'Formação, Camaradagem e Crise: Paralaxe, uma ausência que produz Algo' (GPP)

Além de propiciar a deformação de nossa forma organizativa em relação ao falso entendimento de seus princípios de direção coletiva e unidade de ação como exposto acima, o praticismo também produz evidentes consequências do ponto de vista da formação de nossos militantes.

'Formação, Camaradagem e Crise: Paralaxe, uma ausência que produz Algo' (GPP)
'O Avarento' obra de Carlos Drummond de Andrade do ano de 1968.

Por GPP para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

I. Introdução:

Camaradas, antes de mais nada, cabe aqui esclarecer o processo de feitura desta tribuna, junto dos últimos meses recheados de tarefas, passei essas útilmas 3 semanas realizando um levantamento bibliográfico dos mais recentes debates acerca da formação política em nossas fileiras, tanto publicadas nas tribunas do XVII Congresso, quanto minhas anotações acerca dos debates anteriores das tribunas publicadas para o IX Congresso da UJC realizado no ano de 2022, a fim de que as conclusões e propostas aqui expostas partam de um diagnóstico geral prévio e tenham um grau de generalização possível. Assim,  permitindo um processo de reflexão coletivo maior e uma aplicação objetiva destes apontamentos em nossas formações, debates e críticas, de modo que, coletivamente, possamos superar nossas atuais debilidades e avançar na construção científica de uma escola de quadros leninistas voltadas para a revolução brasileira.

Este exame inicial teve como resultado três textos, o primeiro enquanto uma análise crítica geral do estado de coisas que dividi em dois e público nesse fim de ano. Essa é a primeira parte dividida em duas tribunas e a segunda parte  de uma proposta mais encaminhativa-descritiva acerca de um novo sistema nacional de formação de quadros. Desta maneira, com este primeiro levantamento, leitura e fichamento de tais textos, gostaria de compartilhar algumas conclusões iniciais que possam servir como ponto de partida para os debates acerca de um Novo Sistema Nacional de Formação Comum para a UJC e PCB, em seu conteúdo, forma, aspectos constitutivos e conteúdos obrigatórios que devem constar neste sistema.

Enquanto um novo Sistema Nacional e formação, precisamos pensar em termos diretivos que implementem um plano concreto de formação de quadros, pensando formações específicas para cada local de atuação, mas também gerais que conformem um solo comum científico para nossa formação de quadros de cada militante. Assim, superando, encaminhamentos abstratos de “formar quadros”, “profissionalizar militantes", mas sem nunca debater para o que, como e em sentido.

Porém antes disso, gostaria de registrar um elogio a iniciativa da publicação das tribunas preparatórias do XVII Congresso, além de agirem no sentido de aprofundamento teórico dos debates, estímulo à formulação de nosso militantes e portanto combate a ruptura entre trabalho prático e trabalho teórico (concepção e execução da prática), podemos constatar também que age em um sentido muito importante de registro da memória dos militantes que hoje passam por esse processo histórico do racha de 2023, um momento tão doloroso para todos nós, mas que ao menos possuímos um instituto de compartilhamento de experiência e balanço consciente aliado a um exame crítico rigoroso de onde acertamos, mas principalmente onde erramos, quais nossos erros e que possamos superá-los também como parte de processar essa dor, como disse a camarada Natascha Cohan em sua tribuna “Precisamos falar sobre essa dor”:

“Nada melhor do que poder falar sem medo. Sem medo de ser perseguido, diminuído, isolado politicamente (...)  É saber que poderão lhe refutar, que talvez você não saiba tanto assim sobre algo como julgava saber, mas sobretudo, falar é saber que tem outros que te escutam. Isso pode ser muito libertador psiquicamente, num ambiente que acolhe” (COHAN, 2023, p.6)

Sou da cidade do Rio de Janeiro e em meu processo de estudo e levantamento dos debates realizados nas redes pré-abertura das tribunas, desde o momento de explosão da crise no dia 16/07 deste presente ano um dos aspectos que apareciam em muitas discussões se dá em relação a preservação da memória de luta da tradição comunista no Brasil em sua vasta riqueza e diversidade de frentes de atuação, mas que sequer tínhamos acesso à este acúmulo de lutas, considerando ainda nossa deficiência acerca da construção de um instituto de preservação da memória militante do nosso partido.

Tendo em vista que, um contingente muito diminuto da nossa militância teve a oportunidade da apropriação teórico-prática deste legado histórico das lutas comunistas no Brasil, o que implica evidentemente na necessidade de aprimoração de uma formação científica acerca da história das lutas dos comunistas junto ao povo brasileiro, enquanto um elemento essencial de qualificação da nossa prática, mas também na preservação da memória dos nossos e que precisamos pensar coletivamente também esta dimensão da crise, de modo que nos termos de Ademar Bogo em seu texto Política de Formação e Projeção de Quadros:

“Toda organização política deve ter claro que o processo de formação de um quadro depende de três aspectos fundamentais, a saber: o programa de formação, a política de quadros e a colocação destes nas atividades concretas. - Ademar Bogo, Política de Formação e Projeção de Quadros” (BOGO, 2020, p.4)

Este aspecto da memória nas lutas de classes merecia um documento ou tribuna à parte e portanto não o desenvolverei aqui dado a abrangência teórica e histórica do tema, me detendo exclusivamente à necessidade de nossa formação política, mas deixo registrado a importância deste debate em nossas fileiras, visando a profissionalização dos nossos trabalhos enquanto aspecto constitutivo de aprofundamento da reconstrução revolucionária. Desta maneira, feito a introdução metodológica, também penso em tornar este documento uma tribuna, de modo que nossas experiências locais e acúmulos possam servir como base para debates e superação problemas em outros locais de atuação.

II. Desvio e Formação:

Dois fatores principalmente me deram a vontade na escrita desse texto, um vindo do estudo teórico e outro da experiência prática. Em primeiro lugar, desde que eclodido a crise, um aspecto também muito me chamou a atenção, no que diz respeito a pobreza teórica, indo inclusive ao rebaixamento político da pessoalização de ataques e individualismo metodológico sobre que em segundo lugar, infelizmente nesta operação já deslocam do terreno científico do materialismo histórico-dialético, para o moralismo infantil na análise da atual crise presente nas redes.

Nesse sentido, ficava me perguntando, “para onde foram as formações, camarada? Para onde foi o respeito militante e rigor científico que tanto prezamos enquanto pessoas que entendem o marxismo-leninismo, não enquanto uma ideologia, mas enquanto uma ciência da prática?” Nas amostras selecionadas que compilei, a fim de melhor entender os debates ao longo da crise, fica parecendo, como bem ressalta o camarada Bruno dos Anjos em seu texto ‘Sobre a criação de uma intelectualidade popular e revolucionária’ que:

“Muito de teoria pode ter sido lido e escrito por essas pessoas, mas quando se exige uma resposta imediata para uma situação de urgência, o materialismo histórico e dialético é jogado pela janela." (ANJOS, 2023, p.9)

Neste aspecto há duas outras situações que podemos distinguir, há aqueles que de fato agem de má-fé intencionalmente visando arrastar o debate do conteúdo político da crise para o pantamo do oportunismo e do moralismo, mas há também camaradas que, ao meu ver, honestamente cometem erros crassos de caracterização, vulgarização de conceitos e aplicação desastrosas de categorias tão importantes para a tradição marxista-leninista, que obrigou até o camarada Andrey a publicar um texto sob o título de “O que é Ala, Fração e Tendência na Tradição Marxista-Leninista?”, a fim de tirar os espantalhos da sala nos debates.

Uma tentativa preciosa de sistematização de debates complexos acerca da forma organizativa leninista resultando em um texto brilhante de síntese, mas que infelizmente se prova insuficiente dada as raízes mais profundas desse afastamento longínquo da cientificidade em muitos debates travados acerca da atual crise do PCB. Além do oportunismo daqueles que agem de má-fé, uma das raízes da dificuldade na compreensão política acerca da atual crise reside na negligência ativa na formação sistemática e científica de nossos militantes sob o marxismo-leninismo.

Um dos principais argumentos apresentados pela ala direita[1] dos que ficam no PCB-Formal e inclusive, de alguns presentes no que vou denominar como “centro honesto”,  é que não se poderia rachar para não perder os trabalhos políticos. Esse tipo de afirmação pueril pode ser analisada sob diversos ângulos que em uma análise mais geral me dedicarei a tratar sobre este aspecto em outro texto que já estou escrevendo. Porém, para fins de formação política, o que mais me chama a atenção neste tipo de argumento é a separação entre formulação e execução de tarefa, a partir da noção vulgar que :”a crise e os temas gerais destas deixa para os estratos superiores camaradas que temos tarefas para serem tocados”. Uma concepção que não só aprofunda a divisão entre trabalho teórico e trabalho prático, mas que é desdobramento de um desvio notório[2] ainda no PCB, na divisão entre formuladores e executores, isto é, a criação de 2 tipos de militantes: o militante que pensa e tem poder para pôr suas formulações em prática e o militante de 2ª classe que executa e quando tem sorte pode produzir algumas críticas para seus dirigentes sentarem em cima destas nas instâncias superiores, sem sequer encaminharem uma devolutiva que sane suas ponderações. Em um grau de generalização, a direção formula e sua base segue e referenda.

Além disso, muitas vezes em nosso dia a dia militante, nos deparamos com situações em que as formações, principalmente durante períodos eleitorais e do movimentos estudantil, eram secundarizadas a fim de dar prioridade para estas tarefas imediatas, mas que acabava por impactar muito negativamente a formação de nossos quadros. No caso concreto do meu estado, a crise do partido se sucedeu no mesmo período em que fomos atravessados por períodos eleitorais de DCE, DAs e CAs. Neste contexto objetivo é que também surge o supracitado argumento que: “não podemos debater isso agora camaradas, pois levaria a perda de trabalhos, estamos acumulados desses trabalhos e não podemos deixá-los cair”, mas sem uma análise rigorosa dos caminhos que nos levaram à esse estado de coisas  e nada se construiu de consenso, unidade de ação ideológica e análise sobre um aspecto e processo que passava a atravessar toda dinâmica de nossa militância.

Nos termos ressaltado por Nath na tribuna do camarada N. Sanchez sob o título de ‘O Partido e o Sujeito Coletivo: notas de um debate sobre Formação Política’: “atropelam tudo por cima da Formação Política(...)não podemos cair no erro de tocar mecanicamente tarefas e esquecer da nossa formação enquanto militantes” (NATH, 2023, p.8-9)

Deste modo, eu pergunto para os calculadores: quantas vezes vimos camaradas quebrarem, as tarefas sobrecarregarem-nos e os trabalhos se perderem justamente pela forma que as coisas eram conduzidas até aqui? quantas vezes uma formação poderia evitar a perda desses trabalhos e qual seu efetivo papel (ou da ausência dela) na produção do quadro geral de quebras, sobrecargas e perdas? Em minha avaliação, foi um fator determinante, que inclusive ensejou dos mais diversos desvios entre nossas fileiras e que poderiam ter sido prontamente resolvidas caso estivéssemos executando uma firme política nacional de formação prática e teórica de nossos camaradas para o momento de maior fluxo das lutas de classes.

III. Paralaxe e o Praticismo:

Entre estes distintos desvios e vícios resultantes da negligência com a formação, destacarei um, o praticismo, que nos aparece enquanto uma paralaxe, isto é, uma ausência que produz algo. Nesta análise, focando em duas de suas consequências prejudiciais para a construção de longo prazo de uma organização comunista. Em primeiro lugar, o praticismo (ou prática pela prática) pode ser caracterizado em uma dimensão inicial no menosprezo pela teoria científica na nossa formação militantes, prática política e práxis comunista. Deste modo, baseado naquela noção vulgar que “o que importa é irmos à prática”, mas sem saber como, para onde e por que? Em talvez uma de suas obras fundamentais, “O que fazer”, Lenin dedica logo seu primeiro capítulo na denúncia acerca da negligência com a teoria presente nos círculos sociais-democratas e socialistas revolucionários da Rússia de 1902. Neste contexto, o autor denuncia que a não-compreensão acerca da importância pelo trabalho teórico nesses círculo estudantis e operários, propiciava as exatas condições necessárias para a manifestação e crescimento do filisteísmo, o cretinismo parlamentar, o rebaixamento político e o oportunismo entre estas organizações, mais alguns anos a história comprovou sua tese.

Desta maneira, baseado no acúmulo científico-empírico deste revolucionário não mais precisamos e nem podemos errar por esse caminho, pois grandes pensadores já demonstram quais ruas são pavimentadas pelo desapego com a ciência revolucionária e não são os caminhos da revolução, mas sim, o da reforma e do oportunismo. Em outro plano, no contexto da crise, o praticismo se manifesta por exemplo em afirmações como essas acima, de que “não podemos debater isso agora, temos tarefa para tocar, não camarada debates sobre isso quebram nossa unidade agora”, quando na realidade a falta de um debate que esgote o tema e ouça todos os pontos de vista no interior do partido revolucionário foi o que se demonstrou pela história que fraturou de morte a nossa unidade de ação e ensejou a desconfiança entre as bases de suas direções, de modo que: “A concepção da organização comunista é tratada como questão técnica, ao invés de uma questão intelectual. Tudo se reduz ao fazer mecânico” (SANCHEZ, 2023, p.5)

Nesse sentido, cheguei a ouvir relatos no Rio de alguns camaradas que durante a cisão diziam: “alguns só estão debatendo a crise internacional e o PMAI, pois não tem um DCE para tocar”, que manifestação mais exata do rebaixamento político e pequenez produto do praticismo instalado em nossas fileiras se não essa. Além de propiciar a deformação de nossa forma organizativa em relação ao falso entendimento de seus princípios de direção coletiva e unidade de ação como exposto acima, o praticismo também produz evidentes consequências do ponto de vista da formação de nossos militantes. Por exemplo, ao relegar uma importância diminuta para a formação, objetivamente não forma com qualidade nossas bases para a participação ativa de temas centrais das lutas de classes no século XXI, como por exemplo na luta ambiental, anti-racista e a agudização que será cada vez mais frequente dos conflitos interimperialistas. Enquanto um efeito paralaxe, a falta de uma política adequada de formação de quadros, produziu exatamente uma negligência com a ciência de questões centrais que devem ser debatidas pela nossa militância e estão mexendo com partidos comunistas pelo mundo inteiro.

É possível identificar também uma notável subestimação da capacidade crítica e de formulação das bases dos problemas que vivenciam no dia a dia a crise, como, por exemplo, denunciado principalmente nas duas primeiras semanas da crise, que não poderia-se discutir o PMAI, pois é um assunto complexo demais de políticas internacionais e que somente a instância que teria poder para fazê-lo seria o Comitê Central do PCB, então deixe-se para o CC. Sendo que na realidade é direito de qualquer militante do partido discutir em sua célula ou núcleo uma resolução, texto, documento ou publicação em nossas redes, pois afinal de contas diz respeito ao nosso partido que estamos vinculados organicamente, que construímos no dia a dia e que portanto não só temos um compromisso para qual ele, mas ele para qual nós.

Imagine que, hipoteticamente, um candidato do Partido saia candidato ao governo do Estado do Rio e em seu programa e propagandas proponha a criação de policias e reforma da PM, não só indo contra suas atribuições, mas contraraindo o acúmulo do Coletivo Negro Minervino de Oliveira, da UJC e onde compomos a luta nos distintos locais de atuação que sobre a questão da segurança pública e a guerra as drogas no Estado do Rio de Janeiro. Nesse cenário, não poderia-se puxar como ponto de pauta da próxima reunião um balanço da proposta e a construção coletiva de uma crítica com garantia de acolhimento do documento e resposta escrita da instância encaminhada? Esse tipo de proteção a crítica e autocrítica, enseja as condições propícias para a manifestação do oportunismo no partido, infelizmente contribuindo para a falta de amadurecimento político do partido e protege interesses da divergência interna dos estratos superiores de terem de ouvir suas bases. Além de tornar o partido imune ao aprendizado coletivo.

Esta subestimação das bases acerca de sua capacidade de formulação não encontra respaldo teórico no terreno do marxismo-leninismo, mas somente do oportunismo. É uma pena, esses senhores entenderam o marxismo não como uma ciência, mas com uma ideologia, um tratado de princípios políticos e manual de etapas A, B e C e não como uma ciência da prática e calcada na rigorosa análise concreta da realidade concreta, é de fato uma pena, uma vez que essa subestimação carrega consigo uma série de consequências, que entre elas não são mais possíveis de serem resolvidas no seio do partido, pois na medida que  se expulsou as divergências e blindou as camadas acima, foram bloqueadas de serem. Em suma, conforme, ressaltado por N. Sanchez em sua tribuna supracitada, de fato: “o praticismo é a mortalidade da organização logo na primeira infância” (p.9)

IV. Trabalho Manual e Trabalho Intelectual do Partido:

Em seus estudos sobre a escola fabril e o americanismo, Gramsci traz apontamentos acerca das mudanças que a forma de organização da produção fordista trouxe para o modelo de educação, principalmente acerca do aprofundamento agora no cotidiano produtivo entre a cisão do do trabalho intelectual e trabalho manual. Tendo em vista, que nessa forma de organização, com a separação entre produtores e produção se expropria não só os produtos de seu trabalho, mas também se aliena a totalidade do que está se produzindo, reduzindo os trabalhadores à uma etapa específica do processo produtivo, se expropriando deles também a concepção antes tida do todo do que está produzindo.

Desta maneira, se divide também a capacidade da concepção capturada pelo capitalista em conceber quando, em que tempo, que tipo e quantas mercadorias serão produzidas no processo de trabalho, isto é, a captura da concepção e a cisão entre trabalho intelectual e trabalho manual. Indo contra ao senso comum liberal da época que defendida explicitamente que haviam determinadas pessoas que nasciam com determinadas aptidões para servir e outras para mandar, Gramsci chega a conclusão ao identificar esse problema, acerca da identidade entre trabalho intelectual e trabalho manual, isto é,  todo trabalho possui dimensões teóricas e práticas e no cotidiano essas dimensões não se separam. Desta maneira, concluindo que se todo trabalho manual é também trabalho teórico, portanto todo operário pode ser um filósofo. Portanto, todo camarada, independente da posição que ocupe, pode e deve discutir os temas do partido, se formar sobre eles e debater a fim de que possamos chegar a novas sínteses, basta nós termos uma política séria de formação científica de nossos quadros.

Em uma análise das planificações à curto, médio e longo prazo toda tática deve estar subordinada à uma estratégia, portanto deve estar conectada por uma série de elos na conclusão de um objetivo final, que em um partido revolucionário, é fazer a revolução. Ao contrário do que o praticismo prega concretamente não estamos formando com o devido rigor leninista nossos camaradas, tocar por tocar tarefa sem ter vistas ao contexto geral que estamos inseridos nos descola do conteúdo político de um partido revolucionário, pois a prática pela prática despida da teoria é cega, assim como a teoria sem a prática é inócua.

No nível de abstração imediato do cotidiano, tocar tarefas por tocar sem a devida formação enseja vícios e desvios como o culto ao tarefismo e o oportunismo, seguindo o quadro identificado por V. Lenin. Tal culto ao tarefismo prejudica a construção de longo prazo de uma organização revolucionária, uma vez que o praticismo, isto é, a prática pela prática, não diz para onde tal prática deve apontar, isto é, a pergunta que devemos nos fazer principalmente neste momento de crise: “Como o que faço hoje, aponta para a construção da revolução brasileira?” Por isso, o praticismo despido de um horizonte teórico que amarre e dê sentido ao militante de por que executar aquela tarefa naquele momento e sua conexão tática com a estratégia maior da construção do socialismo brasileiro somente produziu o rebaixamento político de nossa organização e aprofunda a divisão entre executores e formuladores. Tendo em mente que como disse um sábio russo na história do movimento dos oprimidos: “não existe movimento revolucionário sem teoria revolucionária” (LENIN,p.39) que fundamente a execução destas tarefas.

Como pudemos constatar na experiência prática cotidiano de militância dos organismos de base da UJC e do velho PCB, a formação de nossos quadros seja no partido ou juventude foi explicitamente e conscientemente secundariza a fim da priorização das ditas “tarefas práticas”[3], principalmente em contexto de movimento estudantil, de modo que segundo este argumento não prejudicasse a operatividade do núcleo, especialmente em momentos de grandes fluxos de militância como as eleições de DCEs, D.As, C.As, realizando inclusive giros de núcleos de bairro visando a execução dessas tarefas. Contudo, o que a prática nos revela é que na realidade a ausência da formação prejudicou a operatividade dessas tarefas, seja no rebaixamento político da linha, nos debates e na execução dessas tarefas.

Este problema crónico de formação enseja desvios em múltiplas dimensões, entre elas atravessa nossos recrutamentos e cria a falsa sensação de que precisamos de um número excessivo de reuniões de recrutamento a fim “filtrar” quem entra, mas podem ter certeza camaradas, podem fazer 10 reuniões de recrutamento se nossa formação for um lixo, nossa formulação e prática por consequência também o será. Enquanto negligenciarmos nossa militância e cultivarmos o praticismo e filisteísmo entre nossas fileira, continuaremos negligenciando o aspecto tão ressaltado por Lenin (O que fazer, 1903, Capítulo 1) da importância do trabalho teórico e da luta ideológica na ação dos comunistas: “Marx aos dirigentes do partido -, então que se façam os acordos para atingir os objetivos práticos do movimento, mas não se permitam o tráfico com os princípios nem se façam “concessões teóricas” (LENIN, 1903, p.39)

Nossa formação é o metal de nossa espada, caso nossa formação for ruim, infelizmente nossas armas de investigação e intervenção comunista na realidade também o serão. Além disso, ela já se inicia na agitação e propaganda que externaliza as ideias do partido para a classe, que busca formas de lutas e compreender esse sistema visando sua transformação. Por isso, que tanto a nossa formação, quanto agit&prop precisam ser pensadas do ponto de vista de seu êxito e avanço técnico-científico, levando formação e publicização de alta qualidade para o conjunto da nossa classe. Conforme ressaltado por Sanchez: “Mas algo tem de verdade em afirmar na UJC a certeza de que nunca alcançará o objetivo final caso mantenha sua incompetência formativa” (SANCHEZ, 2023, p.17) E essa incompetência formativa tem nome, uma negligência ativa que produziu algo e não foi o estilo de trabalho revolucionário, mas sim o estilo de trabalho oportunista.

V. Formação, Camaradagem e Pertencimento:

Em termos gerais, os desvios acima analisados, além de difundirem uma visão libeal entre nossa militância que divide trabalho prático x trabalho teórico (execução e formulação), esse movimento rompe nossa própria unidade da práxis, portanto aprofundando a ruptura entre trabalho manual e intelectual entre em nossas fileiras. No plano organizativo, o praticismo acaba degenerando o princípio político de direção coletiva dos trabalhos, aumentando a cisão entre quem formula e quem executa a política, contribuindo em um plano agora de análise subjetivo para o não-pertencimento dos militantes, na medida que não se sentem parte desse processo político e parte das pessoas que constroem as soluções deles, nem que da parte de sentir escutado,como na atual crise do partido. Por exemplo, como lembrado por Sanchez no sentido de que:

“as atividades práticas não fazem sentido e não são percebidos em essência, acarreta ao conjunto de militantes uma relação imediata de Alienação. Quando o trabalho a ser executado desvincula-se do processo de construção consciente do Militante (um Ser sem Consciência), o Militante é desvinculado da sua própria relação existencial para e como Sujeito Coletivo.” (SANCHEZ, 2023, p.3)

Este tema exigiria uma outra tribuna e que a tribuna de Sanchez é interessante sobre, mas definitivamente camaradagem é muito sobre pertencimento, se sentir pertencente a essa organização e tradição política revolucionário que construímos e carregamos nos corpos todo santo dia. A organização tem efeitos objetivos em você ter uma rede de pessoas, segurança, visando a construção de determinado a fim, mas também subjetivos em se sentir pertencente, parte de algo e na construção de novos tipos de relações que apontam para o novo, seguindo os apontamentos do comunsita italiano, Antonio Gramsci:

“o operário fazendo parte do Partido Comunista, onde colabora a “descobrir e a inventar” modos de vida originais, “onde colabora “voluntariamente” na atividade do mundo, onde pensa, prevê, tem uma responsabilidade, onde é organizador além de organizado, onde sente que constitui uma vanguarda que corre adiante arrastando consigo toda a massa popular." (GRAMSCI, 2010, p.52-53)

Assim, quando este pertencimento não mais bate no peito de nossos militantes, temos um problema grave do ponto de vista político. Em um plano mais geral, na luta política cotidiano temos contatos com uma série de desvios de diversas forças políticas que afastam a população das construções políticas coletivas, alguns destes como o vanguardismo, dirigismo, hegemonismo, afastam justamente por que as pessoas não se sentem parte desses processos de construção, como se não construíssem as respostas com as próprias mãos, mas sim que outros externos a ele e com interesses que nem sempre correspondem com os seus, impactando diretamente o problema central da organicidade da esquerda.

Nos termos de N. Sanchez: “Em geral, as reclamações de que "tais militantes não fazem isso, não fazem aquilo" é na verdade a superfície de um debate muito complexo: o estado de inconsciência da Organização.” (p.5) .Dito isto camaradas, já somos alienados cotidianamente dos processos políticos, nesta crise de pessoas que entrei em contato durante o  processo de cisão, doeu principalmente quando viram as mesmas lógicas acontecerem no interior das organizações políticas.  Para Sanchez: “Sendo assim, é óbvio que nossa militância perde sentido no seu trabalho, está Alienada dele. As tarefas ganham um caráter absurdo, um caráter de Sísifo. É todo dia um fazer sem ser para onde.” (SANCHEZ, 2023, p.11)

Em nosso país hoje, já vigora fortemente enquanto ideologia dominante a noção anti-partidarista que afasta as massas do instrumento político partidário, isto é, a forma-partido, que dessa tecnologia mais avançada para a conquista de reivindicações e a tomada do poder político. Tal ideologia conservadora, que desarma a nossa classe, principalmente nos momentos que elas mais precisariam dessas tecnologias de luta afasta o povo da grande política, deixando somente para os poderosos a resolução dos grandes problemas, pois como ressalta Gramsci é definitivamente uma grande política reduzir a política geral ao império da pequena política. Para o autor, definitivamente é uma grande conquista das classes dominantes afastar os explorados de uma arma tão poderosa, como a organização. Contudo, a ideologia anti-partidarista e anti-organizacional é um fato infelizmente até em certos meios de esquerda, mas como combatê-lo?

Durante muito tempo pensei sobre isso e talvez um caminho para romper a apatia, a indiferença e o imobilismo seja justamente, construir novas formações de relações políticas, marcadas justamente por esse sentimento de pertencimento que é a camaradagem, como ressalta Jodi Dean. Nesse sentido, rompendo com a cultura política das respostas prontas e reuniões que mais parecem teatros de informes e saudações, do que espaços deliberativos que debatam as verdadeiras demandas do povo. Assim, um caminho que vejo é justamente devolver o partido nas mãos do povo, em uma construção ativa não pela as massas, mas com as massas, ombro a ombro da nossa classe e definitivamente nesse caminho a formação política tem um papel imprescindível na massificação do partido e das massas como um ator político determinante das grandes transformações deste país.

VI. PCB e o destino editorial do Marxismo:

No entanto, é importante reconhecer que foram os comunistas do PCB que foram responsáveis na curta e longa duração histórica pela massificação e popularização do marxismo-leninismo, isso é um fato. Foi no velho PCB que se propiciou as condições para a chegada das primeiras traduções do Manifesto do Partido Comunista de Marx em 1922, sendo que que o Manifesto é publicado em mais 50 línguas durante a vida de Marx e Engels, com sua primeira publicação em fevereiro de 1848. Entretanto, chegando ao idioma de nosso país somente mais de 70 anos após a primeira publicação que inaugura para os proletários do mundo o socialismo científico. Com o capital Livro 1 a história foi pior ainda, com sua primeira publicação no alemão sendo feita em 1868 (10 anos após da data que Marx tinha marcado de publicar, pois sempre atrasava), mas tendo uma primeira publicação de qualidade em portugues brasileiro no ano de 1968 com a editora Civilização Brasileira. Foi o PCB que propiciou as condições concretas de uma intelectualidade militante de tradutores, redatores e publicistas para a expansão e capilarização das ideias marxistas durante as décadas de 20 até 80.

Enquanto isso, no século XXI, após o racha de 1992 e o duro golpe da derrubada da URSS em 1991, foi o PCB que resistiu ao doloroso período, mantendo um partido comunista ativo, o que não é pouca coisa dado o contexto histórico crítico, mesmo que em fase de reestruturação, mas também de um ambiente cultural de produção marxista no Brasil nas mais diversas publicações. Foi nesse partido em nossa história recente que se produziu o que de mais criativo ao meu ver do marxismo brasileiro, foi produzido e se formou uma geração de agitadores e propagandistas que foram cruciais para o crescimento inegável do partido em diversos Estados de nosso país e foi nesse partido que dado esse ambiente em algum momento nos sentimos acolhidos, pertencentes a uma cultura política maior e confortáveis de militar, mesmo que as coisas não mais o são assim.

O nosso velho PCB em sua história produziu do que há de mais criativo tanto do pensamento social brasileiro, mas também do ponto de vista de rica tradição teórica. Uma pena que grande parte disso ficou confinado nas academias burguesas e seus departamentos e programas de pós-graduação, pois ao menos na história recente, infelizmente nunca tivemos uma política exitosa e centralizada de planejamento e desenvolvimento de nossa formação de quadros e publicização dos acúmulos e ideias do partido para as grandes massas proletárias do nosso país. Nesse sentido, está na hora de pôr em curso a tarefa histórica de socializar esse acúmulo científico com as grandes e amplas massas do proletariado brasileiro. Este processo implica considerações sérias sobre nossa agitação e propaganda, do ponto de vista de nossa forma organizativa e aprofundamento do centralismo democrático, assim como o rompimento da dicotomia entre trabalho prático e trabalho teórico entre as nossas próprias fileiras.

VII. Por um Novo Sistema Nacional de Formação de Quadros Revolucionário e Proletarizado:

Para por fim a esse efeito paralaxe, em que a ausência de uma formação política acaba por produzir um modus operandi e estilo de trabalho não-consciente dos processos políticos é necessário a construção de um novo SNFP, em um plano concreto que reestruture nossa sistema de formação de quadros  a nível nacional, pois como afirma Sanchez: “Nossa Organização jamais poderá desenvolver os seus quadros, se não existir uma diretriz (a política de quadros) e colocação dos quadros.”(SANCHEZ, 2023, p.6). Desta maneira, é necessário que seja traçado diretivas claras direcionadas a cada local de atuação, visando o enraizamento da formação e recrutamento de quadros, dos próprios setores estratégicos assinalados por nossas resoluções políticas.  Não estamos construindo acadêmicos, mas sim revolucionários e portanto nossa formação deve ser direcionada para isso.

Dito isto, sem um planejamento e acompanhamento da formação de quadros, tal era no  Velho PCB, a prática demonstrou que este efeito em que ausência produz algo construiu não o estilo de trabalho revolucionário, mas sim a pequenez do oportunismo. Sendo assim, precisamos romper com este estilo de trabalho da negligência, visando uma formação que ligue o trabalho teórico com o trabalho prático. Caso de fato seja verdadeiro, o que postula Sanchez que: “A Formação Política é, sobretudo, uma pasta que desenvolve o exame e a organização do estado de Consciência da Classe.” (SANCHEZ, 2023, p. 21) Então precisamos, urgentemente de uma reformulação de nosso sistema nacional de formação política, visando o enraizamento no proletariado e seus aspectos constitutivos do povo brasileiro, isto é, a questão racial, a luta lgbt, a luta feminista, os debates do meio ambiente, os setores precarizados e informais da classe trabalhadora. Serão estes setores explorados e oprimidos que farão a revolução brasileira e são estes a nossa tarefa histórica de recrutar, formar e organizar camaradas.


[1] - Esse próprio termo “ala direita” foi muito mal compreendido pelos que ficam do lado de lá, moralizando a cateogria, com um falso entendimento de que caracterizá-los dessa maneira seria o equivalente a dizer que um camarada da ala direita teria a mesma posição na lutas de classes que um sujeito de direita no espectro maior da sociedade brasileira, um entendimento tão pueril e miserável de rigor teórico só poderia ser resultado de um enfraquecimento da nossa formação política coletiva. Contudo, emprego este termo aqui e acredito que tais categorias de melhor chave explicativa para a crise (Ala, fração, etc) ainda não são consenso entre nós e merecem uma análise geral da crise que já me dedico escrever em outro texto.

[2] - Esta reclamação foi presente tanto em plenárias, debates nas redes, quanto expresso em diversas tribunas preparatórias coletadas em meu levantamento bibliográfico.

[3] - O que nem sempre implicava as tarefas do plano cotidiano, como reivindicação das demandas das bases que atuamos ou politização das mesmas, porém este aspecto exigiria uma análise mais ampla.


Bibliografia:

  • Anjos, Bruno. Sobre a criação de uma intelectualidade popular e revolucionária. Disponível em: < https://t.me/pcb_rr/197 > Acesso em 13 de Outubro de 2023.
  • BAQUERO, Marcello; LINHARES, Bianca. Por que os brasileiros não confiam nos partidos? Bases para compreender a cultura política (anti)partidária e possíveis saídas. Revista Debates, v.5, n.1, 2011. Disponível em: < https://seer.ufrgs.br/debates/article/view/20058 > Acesso em 18 de Outubro de 2023.
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