'Fim da Polícia (só militar?): A luta dos comunistas contra a estrutura do Estado burguês' (Mateus Filgueira)

Contra a burguesia não destacamos um ou dois burgueses, mas sim toda a classe, e com a polícia não seria diferente: não é sobre o quão um policial oprime individualmente, mas sobre o papel (enquanto instituição burguesa) da polícia.

'Fim da Polícia (só militar?): A luta dos comunistas contra a estrutura do Estado burguês' (Mateus Filgueira)
Não é novidade para ninguém que mesmo em países que não possuem polícias militarizadas, estas cumprem o mesmo papel de opressão, violência e genocídio da população, sobretudo a população negra.

Por Mateus Filgueira para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário

Bom camaradas, começo destacando que não possuo tanto acúmulo teórico sobre o assunto. O pouco que sei da temática provém de leituras ocasionais, sobre o estudo do Estado e aparatos jurídicos-mercadológicos que ele precisa para se perpetuar, parte porque meu TCC se debruça sobre isso e parte porque sempre tive interesse no tema.

Queria ter escrito sobre isso há muito tempo, mas sempre me limitei ao embasamento teórico que eu precisaria ter, mas as violências policiais crescentes em todo o Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, sobretudo a morte de crianças e de Mãe Bernadete no último mês e a jornada contra violência policial no dia 24/08 demonstram a necessidade de avançarmos na pauta, se nos colocamos como uma organização que luta verdadeiramente contra as opressões e contra a estrutura burguesa que legitima tais opressões.

As tribunas estão majoritariamente se debruçando sobre questões organizativas internas, o que é fundamental para reconstrução do nosso Partido, mas para o XVII Congresso do PCB acho de extrema importância que debatemos como projeto político o FIM DA POLÍCIA. Não apenas lutar contra a militarização da polícia (isso deve ser uma mediação tática no processo), mas pelo fim da instituição policial. Não é novidade para ninguém que mesmo em países que não possuem polícias militarizadas, estas cumprem o mesmo papel de opressão, violência e genocídio da população, sobretudo a população negra.

1) HISTÓRIA DA POLÍCIA

1.1) Como surgiu a polícia

A instituição policial é recente no mundo. Até o século XV, a segurança era feita a partir de guardas pessoais, vigilantes, milícias, justiceiros, mercenários, mas principalmente o exército. Estes “setores de segurança” eram a extensão de seus reis/faraós/czares/senhores feudais/etc., não estavam ligados de forma alguma à algum conceito de segurança ou dever público. Foi na Europa, com o declínio do feudalismo, que surgiu a forma organizativa mais próxima do que temos hoje.

No passo que o feudalismo morria e os feudos e reinos caíam, os burgos e cidades se desenvolviam e cresciam exponencialmente; nesse contexto criou-se uma nova estrutura de segurança e administração das cidades que se dava através da polícia. Não à toa, o termo “polícia”, “cidade” e “administração pública”, possuem a mesma raiz etimológica: a “pólis”.

A Europa, principalmente França, Alemanha e Inglaterra começam então a estruturar uma nova ordem social, tendo como bandeira principal o rompimento com as opressões do mundo feudal; propagandeavam os homens livres de seus senhores, a quebra das autoridades feudais enfim, liberdade individual. Liberalismo clássico.

A “propaganda libertária” vem acompanhada de uma propaganda contra a desordem social e é nesse ensejo que a polícia começa a tratar de controlar a ordem pública - nos limites da liberdade permitida por essa nova classe dominante.

Na época, a polícia era responsável por fazer a administração pública, entre suas tarefas: fiscalizavam códigos de vestimenta, fiscalização de alimentos e vinhos, cobrança de despesas públicas, manutenção de estradas e, claro, o comportamento social das pessoas. Nessa forma de administrar as cidades, também recaiu à polícia a responsabilidade geográfica das cidades, mantendo as divisões de classes e controlando o acesso a cidade por parte da população. Enfim, a polícia era (e é!) uma estrutura para controle do Estado (e consequentemente, quem nele vivia/vive). É notório que a polícia surge então para manutenção do capital, perpetuação da burguesia e do Estado burguês.

É também com o correr deste período que surgem as lutas por melhorias de trabalho e garantias humanas e começam as organizações e lutas de trabalhadores. Rapidamente, o dever de ordem social desempenhado pela polícia é condicionado ao dever de segurança. Isso porque a propaganda da época (e dos dias de hoje) é igualando a luta dos oprimidos ao caos social, à falta de segurança e etc. Desde aquela época, era criminalizado a classe trabalhadora (sobretudo as pessoas não-brancas, estrangeiros e LGBTs da época).

Mais do que nunca, além de garantir o capital, agora a polícia passa a defender a propriedade privada nas lutas do proletariado, e só então começa a propaganda de que polícia protege, serve e assegura, não somente as fábricas dos patrões, mas também o “trabalhador do bem” (aquele que não está nas ruas, aquele que não faz greve e etc.).

A polícia não foi, nem nunca será, um agente revolucionário. A polícia desenvolveu um papel fundamental na implementação do governo da classe burguesa; ela foi seu braço direito, esquerdo, corpo e alma para que o capitalismo chegasse na forma como está hoje.

1.2) A polícia contemporânea

A polícia nesta estrutura como temos hoje no Brasil e no mundo surge como um movimento contra-insurgente. Com o fim da segunda guerra, o acirramento da guerra fria, a queda da hegemonia europeia sobre o mundo, vários países, sobretudo colônias europeias na África, se levantaram e se organizaram por suas independências. A maioria delas apoiadas principalmente pela União Soviética.

Essa vacância de poder imperialista (que se concentrava em países europeus) nos até então países colonizados, exigiu dos Estados Unidos uma organização para conter o avanço da autonomia proletária, ainda mais quando esta autonomia vinha respaldada por comunistas revolucionários soviéticos. Por isso, a partir da década de 1950, a Agência Central de Inteligência (CIA) e o Pentágono estabeleceram, através da polícia estadunidense e do exército norte americano, um programa de treinamento de segurança interna para países aliados.

Esse projeto constou no treinamento e financiamento de diversas polícias para saberem lidar com a “questão de ordem pública”. Já disse, o objetivo final nunca foi reduzir a violência, reduzir criminalidade, proteger a vida das pessoas ou proteger os bens daquele trabalhador que comprou algo, a polícia foi estruturada para manter a hegemonia do capital, e nos dias de hoje, manter a hegemonia norte-americana. Isso porque os EUA, por conta própria, não conseguiriam minar os esforços revolucionários em todos os países do globo, mas conseguiria sim se adentrar nos países, pelo menos os aliados, treinando, equipando e financiando as polícias locais para que estas conseguissem controlar os levantes, revoltas ou dissidências.

Foi neste período que se iniciou nos EUA a propaganda de Guerra ao Crime e Guerra às Drogas, para propagandear a necessidade de militarização das polícias e justificar as crescentes violências policiais ao redor do mundo. Não diferente do que foi (e se mantém) no Brasil e no mundo.

Inclusive, parte do programa de treinamento de policiais, veio com auxílios financeiros em outras áreas também, o que forçou países emergentes, sobretudo do sul global, a aceitarem o treinamento de suas polícias em troca de relações comerciais e investimentos em seus países.

Mesmo com o fim da guerra fria, ainda nos tempos de hoje, essa estrutura de treinamento e financiamento permanece no Brasil e no mundo. O Brasil mais especificamente recebeu nos últimos anos alguns marcos de relações institucionais com o aparato policial internacional, como treinamento do FBI para “saber lidar” com os protestos contra a Copa do Mundo e Olimpíadas, a criação das UPPs no Rio de Janeiro, a comercialização de armas estrangeiras e, mais recentemente, parcerias tecnológicas, comerciais e armamentistas com Israel.

O que surgiu para administrar a ordem social de um novo mundo, evoluiu-se para conter o avanço comunista e hoje se instala em dois pilares: a luta contra o terrorismo e/ou a guerra contra as drogas. A polícia desde a sua criação serve para perpetuar o status quo de dominação e violência burguesa, sobretudo a dominação imperialista (a fase superior do capitalismo, como bem disse Lênin).

2) POR QUE A POLÍCIA EXISTE?

2.1) A polícia existe para garantir que a polícia exista.

A polícia existe para disciplinar a classe trabalhadora, sobretudo a pobre e negra. Essa disciplina é vendida às massas como proteção e segurança, mas na verdade é uma distribuição de insegurança, afinal, o Estado precisa de insegurança para legitimar sua luta pela segurança; por isso, a atividade da polícia está intrinsecamente ligada com o que ela está lutando contra, exemplo: a violência que a polícia gera, desencadeia mais violência; a droga que a polícia transporta, serve para a guerras às drogas, as prisões formam novos presos e etc.

2.2) A polícia trabalha no controle e perpetuação da classe trabalhadora como classe oprimida.

O capitalismo precisa de uma população disponível para vender sua força de trabalho em troca de um salário que o permita sobreviver (com muito custo) até o próximo salário. Esse exército de reserva precisa estar em abundância para que o próprio capital regule e determine o tempo de trabalho, salário e quem são seus trabalhadores e por quanto tempo. Mas para que haja este exército de reserva em abundância, o Estado, através de seu aparato jurídico, retira, impede e dificulta o acesso da classe trabalhadora ao próprio trabalho, à terra e aos meios de produção para que sejam dependentes da classe dominante. À polícia fica o papel de cão do Estado, se responsabilizando, através de seu poder coercitivo, zelar pela manutenção da ordem, nos termos dos interesses burgueses.

O mais óbvio para nós, acredito ser o entendimento de que a polícia serve como principal e fundamental articuladora de crimes, principalmente pela milícia que funciona à base de policiais em exercício ou por algum motivos afastados/reformados. Um armamento, uma munição e uma droga não brasileira (ou até as brasileiras) precisam atravessar ares, mares, rodovias e fronteiras, passar pela alfândega e postos de controles, subir o morro e ser distribuída para quem as vai utilizar. Basicamente, passa por todas as estruturas da polícia (Federal, Rodoviária, Militar, Civil e Exército).

Não obstante, o racismo na formação e treinamento das polícias, como cursos preparatórios para concurso público ensinando fazer câmara de gás lacrimogêneo no porta-malas, requisitos abstratos para abordagem policial, entre outros.

E a prática cruel de troca de tiros em horário de saída/entrada escolar, chacinas premeditadas, assassinato da juventude negra, morte de crianças, “confusões” de guarda-chuva com arma, carro interceptado com 80 tiros, flagrantes forjados, violências físicas, psicológicas e sexuais, a forma de abordagem diferenciada na favela e no condomínio do Bolsonaro, repressão de manifestações (excetos atentados ao 08/01 em Brasília) e etc. (lista quase infinita).

“A polícia não é sinônimo de paz social, de segurança e muito menos de aplicação da Lei. A polícia não aplica a lei ou responde a lei, na verdade a polícia cria a lei, em cada interação que ela faz; decidindo quem abordar, onde abordar, o que questionar, quem revistar, por que prender e quem ignorar [...] A polícia não aplica a lei, ela não existe pra isso, ela existe para manter a ordem, manter os status quo [de dominação, exploração, desigualdade social] através da violência e da ameaça de violência [...] É por essa ordem social que a nossa polícia mata, prende e morre [...] Quanto mais a polícia mantém a ordem, mais ela defende o capitalismo e a supremacia branca” (Igor Leone. Jornal Antijurídico).

3) TODOS OS POLICIAIS SÃO BASTARDOS (ACAB - ALL COPS ARE BASTARDS)

Do Brasil à Palestina, a polícia desenvolve o mesmo papel: controle da classe trabalhadora e de grupos étnico-raciais específicos; o que pode ser resumido em: a perpetuação do capitalismo. Mas será que todos os policiais são bastardos? Todos são ruins? Mas eles são trabalhadores?

Nossa luta nunca foi individualizada. Contra a burguesia não destacamos um ou dois burgueses, mas sim toda a classe, e com a polícia não seria diferente: não é sobre o quão um policial oprime individualmente, mas sobre o papel (enquanto instituição burguesa) da polícia. Não é sobre remover todos os policiais ruins e substituir por policiais bons e legais, não é sobre reformar a polícia, é sobre entender a polícia como um pilar do capitalismo e destruí-lo.

O trabalho da Polícia envolve repressão dos pobres, genocídio da juventude negra, encarceramento em massa, envolve guerra às drogas, reintegrações de posse, ataque a manifestações e movimentos sociais, flagrantes forjados, estupros, assassinatos, torturas e outros exemplos postos no tópico anterior, literalmente o trabalho da polícia envolve realizar todas as bandeiras que os comunistas lutam contra. Mesmo que tenha policiais que não tenham participado minimamente de nada disso, ele segue sendo cúmplice, e se nós como comunistas não pautamos romper com isso, perpetuamos essa cumplicidade.

Então, todos os policiais são bastardos? Se vemos a polícia como uma instituição, sim; se vemos de forma individualizada, também! Todo policial, por mais comunista que este seja, é limitado em seu papel institucional como agente do Estado e isso nos coloca em sentidos antagônicos na luta de classes.

4) PROPOSTA PARA O XVII CONGRESSO EXTRAORDINÁRIO

Camaradas, todo este longo texto, correndo o risco de ter “pregado para convertido” serviu para propor como um programa político do PCB, a luta pelo fim da polícia e como bandeira, para fins de mediação tática, o fim da polícia militar, aliados obviamente pelas lutas contra a violência policial, pelo fim da guerra as drogas e etc...

Lutamos pela mudança de consciência de bilionários? Lutaremos por melhores banqueiros? Ou teremos um programa de derrubada revolucionária do Estado capitalista e toda sua extensão? Ora, se a polícia é o aparato estatal de manutenção do Capital, e nos propomos a romper com o capital, por que não pautamos o fim desta instituição?

Por que para nós é mais fácil pensar no fim do Estado capitalista, e construir um estado gerido pela classe trabalhadora e com uma polícia civil boazinha à serviço do povo, e com um sistema judiciário progressista e leis avançadas do que pensar num mundo sem a necessidade de se ter a polícia, judiciário, prisões e ordenamentos jurídicos?

Tudo que hoje justifica existência da polícia – quando não perpassa por clara violência de classe – se dá como consequência das mazelas do capitalismo (seja um ladrão que adentrou ao mundo do crime pela ausência de amparo social na sua comunidade e por isso hoje comete roubos, seja manifestantes quebrando ônibus na Av. Paulista contra a corrupção e aumento da passagem em R$ 0,20).

Essa luta não pode ser lida como uma pauta pós-revolução e muito menos ser entendida que no momento da revolução isso “será resolvido automaticamente”; primeiro porque é justamente a polícia que aniquilará nossos trabalhadores e revolucionários e segundo porque até mesmo na própria União Soviética não era unânime o pensamento do abolicionismo penal nos termos levantados por Pachukanis (grande jurista soviético, membro do partido bolchevique).

Óbvio, camaradas, que não há possibilidade material de pensarmos agora num ordenamento jurídico pro Brasil socialista, mas como vamos verdadeiramente romper com o capitalismo se sequer conseguimos pautar o fim de um dos alicerces do capital?

5) REFERÊNCIAS

Como falei, não tenho referencias específicas para esta tribuna, mas recomendo algumas leituras (ordem aleatória, conforme fui lembrando): Badges Without Borders (Stuart Schrander); Teoria Geral do Estado e Marxismo (Pachukanis); Direito Penal e Luta de Classes (Daniel Almeida - das nossas fileiras e pela LavraPalavra); O Estado e a Revolução (Lenin); Curso Livre de Abolicionismo Penal (Edson Passetti); Penas Perdidas (Louk Hulsman e Jacqueline Bernat de Celis); Estarão as Prisões Obsoletas? (Angela Davis); Em Busca das Penas Perdidas (Eugenio Raul Zaffaroni); Limites à Dor (Nils Christie) e o canal no YouTube Jornal Antijurídico (Igor Leone).