'Greve geral do dia 24 na Argentina: o que são o DNU e a Ley Ómnibus' (Andressa Bacin)

Já nos primeiros dias de governo anunciou uma série de medidas anti classe trabalhadora que retira centenas de direitos, incluindo direitos dos aposentados, que já vivem uma situação precária desde o governo Macri.

'Greve geral do dia 24 na Argentina: o que são o DNU e a Ley Ómnibus' (Andressa Bacin)
"Em 2023, Milei, infelizmente, ganhou as eleições presidenciais contra o candidato peronista Sergio Massa, com mais de 55% dos votos, contando também com uma bancada enorme de deputados na câmara. Com propostas como a dolarização da economia argentina, acesso fácil da população à armas, discursos contra o aborto e a educação e saúde pública, etc. Ganhou com um discurso de privatização e anti direitos."

Por Andressa Bacin para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Estamos acompanhando a greve geral na Argentina nesse dia 24 de janeiro de 2024. Uma mobilização multitudinária de organizações sociais, centrais sindicais, CGT (Confederação geral do trabalho), trabalhadores de vários setores e autoconvocados por todo o país, em repúdio à motosserra neoliberal de Javier Milei, que quer retirar centenas de direitos dos trabalhadores.

Nesse texto, quero trazer algumas coisas importantes para entendermos a situação atual do país, o que dizem essas medidas e como elas impactam na vida da classe trabalhadora. Obviamente não conseguirei dar todas as respostas em um texto, mas espero que esse panorama geral ajude no nosso entendimento dessa primeira greve geral há apenas 44 dias do governo Milei e Villarruel.

Javier Milei é um economista ultraliberal que ficou conhecido por ser chamado para participar de programas de TV e outros meios de comunicação, ganhando especial visibilidade nas redes sociais e entre a juventude.

Em 2021 foi eleito deputado pelo partido “La libertad avanza", o qual foi criado nesse mesmo ano. Rapidamente ganhou espaço entre a classe trabalhadora argentina, já cansada dos fracassos de uma série de governos peronistas, principalmente esse último, de Alberto Fernández, e do precedente, de Macri, que retirou direitos e piorou, brutalmente, a desigualdade social no país vizinho.

Em 2023, Milei, infelizmente, ganhou as eleições presidenciais contra o candidato peronista Sergio Massa, com mais de 55% dos votos, contando também com uma bancada enorme de deputados na câmara. Com propostas como a dolarização da economia argentina, acesso fácil da população à armas, discursos contra o aborto e a educação e saúde pública, etc. Ganhou com um discurso de privatização e anti direitos.

Já nos primeiros dias de governo anunciou uma série de medidas anti classe trabalhadora que retira centenas de direitos, incluindo direitos dos aposentados, que já vivem uma situação precária desde o governo Macri.

Esses decretos se apresentam em dois pacotes, o “DNU” e a “Ley ómnibus”. Vamos entender um pouco o que diz cada um e como impactam na vida da classe trabalhadora.

Se trata de uma reforma trabalhista, já prometida em sua campanha, que afeta a vida de milhões de argentinos, que já enfrentam uma crise brutal, com 44% da população na pobreza.

O que diz o DNU:

O “decreto de necessidade e urgência” é um mecanismo legislativo, que consta na constituição nacional (Artigo 9, inciso 3 da reforma de 1994), que outorga poder ao executivo a capacidade de legislar no caso de circunstâncias extraordinárias, o que evita o processo convencional do congresso. Deveria ser utilizado quando há demandas imediatas para problemas urgentes e catástrofes.

O DNU pode ser usado desde que não regule as questões penal, tributária, eleitoral e o regime dos partidos políticos.

Entra em vigor no momento em que é emitido e dura até que seja rechaçado por alguma das câmaras, caso seja aprovado por uma delas ou a outra não o trate, já fica vigente. O Congresso não tem poder para fazer modificações no DNU.

O documento começa da seguinte forma:

“Que a república argentina se encontra atravessando uma situação de inédita gravidade, geradora de profundos desequilíbrios que impactam negativamente em toda a população, em especial no social e econômico.

Que a severidade da crise coloca em risco a subsistência da organização social, jurídica e política constituída, afetando seu normal desenvolvimento à procura do bem comum.

Que nenhum governo federal recebeu uma ferramenta constitucional, econômica e social pior do que a que recebeu a atual administração, pelo qual é imprescindível adotar medidas que permitam superar a situação de emergência criada pelas excepcionais condições econômicas e sociais que a nação padece, especialmente, como consequência de um conjunto de decisões intervencionistas.

Que com o fim de corrigir a crise terminal que enfrenta a economia argentina e conjurar o grave risco de deteriorar ainda mais a gravidade da situação social e econômica, se deve reconstruir a economia através da imediata eliminação das barreiras e restrições estatais  que impedem seu normal desenvolvimento, promovendo ao mesmo tempo uma maior inserção no comércio mundial.”

O documento oficial trás decisões como (resumidamente): 

  1. Privatizar o banco central e a YPF (Yacimiento Petrolíferos Fiscales) e outras empresas públicas, como as “Aerolíneas argentinas” para “maior competição e eficiência econômica, redução da carga fiscal e melhor qualidade dos serviços”. Aquela falácia que a gente já está cansado de escutar que “privatizado é melhor”
  2. Tirar investimentos da área da saúde.
  3. Eliminar as restrições impostas aos planos de saúde, o que fará com que esses planos cobrem o que querem sem limites
  4. Desregulamentação do mercado dos cartões de crédito.
  5. Desregulamentação da agropecuária, assim como do setor açucareiro e grandes empresas de mineração.
  6. Flexibilização e “modernização” dos direitos trabalhistas.
  7. Proibição de direitos como a licença maternidade e de greves.
  8. Derrogação da “lei de terras", o que permite um maior acúmulo e “estrangeirização” do solo argentino.
  9. A derrubada da “lei dos aluguéis”, que daria total liberdade para os alugadores de cobrarem sem contrato, ajustando o valor segundo a inflação, seja em dias, semanas ou meses, dependendo das oscilações.
  10. Declara vida a partir do momento da concepção.
  11. Cobrança de mensalidade para estrangeiros que estudam em faculdades públicas do país.

Além de outras dezenas de leis que tendem a piorar a vida da classe trabalhadora.

O que significa a “Ley ómnibus”:

É um mega projeto com 351 páginas e mais de 600 leis e artigos que deve ser tratado pelo congresso durante os próximos dias.

O projeto começa com a seguinte declaração:

“Ao honorável congresso da nação:

Tenho o agrado de me dirigir à vossa honorabilidade com o objetivo de remitir à sua consideração o projeto de lei de bases e pontos de partida para a liberdade dos argentinos à luz da dramática situação econômica e social na qual está submersa nosso país.

A Argentina está afundada em uma grave e profunda crise econômica, financeira, social, previdenciária, de segurança, de defesa, tarifária, energética, sanitária e social sem precedentes, que afeta a todas as ordens da sociedade e o funcionamento do Estado.

Essa crise é produto do abandono do modelo de democracia liberal e da economia de mercado plasmada em nossa constituição de 1853 e de haver avançado, durante décadas, a um modelo de democracia social e economia planificada que não somente fracassou em nosso país mas em todos os países onde foi implementado ao longo da história.

Para dar uma solução efetiva à crise atual, o congresso da nação argentina deve adotar um conjunto de medidas de emergência para restituir a democracia liberal e a economia do mercado e avançar na reforma do Estado com o objetivo de consolidar a estabilidade econômica, garantir o direito à vida, liberdade e propriedade dos argentinos e melhorar a assignação de recursos na economia nacional para, como diz a constituição nacional, assegurar os benefícios da liberdade para todos os habitantes do solo argentino.”

Esse projeto, entre outras coisas, também contempla a privatização de todas as empresas estatais.

Também prevê o fechamento do Instituto nacional de teatro e do Fundo nacional das artes, o desfinanciamento do Instituto nacional da música e a comissão nacional das bibliotecas nacionais. Uma inestimável perda para a cultura.

Outras medidas são a transformação do ministério de mulheres, gênero e diversidade em subsecretaria. Também visa delimitar a “Lei Micaela”, que estabelece que todas as pessoas que trabalham no serviço público devem receber capacitação em gênero e violência de gênero e propõe a substituição do termo “violência de gênero" por “violência familiar” e a adoção do termo “criança por nascer”.

O projeto também busca reduzir o Estado à sua mínima expressão e ampliar a desregulamentação de grandes empresas do mercado.

Respeito aos aposentados a lei diz que o poder executivo decidirá quando e quanto aumentar as aposentadorias.

Sobre o meio ambiente  figuram projetos que modificam leis que protegem glaciares, bosques e controle das queimadas.

Há algumas pérolas, inclusive, como o artigo 52 que diz que juízes deverão vestir toga preta e usar um martelo para abrir as sessões, assim como nos EUA.

Mas o ponto da lei que me causa mais preocupação é que qualifica como “manifestação” a reunião de 3 pessoas ou mais, criminalizando manifestações, com penas que chegam a 3 anos e 6 meses de prisão, que podem aumentar em caso de “resistência à autoridade”.

Quem convoca mobilizações também estaria cometendo um delito, inclusive se quem convoca não participa. 

Finalmente, exige que para fazer manifestações se precisará da permissão do ministério de segurança da lunática ministra Patrícia Bullrich, que chamou os sindicalistas de mafiosos.

Morando na Argentina há 8 anos, apesar de ter vivido o governo Macri, nada se compara ao que está acontecendo e ao que está por vir. Os preços dos alimentos sobem, literalmente, todos os dias, quando não sobem durante o mesmo dia.

A insegurança alimentar, que já era uma realidade, se brutalizou imensamente. Aposentados estão apavorados com os reajustes e com a flexibilização das leis que regulamentam os planos de saúde.

O povo argentino, historicamente combativo quanto à proteção de seus direitos, nos dá um exemplo da importância da mobilização e organização da classe trabalhadora. Seguramente, esse foi só o primeiro dia de mobilizações e não irão parar até a derrubada do governo de Javier Milei.

La patria no se vende!