproporcionalmente estudando algumas visões de mundo em detrimento de outras? Seriam meus critérios para a verdade a prática? Pretendo elaborar mais sobre a iniciativa tricontinental nos capítulos seguintes.
Como boa parte das reflexões que faço aqui, não fui o primeiro a propor elas. As melhores partes são dos autores que cito diretamente ou pretendo citar ao longo do texto. As piores partes, possivelmente, são devidas às minhas próprias limitações pessoais, que incluem tempo e condições.
Por exemplo, a intelectual Lélia Gonzales talvez tenha expressado melhor em seu escrito no texto “Racismo por omissão”[14]:
“[...]Crioulices à parte, considero importante reproduzir aqui uma afirmação de Carlos Hasenbaíg, num pequeno livro que escrevemos em coautoria: ‘No registo do brasil tem de si mesmo negro o negro tende à condição de invisibilidade.’Para não fugir à regra, o PT na TV não deixou por menos: tratou dos mais graves problemas do País, exceto um, que foi “esquecido”, “tirado de cena”, “invisibilizado”, recalcado. É a isto, justamente, que se chama de racismo por omissão. E este nada mais é do que uns dos aspectos da ideologia do branqueamento que, colonizadamente, nos quer fazer crer que somos um país racialmente branco e culturalmente ocidental, europocêntrico. Ao lado da noção de “democracia racial”, ela ai está, não só definindo a identidade do negro, como determinando seu lugar na hierarquia social; não só “fazendo a cabeça” das elites ditas pensantes, quanto das lideranças políticas que se querem populares, revolucionárias. [...]
Para concluir, direi que o ato falho com relação ao negro e que marcou a apresentação do PT, pareceu-me de extrema gravidade, não só porque alguns dos oradores que ali estiveram possuem nítida ascendência negra, mas porque se falou de um sonho; um sonho que se pretende igualitário, democrático etc., mas exclusivo e excludente. Um sonho europeizantemente europeu. E isso é muito grave, companheiros. Afinal, a questão do racismo está intimamente ligada à suposta superioridade cultural. De quem? Ora... Crioléu, mulherio e indiada deste País: se cuida, moçada”
Deveria eu me cuidar? Como diriam os neopetencostais: “Vigia, varão!”. Estaríamos nós vigiando? A professora fala já em seu título sobre esse racismo por omissão. Poderia uma estrutura proposta por um europeu ser submetida à uma visão de mundo europeizante? Eu ainda que brasileiro submetido a um processo semelhante aos descritos pela autora normalizaria crenças semelhantes às descritas?
Limitar minha visão de mundo a uma fração da população humana, poderia ter atrasado a minha própria construção do conhecimento. Acredito que o escritor indiano Vijay Prashad no livro Estrela Vermelha sobre o Terceiro Mundo faz uma relação interessante:
“Lenin viu que esta nova forma – o Soviete – tinha um ancestral direto na Comuna de Paris de 1871. O que ele não sabia é que esta forma de governo tinha outros ancestrais – como as comunas (quilombo) criadas pela insurreição dos escravos no brasil. Estes são exemplos da história dos trabalhadores que criaram as suas próprias formas de governo – muitas vezes democráticas – contra as hierarquias dos senhores da propriedade.”
Achei curiosa a relação entre os sovietes, Lenin, a comuna de Paris e os quilombos. Para o pensador indiano, havia algo a ser estudado na luta de libertação de pessoas no território brasileiro. Para ele, talvez, a superioridade de Lenin, como revolucionário, poderia ser potencializada a partir do estudo do Brasil colônia. Para outros, a fórmula para o Leviatã com paredes de vidro vinha dos colonizadores portugueses e seus herdeiros.
Eu escolho o Lenin junto dos quilombos.
Algo feito pelos colonizados, poderia ser gerador de mudanças nos países colonizadores. Os colonizados, ainda que desumanizados pela visão do norte e aqueles que bebem disso, poderiam ter suas próprias formas de governo. Poderiam ter suas próprias formas de se organizar.
Como será que eles se organizavam? Como decidiam suas questões? Como produziam as coisas? Como eram as relações entre etnias? Como eram as relações com as religiosidades?
Nenhuma dessas dúvidas parecia brilhar os olhos dos adeptos da ala conservadora. Mais preocupados estavam com a próxima viagem à Paris, na França, à Roma na Itália, ou na Alemanha. Suas crenças, talvez, os impedissem de resolver seus próprios problemas.
Para o professor Ademar Bogos, talvez fosse preciso paciência para os ajudar a avançar e alcançar o verdadeiro conhecimento.
1.3.8 - Desvio 10
“3.10 – Não saber combinar atividade de direção com ação de massas
É fundamental evitar o assistencialismo no trabalho de massas, isto traz consequências graves para o futuro, tanto na fragilidade da organização quanto para inibir o desenvolvimento da consciência política dos trabalhadores. O assistencialismo serve aos líderes personalistas por isso é prejudicial também para se confirmar o método de direção democrático e participativo. Por isso nunca se deve:
-negociar pela massa
-resolver pela massa
-decidir pela massa
-radicalizar pela massa, são formas de impedir o crescimento político ideológico da organização, e querer transformar o líder em figura mais importante que as instâncias e a própria organização.”
Quando li esse trecho do professor Ademar Bogos, lembrei-me do leviatã . Para desenvolver o entendimento dessa besta contra o que poderia ser o Curipira Embrasado, gostaria de refletir com o revolucionário guineense Amílcar Cabral[15] em aplicar na prática os princípios do partido:
“Desenvolver o espírito da crítica entre os militantes e responsáveis. Dar a todos, em cada nível, a oportunidade de criticar, de dar a sua opinião sobre o trabalho e o comportamento ou a ação dos outros. Aceitar a crítica, donde quer que ela venha, como uma contribuição para melhorar o trabalho do Partido, como uma manifestação de interesse ativo pela vida interna da nossa organização.[...]
Elogiar com alegria, com franqueza, diante dos outros, todo aquele cujo pensamento e ação servem bem o progresso do Partido. Devemos igualmente aplicar uma crítica justa, denunciar francamente, censurar, condenar e exigir a condenação de todos aqueles que praticam atos contrários ao progresso e aos interesses do Partido; combater cara a cara os erros e faltas, ajudar os outros a melhorar o seu trabalho. Tirar lição de cada erro que cometemos ou que os outros cometem, para evitar cometer novos erros, para não cairmos nas asneiras em que os outros já caíram. Criticar um camarada não quer dizer pôr-se contra o camarada, fazer um sacrifício em que o camarada é a vítima: é mostrar-lhe que estamos todos interessados no seu trabalho, que somos um e um só corpo, que os erros dele prejudicam a nós todos, e que estamos vigilantes, como amigos e camaradas, para ajudá-lo a vencer as suas deficiências e a contribuir cada vez mais para que o Partido seja cada vez melhor.”
O revolucionário fala de um Partido que talvez fosse diferente do leviatã. Essa organização que glorifica o auto-sacrifício como fim, não precisa inclusive errar diferente. A memória mantida de forma oral principalmente ficava restrita aos que mantinham a estrutura em suas mãos, dado que seus adversários eram expulsos, direta ou indiretamente, através do próprio peso do funcionamento interno.
Capivara Tabagista:
“Eles tentaram me matar e não foi só uma vez
Vocês tentaram me apagar e eu apaguei vocês
Quiseram me cansar e eu me cansei d'ocês
Não ganharam uma de mim, freguês, cês são freguês!”
A Pior Música do Ano (part. Djonga) – Froid
Parecia que boa parte do imobilismo e da morosidade instituídos pela estrutura burocrática e não responsiva da organização existia com o objetivo de cansar qualquer um que ousasse tentar elaborar um trabalho consequente de mudança e avanço. “Se não podemos, explicitamente, impedir que as coisas mudem, então vamos atrasar esta mudança até que os transformadores se desgastem e desistam”. Ao fazer um trabalho de resgate histórico da atuação daqueles que militaram antes de nós em nossa organização, percebemos um apagamento sistemático dos avanços e conquistas deles. Diversas construções valiosíssimas das quais nunca sequer havíamos ouvido falar, como se tivesse havido um esforço de esconder qualquer coisa que servisse para afirmar o valor positivo da atuação da militância de base que nos antecedeu.
Começou a se tornar inescapável a sensação de que este movimento de reconstruir uma atuação do zero de novo e de novo, sem que nunca tivéssemos a oportunidade de nos apropriar dos acúmulos que foram construídos em outros lugares e em outros tempos, era intencional, não só para apagar qualquer mérito que pudesse se afirmar sobre aqueles que fizeram esta construção, mas também para que se tornasse impossível avançar a partir do ponto em que eles chegaram. Se todos que entram precisam reconstruir a roda do zero e se exaurem antes de chegar ao próximo passo, então ninguém nunca vai conseguir terminar de construir o carro inteiro. Mais ainda, ninguém nunca vai conseguir parar por um segundo para olhar para o que está sendo construído e avaliar se isso está sendo feito de uma forma consequente, afinal de contas, estamos todos soterrados nas tarefas mais básicas desta construção que era para ser coletiva.
Felizmente, assim como contam os versos de Djonga na “A Pior Música do Ano”, nos cansamos destes que nos impunham um ciclo vicioso de destruição e reconstrução de nossos trabalhos. Decidimos abandoná-los para trás, e seguir nosso trabalho sem suas amarras e obstáculos. Vencemos essa disputa pelo trabalho prático revolucionário e pela organização de uma militância engajada com a revolução brasileira. Mas, para citar outro trecho da mesma música, “o tsunami vem aí, vamos morrer na praia”; será que vamos?
Boto Vermelho: Não havia lição a ser tirada, pois o mesmo erro poderia ser cometido ano após ano e não havia balanço. Acompanhei um encontro, o qual chamavam de ativo regional, em que se propuseram a expandir a atuação de bairro na região. Não havia tido sucesso no último ano, os membros tinham sido quebrados e os dirigentes da ala conservadora concluíram com o que chamavam de autocrítica, um pedido de desculpas. Pretendo elaborar nos capítulos seguintes sobre o tema da autocrítica como desculpas.
No próximo ano, afirmavam que seria diferente. Fariam a mesma coisa com mais motivação e força de vontade. Não havia mudança de tática ou de abordagem, se é que havia algum plano de abordagem. Um ano da vida de várias pessoas foi dedicada e descartado. No próximo ano, sem a maior parte das pessoas que atuaram diretamente na iniciativa do ano anterior, os que realmente estavam em contato com o trabalho precisariam reinventar a mesma roda.
Mesmo para interromper iniciativas, normalmente eram interrompidas pela sobrecarga ou pelo esquecimento. Esquecia-se o que se havia planejado cumprir e novas coisas surgiam para serem feitas até que ninguém mais lembrasse das anteriores. Ou se quem lembrasse se desgastasse até o ponto de não conseguir atuar mais.
Como poderia se evitar repetir os mesmos erros? Como poderia se aprender se não havia memória?
A própria sugestão da crítica pelo elogio que o guineense sugere foi descartada em diversos momentos como absurda pelos membros da ala conservadora. Era tratado como ultrajante mediante o risco do que chamavam de personalismo. Diferente do uso do professor, em que se estabeleceria uma relação de interesses manipulativos para negociar, resolver ou decidir pelos seus dirigidos. O uso da categoria na prática era o equivalente a dizer que alguém estava com o ego inflado. Quando queriam aumentar a dosagem do que eu entendo como pânico moral, usavam a possibilidade de que isso gerasse uma espécie de adoração a uma figura.
Novamente, seu tratamento de um possível desvio se dava pela aparência. Parecia em seus argumentos de que não poderia se haver uma devida avaliação do que foi feito. Se algo foi bem feito ou mal feito. Se foi bem feito, se isso poderia ser socializado aos demais. Prendiam-se muitas vezes em uma visão do indivíduo e não na própria relação entre as tendências em comum dentro do coletivo.
Diversas pessoas que tive contato em minha atuação, eu percebia como próximos de ou estavam em situação de profunda insegurança com sua atuação e sua postura. Estarem fragilizados emocionalmente, no meu entendimento, poderia ainda que sem a intenção, facilitar a aplicação de certas manipulações emocionais. Não entrarei no mérito nesse momento, de outras formas de abusos possíveis.
Não foram poucas as vezes que questionei minha própria memória, se eu não estaria lembrando das coisas erradas, após ter contato com membros da facção dominante. Era comum um fato ser afirmado como tendo acontecido contrário ao que eu me recordava para depois consultar em registros particulares e coletivos e verificar que não era verdadeiro o que a facção dominante afirmava. Os acordos e compromissos pareciam se esvair com a memória.
Talvez não tivessem certeza ao afirmar aquilo ou eles próprios se confundissem. Eu percebia que essa postura era normalizada como sendo perdoável dado o cansaço ou a boa motivação do orador. Ao meu ver, era esperado, dado o prolongar dos debates e o desgaste dos presentes. Algumas vezes, mais importante do que o que estava sendo dito seria por quanto tempo aguentariam dizer. Uma prova de resistência.
Ou ainda quando tratavam um fato afirmado como incompreensível. Pegavam-se pormenores do dito, muitas vezes pela forma, uma palavra ou termo estaria inadequado e se descartava o conteúdo da crítica. A facção dominante parecia especialista em gastar tempo.
Pegavam-se detalhes e tentavam atuar como se fosse o todo. Às vezes, um interlocutor era invalidado através de acusações de ter interesses pessoais, ou porquê estaria em desacordo com uma figura de autoridade não necessariamente relacionada ao tema. Percebia as técnicas de manipulação de debates usadas talvez até não intencionalmente. Mais importante do que ouvir o que estava sendo dito parecia ser ter uma resposta retórica rápida. Aparentar estar certo era mais importante do que demonstrar essa verdade na prática.
Na visão de mundo dos adoradores do leviatã, talvez o monstro se veria como mais necessário do que as próprias massas que o constitui. Afinal, elas seriam incapazes de se organizar sem ele. Sua organização em adoração ao leviatã era sagrada por acharem que era ela quem mantinha seus súditos vivos e não o contrário. Não seria os súditos que tinham capacidade plena de pensar, agir e aprender.
Para os que dirigiam o coletivo, o que justificaria eles próprios terem capacidade de decidir pelas massas? Haveria uma separação formal, a partir da legitimação do próprio leviatã, entre os dirigidos e os dirigentes. Podemos usar esse par entre uma atividade de direção com ação de massas para tentar entender como se dava a relação entre os destacados para dirigir e os que agiriam.
Vi-me diversas vezes em debates com o que considero a ala conservadora em que se falava das massas como se fosse uma entidade distante. Os temas giravam em torno do objeto povo como se fosse um terceiro. Talvez não fosse somente o que considero a aparência, mas no próprio entendimento do problema. Em vez de entender a dor, descartavam pela forma. Em vez de se perguntar para a realidade, especulava-se sobre ela.
Essas situações me lembravam de um relato:
“... Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles, dizendo que era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até prá sentar na mesa onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinado um monte de coisa pro crioléu da platéia, que nem repararam que se apertasse um pouco até que dava prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar juto na mesa. Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega prá cá, chega prá lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso. Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado ela prá responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso prá bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma porção de coisa prá gente da gente? Teve um hora que não deu prá agüentar aquela zoada toda da negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu prá cima de um crioulo que tinha pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a festa acabou em briga... Agora, aqui prá nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com a língua nos dentes... Agora ta queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se comportar? Não é a toa que eles vivem dizendo que “preto quando não caga na entrada, caga na saída”...
Tive contato com esse texto: “Apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, IV Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1980.” através do texto Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira da escritora Lélia Gonzales[16].
Ao o reler, penso nesse episódio e vejo pontos em comum com o que entendo como parte da luta coletiva dedicada à revolução brasileira. A ala transformadora na região que atuo foi acusada de estragar o processo que estaria acontecendo. O medo de implosão era constante, cada novo problema era uma crise em potencial.
Capivara Tabagista:
“Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: Muito obrigado!
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve, pois, só fazer pelo bem da nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um fuscão no juízo final
E diploma de bem-comportado” – Elza Soares em “Comportamento Geral”
Boto Vermelho: Desde o começo a festa já parecia ser desconfortável para a maior parte dos presentes. A festa havia sido feita por outros, para que esses outros decidissem o que fazer, para que caso fossem alguns permitidos à mesa eles estariam mais preocupados em lecionar sobre o que acreditavam sobre o tema do que em tornar confortável a sua presença. O que era entendido como educação, os procedimentos vigentes, não conseguiam resolver os problemas.
Não poderia a própria aprendizagem coletiva melhorar se as pessoas mais próximas das questões tivessem condições de relatar sua prática? Talvez o conhecimento que construíram a partir dela?
Uma das pessoas denuncia o desrespeito desse processo e mais pessoas se indignam. Em vez de tentar entender o problema e resolver suas causas, esses outros se ultrajam e expulsam seus dissidentes. Estariam estragando sua festa.
O que tornaria aquela festa dos outros e não dos presentes? Talvez acreditassem que fosse a propriedade privada. Será se achariam o mesmo para o coletivo? Quais seriam as tradições em comum entre esses episódios? Além desses, quais seriam as do coletivo?
Gostaria de refletir com o revolucionário Peruano José Carlos Mariategui[17].
“Escrevi no final do meu artigo ‘A reivindicação de Jorge Manrique’: A tradição tem a ver com a sua poesia, mas não com os tradicionalistas. Porque a tradição é, ao contrário do que desejam os tradicionalistas, viva e móvel. Ele é criado por aqueles que o negam para renová-lo e enriquecê-lo. Ela é morta por aqueles que a querem morta e fixa, prolongamento de um passado em um presente sem força, para nele incorporar seu espírito e nele colocar seu sangue.
Estas palavras merecem ser cuidadosamente enfatizadas e explicadas. Desde que as escrevi, sinto-me convidada a uma nova tese revolucionária da tradição. Falo, é claro, de tradição entendida como herança e continuidade histórica.[...]
A tradição não deve ser identificada com os tradicionalistas. O tradicionalismo —não me refiro a uma doutrina filosófica, mas a uma atitude política ou sentimental que invariavelmente se transforma em mero conservadorismo— é; é verdade, o maior inimigo da tradição. Porque é obstinado por interesse próprio em defini-lo como um conjunto de relíquias inertes e símbolos extintos. E para resumir em uma receita concisa e única.
A tradição, por sua vez, caracteriza-se justamente por sua resistência em se deixar apreender em uma fórmula hermética. Como resultado de uma série de experiências — isto é, de sucessivas transformações da realidade sob a ação de um ideal que a supera consultando-a e a molda obedecendo – a tradição é heterogênea e contraditória em seus componentes. Para reduzi-lo a um único conceito, é preciso contentar-se com sua essência, renunciando às suas várias cristalizações.”
O escritor desenvolve ao longo do texto uma reflexão entre essa herança e continuidade histórica. Vejo reflexos do que ele acusa entre o que chama de tradicionalista e o que eu entendo como a ala conservadora. Para essa ala, suas tradições, talvez nem sequer poderiam ser chamadas assim. Durante a cisão entre as alas, os conservadores argumentavam que a sua cultura divergia das dos transformadores. O que não discorriam era sobre como era determinada essa cultura. Para uma tradição marxista-leninista, se é afirmado que há algo na processo de vida social, político e intelectual impactando o dia-a-dia, entendo que se deva buscar as origens nas formas de produzir e reproduzir a vida nesse espaço. Pretendo elaborar mais sobre como acredito que certos comportamentos e posturas eram incentivados em detrimentos de outros em capítulos seguintes com a ajuda de um barbudo prussiano que estudo.
Por enquanto, fico com o que eu entendo como o tradicionalismo da ala conservadora. Sua ortodoxia não parecia ser no método, mas na aparência. Eram ortodoxos na aplicação, independente das condições materiais. Tentavam aplicar medidas iguais para situações diferentes. Suas tradições eram inertes. Seus heróis estavam mortos. Tornavam-se estudiosos de um cadáver empalhado. Sua aparência poderia ser a de um grande revolucionário, mas dentro era uma casca oca escondendo a putrefação. Sua teoria era fúnebre.
E os que os que seguiam essa ortodoxia da aparência pareciam em um prolongado processo de auto-destruição. Mártires covardes demais para fazer de forma rápida o que faziam lentamente, as vezes morriam ao longo de décadas. Seu desenvolvimento era atravancado pela própria incapacidade de superar as contradições. Em vez de negarem de forma dialética, congelavam o que achavam certo e ignoravam as mudanças. Frígidos e ressecados em espírito.
Ao meu ver a potência do materialismo dialético e da dialética materialista se dá pela ortodoxia do método, a sua essência. A tradição do marxismo-leninismo tem potência por ser viva e móvel. É criado por aqueles que a negam para a renovar e a enriquecer. Cada novo desafio é uma nova oportunidade de melhorar a construção. As contradições são parte do processo de superação dos problemas.
Uma chama que devora e engole e cresce a partir isso. Lembro-me dos incêndios sazonais nos cerrados, são parte do próprio movimento da mata. Auxiliam na germinação das sementes. Ou dos vulcões ativos, que nosso território abençoado não possui, porém que a apartir de suas erupções tornam o solo fértil para o crescimento.
Para a ala a conservadora, seus dirigentes deviam decidir e pensar pelos seus liderados. Mais importante do que permitir o próprio desenvolvimento das bases era exigir que seus subordinados lhe obedecessem pela formalidade de seu cargo. Um líder, não o era por se fazer necessário ao poder ajudar a germinar as potencialidades de seus comandados, mas a própria formalidade da hierarquia. Entendiam que uma parte do coletivo poderia exigir de outra, sem que nunca pudessem exigir nada de volta.
O povo era um ente externo, porque não se viam como o próprio povo. Os trabalhadores eram falados como terceiros, porque não se viam como os próprios trabalhadores. Talvez sem perceber, estariam lecionando para uma multidão abarrotada em cadeiras atrás de si sobre o que seria melhor para essas próprias pessoas em vez de escutá-las. Quase com se estivessem tirando uma foto com trabalhadores ao fundo almoçando e eles lá na frente sorrissem para a foto felizes de seu suposto trabalho bem feito.
Parecia haver o entendimento que uma direção regional existiria sem que houvesse uma base regional. O ridículo da formalidade, primeiro se cria a estrutura de cima para baixo e depois se buscam pessoas para sentarem nas cadeiras mal colocadas. No exemplo acima, os brancos construíam a festa e convidavam os objetos de estudo. Depois se ultrajavam quando, obviamente, esses questionavam suas intenções e a potência de seus resultados.
Achavam que ao expulsarem a maioria dos membros de um coletivo, o coletivo continuaria existindo. Estavam certos, mas apenas em parte. O coletivo continuava existindo, de fato, não pela norma, mas porque vários desses perceberam que bastava entrarem em contato novamente, voltarem a se reorganizar que poderiam ir até mais longe em seus objetivos.
Ao meu ver, nós podemos fazer mais do que isso. Podemos nos escutar, estudarmos juntos e trabalharmos juntos. As lideranças serem lideranças pelo seu exemplo e pela sua ajuda contínua à melhoria. Suas intervenções serem somente para reajustar o curso, mas permitindo que cada parte do coletivo tenha capacidade de experimentar e aumentar sua qualidade de atuação local. O papel das dirigências seria o de ajudar a socializar e a comunicar entre as diferentes partes. Elas próprias sendo capazes de experimentar e aprender. Pretendo elaborar mais sobre as relações internas do coletivo nos capítulos seguintes.
Acredito que o Curupira Embrasado tenha essa capacidade. Para ajudar a entender melhor esse avatar do povo brasileiro, gostaria de antes refletir junto do poeta Aimé Césaire em seu Discurso sobre a Negritude[18]:
“Na verdade, basta se perguntar a respeito do denominador comum que congrega, aqui em Miami, os participantes desta conferência para perceber que o que têm em comum não é necessariamente uma cor de pele, mas o fato de que se vinculam, de uma forma ou de outra , a grupos humanos que foram submetidos às piores violências da história, grupos que sofreram e não raro ainda sofrem por serem marginalizados e oprimidos.
Ainda me recordo do meu espanto, quando na primeira vez que fui ao Quebec, vi na vitrine de uma livraria de uma livraria cujo título me pareceu desconcertante à época. O título era: ‘Nós, os negros brancos da América’. Naturalmente achei graça do exagero, pensei comigo mesmo: ‘Ora, por mais que exagere, esse autor pelo menos entendeu a negritude’.
Sim, nós constituímos uma comunidade, mas uma comunidade de um tipo muito específico, reconhecível por ser, por ter sido, por ter se constituído em comunidade, antes de mais nada, de opressão sofrida, de exclusão imposta, de discriminação profunda. É óbvio que também – e isso é mérito dela – em comunidade de resistência incessante, de obstinada luta pela liberdade e de indômita esperança.”
Entendo que, para o ensaísta Martinicano, a negritude se daria por essa relação em comum das opressões impostas e a organização dessas pessoas em comunidades que resistiam e lutavam pela sua liberdade. Pode ser que para o leitor desatento, quando esse texto intercalava capacitismo, lgtbfobia, misoginia e racismo, não haveria relação uma com a outra. Tal qual para um liberal pode se existir a dificuldade de relacionar as particularidades de cada país com as comunalidades das classes entre elas.
Ainda assim, essas opressões eram separadas em partes do coletivo focadas para, no papel, lidar com os problemas, na prática para segregar os quizumbeiros. Quando se juntassem esses a partir da ala transformadora, não estariam construindo uma proposta concreta de afirmação da classe trabalhadora brasileira em um projeto de emancipação nacional e também internacional, mas era fruto da catimba de negros violentos ou mulheres histéricas.
Tal qual em um mito grego, devoraram o bebê ainda no nascimento para o vomitar fora. Não conseguiam absorver o processo. O que entendiam como dialética era um negar em abstrato. Em vez de continuamente se apropriar dos pontos mais altos da crítica, limitavam-se a ingerir a mesma sopa fria europeia, algumas vezes sua versão requentada em alguma cátedra brasileira.
Para resgatar esse bebê, podemos voltar nossa atenção para a memória que nos foi negada por figuras de sobrenomes de origens semelhantes às que cometiam reiteradamente os mesmos erros de seus antepassados. Poderia existir em solo brasileiro uma organização capaz de não só bater de frente com as potências coloniais, mas também de ter qualidade de vida superior as dos súditos da monarquia gringa?
Para o revolucionário brasileiro Jones Manoel[19], isso já foi feito:
“É conhecida a reflexão de Gilberto Freyre em seu clássico Casa Grande & Senzala (FREYRE, 2020) de que a economia colonial era uma economia de fome, dada a centralidade absoluta na produção de gêneros para exportação destinados ao mercado externo. Durante toda a existência do Brasil Colonial, especialmente no Nordeste, a produção de alimentos para o consumo interno na colônia foi um problema, em função da estruturação de uma economia voltada para fora. Na República de Palmares, tínhamos uma economia centrada nas necessidades dos seus habitantes, produzindo gêneros para seu consumo, e comercializando o excedente. Para o Brasil Colônia, o comércio externo era tudo, pautando sua dinâmica de produção inteira. Para a República de Palmares, era o complemento de uma dinâmica produtiva voltada para si. [...]
Vale destacar que mesmos cercados pelo escravismo, em guerra permanente e tendo altos custos com a defesa, a economia da República dos Palmares era mais produtiva e dinâmica que a do Brasil Colônia. Clóvis Moura chega a falar de uma “economia de abundância”. Um habitante de Palmares, tinha, objetivamente, maior disponibilidade de frutas, verduras, legumes, roupas, acessórios, tipos de carne animal e afins que um escravizado (negro ou indígena) e “mestiço” pobre no Brasil Colônia. “
Refletindo o exposto pelo autor. Entendo que quase 100 anos de República de Palmares talvez tenham mais para ensinar do que três meses de Comuna de Paris. Ainda que eu estudasse proporcionalmente, para cada um dia da Comuna de Paris uma hora de estudos, levaria cerca de 120 horas. Enquanto para a resistência anti-escravocrata e anticolonial palmarina eu precisaria de mais de 36 mil horas.
Seria a comuna de Paris 300 vezes mais importante que Palmares? Não fazia sentido priorizar os franceses enquanto se deixa de estudar os palmarinos. Não tinham eles capacidades de produzir e saciar suas necessidades superiores aos de seus adversários? Não é esse o objetivo que busco?
Para o autor do texto, em comum com o indiano Vijay Prashad com os quilombos-comunas, a República de Palmares assim como diversas outras formas de organizações dos oprimidos teria o potencial de ser semente para um germinar de uma nacionalidade verdadeiramente brasileira. Talvez uma referência para a construção de país soberano e independente. Para lembrar que isso, inclusive não é algo novo, Jones Manoel lembra do também revolucionário brasileiro Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança:
“Com a Aliança estarão todos os homens de cor do Brasil, os herdeiros das tradições gloriosas dos Palmares, porque só a ampla democracia de um governo realmente popular será capaz de acabar para sempre com todos os privilégios de raça, de cor ou de nacionalidade e de dar aos pretos, no Brasil, a imensa perspectiva de liberdade e igualdade, livres de quaisquer preconceitos reacionários, pela qual lutam com denodo há mais de três séculos” (PRESTES, 2012, p. 138). “
Isso em 1935. Vejam, para essa esquerda que tem como espelho o que entendo como Norte Global, não seria vergonhosa sua incapacidade de alcançar Prestes em 1935. O quanto foi perdido da própria forma organizativa do próprio PCB nesses anos? Sua capacidade de formar novos quadros, de ter grandes artistas, de interferir na realidade brasileira.
Como se organizavam em diferentes territórios o PCB na década de 20? Na década de 30? Na década de 40, 50 e 60? Ao menos nas formações oficiais, nem mesmo a própria história do coletivo era interesse de seus estudos. Suas respostas, tais quais as dos inimigos da República de Palmares, vinham de Portugal. Sua revolução sonhada talvez fosse uma feita com rosas em mãos. A parte dos espinhos para os que a empunhavam, as pétalas macias para a classe dominante. Pretendo elaborar sobre as diferentes formas de partido que pude encontrar ao longo dos próximos capítulos.
Por enquanto, gostaria de refletir sobre essa relação entre comuna e quilombo. Essa reflexão que a República de Palmares é exemplo para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Eles tentaram fazer lá o que já tínhamos tentado fazer aqui, agora negamos novamente sua aplicação, assim como de tantas outras, para chegar a um novo patamar.
Seriam os descendentes arrependidos dos colonizadores que comandavam os quilombos? Desconfio que não. De forma semelhante, corrigindo não pela forma, mas pelo conteúdo, acredito que precisemos alcançar uma estrutura em que a atividade das direções e a ação das massas não se confunda em uma festa interrompida. O Curupira Embrasado precisar ter não só os pés e braços compostos pelas pessoas oprimidas, mas o coração e mente também tomados por esses.
Quem derrotou a França em Dien Bien Phu? Quem derrotou Portugal repetidas vezes em Angola, Moçambique e Guiné-bissau? Quem derrotou os czares na Rússia? Quem derrotou os alemães na Europa? Os japoneses no sudeste asiático? Quem aplicou na prática os princípios da revolução Francesa se não os haitianos? Quem se levantou contra o império colonial brasileiro na Bahia? Quem derrotou os colonizadores na província do Grão-Pará?
Sua visão precisa ser a de um brasileiro, de entenderem as dores da maioria de sua classe, e seu conhecimento coletivo precisa partir do sul para que possa superar os mesmos erros do leviatã. Qual foi a última revolução socialista feita na França? Na Itália? Na Alemanha ou em Portugal? Qual delas durou ao menos um centésimo do tempo de Palmares? Se quisermos ajudar essas pessoas, aprisionadas de corações e mentes no coração da besta imperial, precisamos inclusive sermos capazes de impedir que continuem sua rapina em nosso país.
1.5 - Como fazer a partir daqui? - Conclusão do primeiro capítulo
“Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Quero assistir ao Sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver” Cartola – Preciso Me Encontrar
Achava estranho algumas das relações normalizadas dentro do coletivo que entrei. Uma delas era como lidavam com a despedida de um membro. Uma pessoa deixar a organização parecia um longo vai e vem, um término complicado entre um lado que insistia que agora poderia ser diferente, que não cometeria os mesmos erros e que os ex-membros que tinha se relacionado eram todos loucos. Outra que se culpava, duvidava da própria capacidade, dos seus próprios motivos, muitas vezes tinha medo de estar ela cometendo a violência.
Os membros que deixavam os espaços eram vilipendiados em sua honra pelo que considero membros da ala conservadora. Se tinham deixado, devia ser por algum desvio de caráter seu. A própria possibilidade de, agora que reuniam a coragem necessária para expressar as manipulações e violências que sofriam, era usada como prova de suas más intenções. Eram lembrados em um primeiro momento por suas falhas, caso tivessem sucesso em atuar em outros coletivos ou em sua vida, parecia que era uma afronta contra os que ficaram. Se não, pode ser que seriam esquecidos.
Os egressos eram tratados quase como mortos. Enquanto os membros que realmente deixavam o coletivo por falecimento, bem... Era complicado. Vou me permitir um momento, recomendo saltar três parágrafos, caso seja um tema incômodo.
Eu achava estranho que as únicas formas de deixar o coletivo descritas no regulamento interno da organização com telhado de vidro seria a expulsão ou a morte. Talvez em um primeiro momento fossem lembrados como santos, como mártires, mas logo depois a própria perda de memória se encarregaria de deixar aquilo para trás. Muitas vezes, era esperado das direções abafar o ocorrido. Garantir que fosse um tema de corredores ou somente para os usos que entendessem adequados. Lembrar o fato poderia ser mal visto. Do que se pode aprender sobre o fato além de fins escusos?
Fico me perguntando se não há nada que poderíamos ter feito. Não sei responder para vários casos, porque não temos o devido estudo da realidade. Por que fomos tão lentos para corrigir os problemas que eram evidentes? Não tínhamos força? Por que não conseguimos interceder antes? Será se esse coletivo foi fruto de uma melhora de sua vida enquanto esteve aqui? Teríamos roubado seus últimos anos de vida? Ainda que fosse de forma voluntária, tal qual um membro de uma igreja-empresa que doa tudo que tem e acredita estar fazendo de sua própria vontade, não seria eu responsável? Lavaria as minhas mãos?
Será se eu seria esquecido também? Meu trabalho apagado? Minha memória destruída. Acho que estaria tudo bem, desde que vencêssemos. Que a memória coletiva que eu gostaria de participar na reconstrução não seria uma de repetir os mesmos erros. Os mesmos casos isolados se repetindo e acumulando. Que um sacrifício não fosse somente um sacrifício espetáculo, mas uma forma de que menos acontecerão no futuro. No mínimo, menos dos mesmos tipos.
Com a canção do poeta Cartola, a despedida não parece um ato de traição, mas um pedido de compreensão. Um afastamento para se conhecer o mundo e a si próprio. Esse processo passa pelo riso. Pelo lúdico. Era preciso brincar para não chorar. Recentemente, tive contato com um documento em que se proibia a brincadeira dentro do que essa pessoa considerava o seu partido. Caso quisessem fazer o que talvez fosse entendido como uma quizumba, que o fizessem fora de sua festa.
Não culpo a pessoa e nem entrarei no mérito de que esse comentário desviava do cerne do argumento que era lhe apresentado. Tenho esperança que possa ter sido um descuido de atenção. Espero que melhore.
Esse episódio me encheu o coração de pesar, mas também me arrancou prazerosas gargalhadas. Gargalhadas coletivas que ajudaram a lidar com a própria tristeza que sentíamos coletivamente. Espero que um dia possamos rir juntos e sofrer dores diferentes das de hoje.
O pesar veio dessa lembrança, desse reflexo de comportamentos que vi na ala conservadora, que essa pessoa poderia nem perceber que estava expressando. Achava curioso como a facção dirigente que tive contato se levava a sério na aparência, mas eram amadores em essência. Quando alguém fazia uma piada com um tema tratado poderia ser ultrajante. Quando não conseguiam resolver o problema a sua frente, eram, tal qual em uma brincadeira de criança, café com leite.
Atrasavam-se em seus compromissos. Quebravam ou abusavam de seus próprios protocolos internos. Desrespeitavam com ataques baixos quem consideravam justificado o comportamento. Distorciam os argumentos como se conversassem em línguas diferentes. Ofendiam-se os adversários com pechas e espantalhos, reduziam a outra pessoa a um arquétipo vilanesco. Mudavam de posição, se vissem que uma figura de autoridade tinha feito o mesmo. Um vale tudo, exceto serem humanos. Rirem ou se irarem.
Ainda assim, o problema estaria em fazer rir ao longo de um encontro. Uma síntese de um longo argumento usando termos não difundidos. Uma piada ou brincadeira em um texto maçante de uma pessoa que você talvez nem conheça.
Em vez disso, eram monótonos em sua fala, tal qual, quem sabe, em sua visão de mundo. Suas apresentações eram, quando existiam, leituras de textos em blocos preto-e-branco. Uma longa exposição de um monólogo com palavras não explicadas. A próxima pessoa a falar faria o seu próprio monólogo, não era necessário sequer tangenciar o anteriormente falado. Depois que todos falassem e ninguém tivesse se escutado, estaria realizada a democracia. Pareciam rígidos para disfarçar seu próprio amadorismo.
Algumas vezes, eu me perguntava o porquê de se chamarem de camaradas a cada oração. Esqueceriam eles da relação que tinham com a outra pessoa se não se recordassem a cada minuto? Talvez acreditassem que a cada vez professada a palavra, mais real se tornava a relação. Brinco se acreditariam que, em algum momento, assinariam um contrato trabalhista ao passar muito tempo em um bar chamando o garçom de meu patrão. Chamar de patrão é o que determina a relação entre empregador e funcionário?
Algumas vezes, eu me distanciava da questão para refletir o que estaria acontecendo ali. Jovens adultos, algumas vezes pais e mães de família, usando de picuinhas e intrigas para garantir que o que acreditavam acontecesse. Distorceriam-se os relatórios, enviesando uma figura de forma a lhe construir um espantalho vilanesco. Argumentar-se-ia contra uma coisa que desgostasse ainda que soubesse que era falsa sua afirmação pelo próprio desgaste do processo como arriscando se alguém lhe pegaria no pulo.
Falar mal do coleguinha seria o mais maduro que conseguiriam agir para mudar a realidade? Para a facção dirigente parecia como normal da disputa violências veladas pela própria forma. Mesmo com poucas ou nenhumas provas, acusavam seus adversários de comportamentos repudiados se faladas diretamente, mas contornavam com termos difíceis e longas orações. Rebaixavam-se para disputar, algumas vezes, menos pessoas que uma partida de futebol.
Talvez tivessem medo de encher um estádio como fizeram os Lutadores da Liberdade Econômica(EFF em inglês) na África do Sul. Quando realizaram a comemoração do aniversário de dez anos de fundação do partido que se reivindica marxista-leninista.
Talvez achassem que eram incapazes de fazer o mesmo em dez anos.
Eu me perguntava aonde estava o amor próprio daquelas pessoas. O respeito próprio. A seriedade do fenômeno se daria por parecer sério e não por agirem como palhaços. Nada contra a profissão.
Para Cartola, enquanto ele busca se encontrar andando por aí, quer ouvir os pássaros cantarem. Ver o sol nascer e se pôr. Fico pensando nisso tanto para quem deixou a organização, que tenho esperança que essa possa se tornar o que você precisa para voltar, assim como os que continuam nela tentando a transformar no que nosso tempo histórico demanda.
Acredito na importância de às vezes se afastar do problema. Respirar e se permitir olhar ao redor, ver as coisas por outros ângulos. Podem ter pessoas que estariam em um momento ruim de suas vidas para continuar atuando e faz parte das necessidades de um coletivo saber identificar e respeitar isso. Acredito que podemos inclusive facilitar um processo de melhor depuração das questões. Um maior aprofundamento das reflexões tanto do coletivo quanto das pessoas.
Uma pessoa alforriada das dinâmicas da organização e mesmo após descansar, refletir e pensar, decide retornar ao meu ver tem sua convicção e dedicação reforçadas. Significaria talvez que o coletivo oferecesse uma melhora em sua vida maior do que não estar nela.
Pior seria, uma pessoa que se vê obrigada a ficar em um espaço, ainda que esse espaço lhe faça mal. Se nossa existência estiver atrelada unicamente ao coletivo, isso não torna vivo o coletivo, mas pode o engessar e enfraquecer. Se essa pessoa não tempo para sua família, pessoas queridas, lazeres ou para desfrutar a própria vida, por quê lutamos? Por quem lutamos?
Se dentro do coletivo não é permitido se quer o riso, quanto mais o lúdico; Se não temos tempo para respeitarmos uns aos outros; Se não podemos expressar ou reconhecer um trabalho de qualidade; Se não há resultados na realidade em que vivemos; Se não nos vemos como parte do processo; Se os debates que ocorrem são escondidos ou barrados em uma parede de jargões e ritos antiquados? Por quê ficariam aqui?
Pretendo elaborar mais sobre as relações entre uma interpretação do cristianismo e a postura que via na ala conservadora nos capítulos seguintes.
O que estão buscando?
Por enquanto, prefiro o que o artista Primi propõe na obra O Futuro:
“Quem é, sente é
Eu quero ver meus iguais bem né
Vejo irmãos e irmãs tomando o futuro
Quem é, sente é
Eu quero ver meus iguais bem, né
Vejo irmãos e irmãs tomando o futuro
País sem neve num frio que congela
Dissolveram nossas histórias em guerras
Mitos do inferno habitam a terra
Vai a merda você e seu “All Lives Matter”
Quebra! Sua podridão é eterna
Dissipando as verdades em névoas
Mercenários para a nossa miséria
Tenta se esconder mas nóis sabe bem
Quem é,
Os criadores do game é
Grana no bolso cês tem, né
Verdadeiros “homens de bem”, né
Com bilhões de reais
Vou sempre, é
Cabelo enroscado no pente, é
Na lutar há mais de cem né
Muito Malcom pro teu Clark Kent, é
Terror dos capitais
Vivendo a vida como dá: mal
Aprendendo como mudar: Mao
Tomar enquadro e lutar
Seguimos vivendo herança ancestral
Buscando a paz, sentindo a vida
Inspiração em generais vietnamitas
Imperialistas não nos calarão
A força coletiva nos ilumina
Quem é, sente é
Eu quero ver meus iguais bem, né
Vejo irmãos e irmãs tomando o futuro
Quem é, sente é
Eu quero ver meus iguais bem, né
Vejo irmãos e irmãs tomando o futuro
Quem é, sente é
Eu quero ver meus iguais bem, né
Vejo irmãos e irmãs tomando o futuro
Quem é, sente é
Eu quero ver meus iguais bem, né
Vejo irmãos e irmãs tomando o futuro
Quem é, sente é
Eu quero ver meus iguais bem, né
Vejo irmãos e irmãs tomando o futuro
Quem é, sente é?
Eu quero ver meus iguais bem, né
Vejo irmãos e irmãs tomando o futuro ”
Harpia Dourada: Comunista bom é comunista humilde, então gostaria que todo mundo que chegou a esse ponto pense quatro vezes antes de discutir a linha política do MST como inferior à nossa enquanto nos somos MACETADOS por uma organização que tem representação frontal no debate politico brasileiro e que consegue pelo menos delimitar pra sua própria base, sobre forma de um documento claro e direto sua experiencia histórica e como não repetir erros do passado.
Boto Vermelho: Realçamos que se trata de um primeiro capítulo para abertura de debates, como uma espécie de reflexão para o começo desse necessário processo. Convidamos as pessoas que se identifiquem com esse relato que remetam suas opiniões, críticas e sugestões sobre este primeiro capítulo da tribuna. Aos conservadores e reacionários sabor vermelho ou não, espero que melhorem.
Fontes e Referências:
¹ Deus e cafeína no sangue.
² Eu gosto de perguntas retóricas. [Harpia Dourada]
[1] EM DEFESA DO COMUNISMO. Manifesto em defesa da reconstrução revolucionária do PCB. Disponível em: <https://emdefesadocomunismo.com.br/manifesto-em-defesa-da-reconstrucao-revolucionaria-do-pcb-post/>/. Acesso em: [13/05/2024].
[2] MARTÍN-BARÓ, Ignacio. Psicologia social de la guerra: traumas, testimonios, olvidos. 2. ed. San Salvador: UCA Editores, 2017.
[3] BARBOSA, Clara. Argumentação e persuasão no contexto do discurso político. Vitória, v. 15, n. 3, p. 188-205, set./dez. 2023.
[4] PRASHAD, Vijay. Estrela Vermelha Sobre O Terceiro Mundo. São Paulo: Expressão Popular, 2019.
[5] https://emdefesadocomunismo.com.br/agitacao-propaganda-e-poder-popular-para-onde-estamos-indo/
[6] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Universo dos Livros Editora, .
[7] GRAMSCI, Antonio. Il moderno principe.
[8] [VÍDEO ONLINE]. Vozes da Revolução #1 [Videoclipe Oficial CYPHER] - Centenário Partidão. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=A4DZGxqw_iE&pp=ygUUdm96ZXMgZGEgcmV2b2x1w6fDo28%3D>. Acesso em: [12/01/2024].
[9] CUNHAL, Álvaro. O partido com paredes de vidro. Portugal: Edições Avante!, 2022.
[10] https://periodicos.ufms.br/index.php/RevTH/article/view/12147
[11] MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Caderno de formação nº 35: método de organização – construindo de um novo jeito. Disponível em: <https://mst.org.br/download/caderno-de-formacao-no-35-metodo-de-organizacao-construindo-de-um-novo-jeito/>/. Acesso em: [13/05/2024].
[12] Nguyen, Xuan Thuy, et al. “Unsettling Research versus Activism: How Might Critical Disability Studies Disrupt Traditional Research Boundaries?” Disability & Society, vol. 34, no. 7-8, 4 June 2019, pp. 1042–1061, https://doi.org/10.1080/09687599.2019.1613961.
[13] SOUSA, F. S.; FERREIRA, R. L. “E se fosse ao contrário?” Djonga e Fanon: um diálogo sobre racismo e alienação. Revista Trilhas da História, v. 10, n. 19, p. 51–67, 21 dez. 2020.
[14] Textos de Lélia Gonzalez. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/gonzalez/1983/08/13.pdf>/. Acesso em: [13/05/2024].
[15] CABRAL, Amílcar. Aplicar na prática os princípios do partido. Disponível em: <https://traduagindo.com/2021/10/08/amilcar-cabral-aplicar-na-pratica-os-principios-do-partido/>/. Acesso em: [13/05/2024].
[16] GONZÁLEZ, Lélia. "Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira". Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20Lélia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20(1).pdf>/. Acesso em: [13/05/2024].
[17] MARIÁTEGUI, José Carlos. "La escuela regional indigenista" (1927). Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/mariategui/1927/11/25.htm>/. Acesso em: [13/05/2024].
[18] CÉSAIRE, Aimé. Textos escolhidos: A tragédia do rei Christophe, Discurso sobre o colonialismo, Discurso sobre a negritude. São Paulo: Editora Cobogo, 2022.
[19] Manoel, Jones. [Título do artigo ou conteúdo]. Disponível em: <https://operamundi.uol.com.br/opiniao/jones-manoel-a-republica-de-palmares-e-a-disputa-pela-nacionalidade-brasileira/>. Acesso em: [13/05/2024].