Governo cede à campanha de mentiras sobre norma da Receita Federal
A decisão de revogar a medida, que sequer deveria ter sido proposta, perfaz uma derrota vexatória do governo, que comprova na prática que, longe de ser mero problema de comunicação, há um problema político em jogo.
Por Redação
Em um movimento para intensificar a fiscalização tributária, a Receita Federal do Brasil havia anunciado novas diretrizes que ampliam o monitoramento de transações financeiras realizadas por meio de cartões de crédito, débito e Pix. A Instrução Normativa nº 2.219/24 estava inserida em um contexto de ampliação da base fiscalizatória de combate à sonegação fiscal e redução de fraudes.
A maior fiscalização de práticas de evasão e sonegação é uma das bandeiras do Ministério da Fazenda de Fernando Haddad (PT) que se desdobra da sua meta de déficit zero, no ínterim da política de austeridade fiscal adotada no Novo Arcabouço Fiscal. As administradoras digitais de cartão de crédito e débito teriam, então, a obrigação de informar movimentações acima de valores pré-determinados – estimados em R$ 5 mil por operação para pessoas físicas e R$ 15 mil para jurídicas – prática que já era realizada pelas instituições financeiras e bancos tradicionais. Essas informações são cruzadas com declarações de imposto de renda para identificar possíveis inconsistências.
Apesar do monitoramento, a Receita Federal emitiu uma comunicação afirmando que não haveria análise individual de cada transação, mas sim a identificação de padrões que possam levantar suspeitas. Ao mesmo tempo, alega que a medida busca combater o crime organizado, o que indica o contrário, que haveria sim análise. Em meio a tantas inconsistências e hesitações, é claro que a medida seria recepcionada com desconfiança por parte significativa do povo trabalhador brasileiro, recém financeirizado, em ocupações informais que aderiram ao Pix recentemente, e ora utilizam do meio sem recolher tributos, ora não têm o amparo técnico-jurídico para saber se, de fato, a medida os afetaria ou não. Neste sentido, não faz sentido algum a afirmação do governo de que pretendia combater grandes sonegadores enquanto estabelece um valor tão baixo quanto R$ 5.000,00 mensais. De fato, a ameaça de consequências criminais para aqueles que caíssem na malha fina impactou a opinião pública mais do que supostas estatísticas sobre a raridade de ser pego na malha fina.
Os esclarecimentos do Fisco não foram páreos frente a uma intensa campanha reacionária de desinformação nas redes sociais, que inicialmente disseminou que, para além do aumento da fiscalização, o que se faria a partir de janeiro seria cobrar um novo tributo, individualmente, em cada operação por Pix que ultrapassasse 5 mil reais no mês – popularizado como Imposto do Pix.
Um dos atores centrais dessa campanha foi o deputado federal Nikolas Ferreira (PL), que publicou um vídeo de ampla divulgação em que, utilizando de considerável produção profissionalizada, espalhava o boato sob tom de insinuação. Nikolas, na mesma ocasião, rechaça em tom cínico medidas que ele próprio votou a favor, como o fim da isenção para comprar de importados abaixo de 50 dólares.
É evidente que, em grande parte, o sucesso da extrema-direita em vender essa mentira em sua campanha de pânico contra o governo é responsabilidade da postura do próprio governo. Desde, pelo menos, o anúncio da tributação dos importados, o Governo Lula-Alckmin e seu Ministério da Fazenda estão associados à imagem impopular de aumento da carga tributária, principalmente após a declaração de que não conhecia a Shein ou a Shopee, pois comprava apenas livros na Amazon.
Desde então, não houve nenhuma medida eficaz do governo para combater a imagem de ‘Taxad’ que o ministro hoje cultiva em parte considerável do povo brasileiro. Pelo contrário, a reforma tributária sobre o consumo, ora vendida como uma alteração histórica na base tributária nacional, não ousou redistribuir, mesmo que timidamente, a proporção de tributos que é custeada pelo povo pobre do país, e foi verdadeiro palco das disputas burguesas no parlamento, aprovando normas como a desoneração de armas de fogo no Imposto Seletivo e a concessão de créditos ao setor agropecuário. A “reforma tributária” celebrada pelo governo mantém o Brasil na lista dos países com maiores impostos sobre consumo do mundo.
De mesma forma, a retirada da tributação sobre grandes fortunas da votação do Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/24 sem que o executivo comprasse a pauta para si, e o anúncio de que a isenção no Imposto de Renda para quem ganha até R$5.000,00, que foi promessa de campanha em 2022, deverá ser apresentada apenas em 2026 e ainda deverá passar pelo Congresso Nacional, são exemplos de como a política tributária do governo está desgastada em face do trabalhador brasileiro médio. Somado aos cortes de gastos sociais realizados pelo governo, a política neoliberal do governo inspira cada vez mais desconfiança entre as massas trabalhadoras.
Em face da dimensão que tomou a campanha da direita, o Ministério da Fazenda anunciou na quarta-feira (15), após reunião com o presidente Lula (PT), que a normativa da Receita Federal foi revogada. O governo, ainda, anunciou que publicará uma Medida Provisória que equipara o pagamento em Pix ao pagamento em dinheiro. O ministro Fernando Haddad afirmou que a decisão foi tomada diante da “manipulação de opinião pública”.
A decisão de revogar a medida, que sequer deveria ter sido proposta, perfaz uma derrota vexatória do governo, que comprova na prática que, longe de ser mero problema de comunicação, há um problema político grave em jogo que é consequência direta da imposição de suas medidas neoliberais de ajuste fiscal, e isso afeta diretamente a imagem pública e credibilidade do executivo federal e seu ministério da economia. Graças à política do governo, a extrema-direita finalmente está conseguindo fortalecer a ideia de que Lula governa contra os pobres. Apesar da hipocrisia dessa denúncia vinda daqueles que defendem as exatas mesmas políticas econômicas, fato é que essa narrativa contribui para acirrar o desgaste da frente ampla petista entre as camadas mais pobres da população.
Na semana de uma ofuscada sanção presidencial da reforma tributária sobre o consumo que mantém os privilégios dos mais ricos, e ainda sem anunciar sequer um rascunho de uma reforma tributária sobre a renda que almeje reverter minimamente a proporção fiscal regressiva que há entre os contribuintes mais pobres – que verdadeiramente arcam com os ônus – e os contribuintes abastadamente beneficiados por incentivos e isenções fiscais, a tendência é que o governo se desgaste cada vez mais que anuncie medidas em âmbito arrecadatório. O fato de que o governo avance uma medida “técnica” que aumenta a fiscalização aos mais pobres ao mesmo tempo em que não tem nada a apresentar aos trabalhadores no que diz respeito a reformas tributárias progressivas é, com efeito, motivo suficiente para justificar a desconfiança popular. A seguir por esse caminho, o governo Lula contribui para municiar a extrema-direita e desacreditar a esquerda brasileira perante a classe trabalhadora.