‘Existe uma cultura partidária?’ (Leonardo Vinhó)
Esta cultura, portanto, precisa ser superada se desejamos avançar. As soluções para isso são diversas, não havendo um único mecanismo capaz de colocar fim a todos os problemas de uma só vez.
Por Leonardo Vinhó para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Como primeira tribuna, gostaria de começar saudando a iniciativa da Reconstrução Revolucionária, o espírito crítico das outras contribuições e do conjunto da sua militância. Em que pese todo o sofrimento e adoecimento que este processo vem causando - e que precisa de maior atenção do que vem recebendo hoje -, ainda assim emerge como saída para uma infinidade de gargalos e problemas contra os quais muitas pessoas não viam alternativa além da mudança “lenta, gradual e segura” até pouquíssimos anos atrás.
Considero o balanço da crise e dos problemas já maiormente realizado, subscrevendo ao Manifesto e a algumas outras análises pormenorizadas. Esta talvez seja a tribuna mais “abstrata” que me proponho a escrever, isto é, a menos encaminhativa. Ela serve para discorrer mais detidamente sobre um problema ainda pouco discutido nestas tribunas, e sugerir alguns princípios que deveriam nortear propostas futuras para sana-lo. Princípios que deveriam ser absorvidos pela própria Reconstrução Revolucionária como cultura política do seu corpo militante. Mas, como escrevo enquanto defesa de que estes princípios constem nas resoluções finais do XVII Congresso Extraordinário, venho promover sua defesa mais extensa.
Durante a sua exposição de alguns questionamentos acerca da condução do partido, o camarada Jones Manoel mencionou ter ouvido algumas vezes “É a nossa cultura política, sempre foi assim”. Para além do conservadorismo implícito nessa ideia, essa fala joga luz em um elemento: existe uma cultura partidária? Parece seguro afirmar que sim. E, embora não tenha sido a-historicamente “sempre” assim, alguns relatos dão conta de que talvez seja um pouco mais antiga do que podemos supor num primeiro momento. Já que ela foi invocada, tomemos tempo para nos debruçarmos sobre.
Hoje seus elementos estão mais perceptíveis, e ela não é senão a cultura do mandonismo; do federalismo; da falta de democracia substancial (para além da democracia formal, eleitoral) e de transparência; do tarefismo, fundado na divisão entre quem milita e quem estuda/formula; a cultura da fofoca nas mesas de bar. Acima de tudo, a “cultura” de ignorar regras estatutárias e criar novas ao gosto das direções, o que não pode ser considerado senão violações flagrantes do funcionamento do partido.
Esta cultura, portanto, precisa ser superada se desejamos avançar. As soluções para isso são diversas, não havendo um único mecanismo capaz de colocar fim a todos os problemas de uma só vez. Muitas já estão sendo discutidas com centralidade: Tribunas, plenárias, jornais e outros espaços de debate permanente são um bom começo para a ampliação da democracia interna e a correta aplicação do estatuto, além de fomentar um saudável espírito de crítica. Interessa aqui debater o elemento que talvez tenha recebido menos atenção direta, o tarefismo.
O tarefismo, ou praticismo, é a crença de que a função das direções é pensar e formular a política, enquanto a das bases é obedecer e executar. Posto dessa forma pode soar absurdo e parecer que não existe tal coisa entre comunistas, mas é exatamente o princípio de fundo quando se busca defender o erro de uma pessoa apelando para o trabalho militante que ela exerce em algum lugar, por exemplo. Quando se crê que um grupo tenha razão ou seja melhor apenas por ser composto de trabalhadores braçais, de “mãos grossas”, ou porque tocam mais tarefas do que as outras pessoas. Por trás disso está a concepção de que primeiro é necessário se desdobrar em mil atividades, se sobrecarregar, padecer dos problemas que isso acarreta, se martirizar o suficiente para se provar digno de estudar e, principalmente, de formular, de tecer críticas ao que quer que seja.
Uma divisão do trabalho militante como esta não se sustenta somente na força da ideologia tarefista, ela se enraíza nas contradições reais. Com a consolidação da indústria, emerge uma divisão social do trabalho de novo tipo, entre o trabalho manual nas fábricas e a intelectualidade técnico-científica para organizar e gerir esse trabalho. Posteriormente isto se desdobra cada vez mais em novas necessidades do capital, como formar professores universitários, que por sua vez formam diversas outras profissões especializadas.
Numa sociedade de capitalismo dependente como o Brasil, essa divisão não só existe como ainda é determinada por marcadores raciais, de gênero e de sexualidade. Esses grupos ocupam os postos de trabalho mais precarizados, são os mais atingidos por medidas de austeridade fiscal, as maiores vítimas de violência estatal e social, compõem os exércitos industriais de reserva, etc.
A invisibilidade desses grupos pode ser traiçoeira até para as boas intenções de esquerda, principalmente nas suas intersecções. No texto “A mulher negra no Brasil”, de 1995, Lélia González identifica que a paridade de gênero nas universidades brasileiras alcançada em 1975 mascarava a questão racial ao não discriminar etnias no levantamento. Com efeito, 83% das mulheres negras ocupavam postos de trabalho manual à época (percentagem de 92,4% para homens negros), contra 61,5% de mulheres brancas.[1] Ainda hoje essas estatísticas são esquecidas ou não contabilizadas em uma infinidade de espaços - inclusive nos movimentos sociais.
Evidentemente o partido não estaria livre de reproduzir essa lógica. Mas parar aí é apenas afirmar um truísmo para eximir responsabilidades. É responsabilidade de um partido revolucionário trabalhar coletivamente para romper desde já com essa divisão, identificando e superando suas causas na medida do possível. E, uma vez que é sobre esses grupos oprimidos que incide a forma mais brutal dessa divisão do trabalho, principalmente nas múltiplas determinações dessas identidades (mulheres negras, mulheres LGBTs, mulheres negras LGBTs, etc), é também a eles que devemos nos atentar.
Façamos um breve exercício de reflexão da realidade mais imediata. Quantas camaradas conhecemos por se destacarem na formulação teórica? Ou na condução das formações, estando ou não na respectiva secretaria? Quantas pessoas não-brancas? Quantas LGBTs? Quantas delas, em comparação tão comum com suas contrapartes masculina, branca e cis hétero, conseguem se dedicar aos estudos suficientemente para se afirmar lukacsianas, althusserianas, gramscianas, etc.? Pouquíssimas, principalmente quando não advêm dos cursos de humanidades das universidades públicas, onde ainda tomam contato um pouco maior com o estudo da teoria.
Entre 09/08/2023, data em que as tribunas foram abertas, e 10/09/2023, cerca de um mês depois, publicou-se 77 textos. Números relevantes, sem dúvida, e que sinalizam a existência de um ímpeto das bases em formular. Contudo: apenas três textos tratam frontalmente da questão antirracista, dois sobre questões LGBT, um sobre as militantes do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, e um sobre o combate interno às opressões. Não se trata de esperar que apenas esses grupos formulem sobre suas opressões, mas de nos perguntarmos: estas questões estão assim tão bem avançadas que há pouco a ser dito? Em termos de autoria, as contribuições anônimas ou sob pseudônimos podem mascarar a situação, sem contar o erro que arriscamos incorrer ao associar automaticamente um nome tradicionalmente entendido como masculino ou feminino a uma identidade de gênero correspondente. Mas, frente a tudo que acabamos de debater, só uma situação muito anômala, ou um trabalho consciente muitíssimo avançado, faria com que a maioria dessas contribuições não tenha sido escrita por homens, cis, brancos, esta inclusa.
Infelizmente não parece ser o caso. A camarada Mari Nogueira, do Rio de Janeiro, afirmou o mesmo problema em fio recente no Twitter/X, referendada por diversas outras militantes. Vejamos a sua análise:
“Mulheres na militância geralmente ficam com tarefas internas e organizativas importantes, mas a tarefa também central de análise política sobre a conjuntura e eixos prioritários de luta, dificilmente são mulheres que assumem. Muitas vezes nós formulamos, mas não temos espaço nas organizações, que nos limitam a falar de pautas sobre mulheres ou sobre um setor específico! Mulheres constestadoras, que formulam e constrõem lutas são ameaçadoras para machistas e reformistas!”[2]
A camarada Raquel Luxemburgo, de São Paulo, também relatou os mesmos problemas em sua carta de adesão à Reconstrução Revolucionária. Além de mostrar como foi colocada em diversos espaços apenas por ser uma mulher negra, sem nenhum critério e por direções que buscavam pintar um falso quadro de diversidade nas bases, ela também aponta para outros dois problemas: a sobrecarga na militância e a suposição de que grupos oprimidos só sabem/devem formular sobre suas opressões.
“Me sobrecarreguei na militância, abandonei minha vida acadêmica, minha vida profissional, mas sem que por um segundo houvesse algum acolhimento no partido. Parecia que por ser uma estudante da USP esqueciam que eu ainda era uma mulher negra e não um homem branco pequeno-burguês, ou talvez por ser uma mulher negra não conseguiam me humanizar.
(...)
(...) Sem falsa modéstia, mas eu era, depois do Gabriel Colombo, o principal quadro na tarefa [de direção da Associação Nacional de Pós-Graduandos] e formulava bastante sobre as questões de ciência e tecnologia. A diretoria que me colocaram foi a de combate às opressões. Não menosprezando a cadeira, mas eu formulo muito pouco sobre o tema. Acontece que não era sobre formulação política, era só mais uma vez o PCB usando da minha opressão.”[3]
É louvável que cada vez mais esforços sejam empreendidos na busca por diversificar a base e as direções na UJC, e eles devem ser iniciados no PCB também. Mas onde estão essas pessoas? Provavelmente realizando trabalho doméstico não remunerado, se dedicando à graduação, ou no seu emprego. Ou são mães e estão cuidando de suas crianças. É justo pedir que usem o pouco tempo livre para somente tocar tarefas, ainda mais as internas? E que sua formação teórica seja abandonada? Que deixem a formulação por último? É preciso buscar superar essa divisão em todas as instâncias e onde quer que se apresente, entendendo que quem está na base, e mesmo nas tarefas internas, também pode e deve estudar e formular.
Propomos, como primeiro princípio, entendermos estes três fatores como um tripé “estudo, tarefa e formulação”. Se tratamos de um partido de quadros que devem formular, estudar e militar, algo vai muito mal quando grupos inteiros não conseguem realizar todos os três. Todo o conjunto da militância deve se engajar e propor soluções para equilibrar coletivamente este tripé, para superar a divisão racial e generificada do trabalho militante. Romper com esse tarefismo significa criar condições concretas e uma cultura política em que os grupos oprimidos possam estudar e formular, com critérios científicos para a avaliação periódica desses esforços.
O segundo princípio, derivado diretamente dessa reflexão, é o da promoção da equidade. Isto é, entender que partimos de uma situação de profunda desigualdade de condições e oportunidades que afeta estes grupos em todos os aspectos, na sociedade e na militância. Logo, equilibrar esse tripé significa priorizar e dedicar muito mais empenho, em todas as iniciativas, para que essas pessoas possam participar da militância em sua plenitude. Se uma célula se propõe a realizar uma formação, por exemplo, as chances de que as pessoas desses grupos disponham de menos tempo para realizar a leitura do texto é muito mais alta do que a de demais militantes. Não basta que as pessoas responsáveis pela formação pensem, em abstrato, como auxiliar toda a célula de forma ampla, mas pensar concretamente a realidade e questões específicas desses grupos. Ou então que as direções, ao mensurar as quantidades de formulações produzidas, de formações aplicadas e militantes que compareceram, deem-se por satisfeitas com uma percentagem abstrata dos números. “Metade da militância da capital compareceu à atividade, é um bom número”, podem pensar. Será? Qualifiquemos este número, quantas das camaradas que são mães conseguiram vir? Tínhamos um espaço e militantes para a tarefa de receber e cuidar de suas crianças? Conseguimos custear as passagens de quem não pode pagar? O local da atividade é acessível, geograficamente e para pessoas com deficiência (PcD)? É preciso atenção contínua ao que se esconde atrás da média na estatística, e contrabalancear as desigualdades com um empenho consciente. Só assim a igualdade formal pode se realizar enquanto igualdade concreta.
Como terceiro princípio, que é ao mesmo tempo uma proposta para que esse equilíbrio seja alcançado, a especialização da militância. Esse assunto cada vez mais aparece como o passo fundamental que o partido deve dar na solução de uma série de problemas e no avanço de tantos outros trabalhos. Por isso mesmo a especialização pode ser defendida sob vários argumentos, e sem dúvidas merece ser debatida com maior centralidade em tribunas próprias. Tratamos dela aqui como caminho para evitar o acúmulo de tarefas e consequente sobrecarga, principalmente da militância LGBT, feminista e antirracista.
A especialização, no que concerne este texto, diz respeito à redução da quantidade de tarefas e de espaços diferentes que militantes se inserem, para que possam se dedicar a uma ou poucas tarefas que executem com maior habilidade e, portanto, em menos tempo. O melhor racionamento do tempo que dispõem para militar é um início para que essas pessoas possam estudar e formular sobre os problemas que enfrentam, as tarefas partidárias, a conjuntura brasileira e internacional, enfim, sobre o que bem entenderem sem o julgamento dessa “meritocracia do tarefismo”.
Acreditamos que somente com esses princípios “escritos na pedra” e não no pântano das regras inventadas e das resoluções rasgadas; somente com esses princípios imbuídos numa nova cultura militante poderemos avançar na reconstrução revolucionária do movimento comunista e na realização plena da práxis por parte da sua militância.
Notas
[*] DESCRIÇÃO DA IMAGEM: A foto retrata militantes do Partido Comunista da Índia (Marxista) em ato para celebrar a vitória eleitoral na cidade de Kochi, estado de Kerala, Índia. Três mulheres e uma criança marrons, todas de cabelos pretos, estão sentadas na traseira de um jipe, de frente umas para as outras. Uma quarta mulher está de pé na carroceria, ao fundo, de costas para a câmera. As duas mulheres à esquerda vestem um hijab vermelho por sobre a cabeça, e a mais próxima da câmera usa uma blusa cinza. A mulher à direita veste um chapéu de tipo pescador vermelho, adornado com uma foice e martelo branca e as letras “CPI(M)”, além de uma blusa vermelha e um bindi vermelho e redondo entre suas sobrancelhas. No meio delas, a menina de blusa vermelha aponta para fora do carro, numa direção atrás da câmera, para onde as outras mulheres também estão olhando. Todas elas usam máscaras que tampam o nariz e a boca. Foto tirada em 16 de dezembro de 2020, por R. S. Iyer, para a Associated Press (AP).
[1] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
[2] Disponível em: https://twitter.com/marinogueirapcb/status/1701035161322680662
[3] Disponível em:
https://medium.com/@raqueluxemburgo/carta-de-adesão-ao-manifesto-da-reconstrução-revolucionária-dfc6dffe0d9f