'Estética revolucionária e ideologia: pela construção da Ação Revolucionária Cultural' (Gabriela Fero)

Defendemos que a ARC seja um movimento organizado pela Reconstrução Revolucionária [...] visando a ocupação anual de espaços públicos ou privados para a manifestação das experiências estéticas de nosso tempo histórico e a ampliação do debate acerca das artes, cultura e estética em nível nacional.

'Estética revolucionária e ideologia: pela construção da Ação Revolucionária Cultural' (Gabriela Fero)

Por Gabriela Fero para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,  

Antes de iniciar esta tribuna, gostaria de frisar minha defesa sobre a importância das contribuições teóricas para o avanço de nossos debates, especialmente quando estas se apresentam alinhadas à proposições políticas. Com isto, ressalto aqui o caráter teórico, mas, sobretudo, prescritivo deste texto, não apenas acerca da construção da Ação Revolucionária Cultural, mas também propositivo nas nuances de seu desembaraço teórico.   

Dada a complexidade do tema, é preciso dizer que não tratarei, centralmente, da sigla ou bandeira do partido, mas de alguns aspectos que podem nos ajudar a pensá-las e pensarmos para além destes problemas. Contudo, enalteço a contribuição de nossa militância acerca deste e outros temas da cultura, conforme pude acompanhar em algumas tribunas que cito: “Arte periférica é a arte revolucionária, a inserção no meio dos jovens proletários” (Contribuição anônima); “Ainda sobre a foice, o martelo e a sigla” (Pepa); “A luta é, sobretudoestética - por que têm medo de nós?” (Rocco); “Devemos abandonar a Foice e Martelo? A estética brasileira” (Silas Adriano) e “A ArteSemiótica e Agitação e Propaganda: Rumo a uma Estética Comunista Brasileira” (RafaBertolucci).

Com o propósito de colaborar brevemente com o reposicionamento dos debates sobre cultura e estética a partir das necessidades concretas de nosso tempo, retirando-os dos empoeirados chavões defensivos sobre o realismo socialista, de uma concepção estética tão somente ligada à representação de identidades, de orientação pedagógica e agitativa, ou mesmo da cultura como expressão semelhante ao festejo e à certa despressurização da vida maçante aos sujeitos sufocados pela sociabilidade capitalista, gostaria de defender a necessidade de nós, militantes do PCB-RR, construirmos a Ação Revolucionária Cultural.

Muito tem se dito a respeito da crise estética na qual estamos submersos e como são as águas da extrema-direita recrudescida estas que nos afogam ainda mais em tal crise. De antemão, assumamos que nossa gramática política, nosso léxico e nossos símbolos têm sido, há décadas, parte de uma estética notavelmente fagocitável pelos mecanismos ideológicos das classes dirigentes que, desde a queda da URSS e do decreto fukuyamista sobre o fim da história, aprofundaram a apatia libidinal das massas acerca do desejo revolucionário. 

Numa sociabilidade cujos sujeitos são interpelados continuamente pelos aparelhos ideológicos de estado – estes grandes amplificadores do apetite capitalista; das famílias aos sindicatos, das religiões aos partidos – é evidente a capacidade das classes dirigentes em, sendo possuidora de uma estratosférica quantidade de aparelhos, orientar as massas para a reprodução automática e inquestionável das formas sociais do capital através de enchentes generalizadas pela submissão.

Nossas palavras de ordem, representações, símbolos e toda arquitetura gramatical e imagética, têm sido, de alguma forma, reesculpidas por tal aparelhagem – ou em benefício da manutenção da ordem das coisas, ou em benefício de um suposto programa disruptivo que, em última instância, também se apresenta como garantidor da ordem capitalista, a saber: o neofascismo.

Com isto, já façamos aqui uma provocação óbvia: não é através da consciência de classe que operam os aparelhos ideológicos de estado – nem para a manutenção ordinária da ordem capitalista e nem, tampouco, para a radicalização das massas à extrema-direita, o que poderia ser, no entanto, um argumento a nosso favor, mas aqui defenderemos que este deve ser utilizado como confronto às nossas convicções táticas.

Estes apontamentos são, contudo, profundamente insuficientes. Sabemos que nossas lutas sempre serão cooptáveis em maior ou menor medida sob a ideologia dominante burguesa, não apenas por serem ressignificadas à medida do capital (as distorções sobre o socialismo real e seus feitos às pautas anti-opressão atuais), mas porque também são esmaecidas através de obstruções algorítmicas e midiáticas (dos genocídios do povo palestino à população negra brasileira). 

À frente de tamanha vulnerabilidade, a militância comunista do século XXI não pode fechar os olhos para o fato de que as massas no capitalismo pós-fordista são cabalmente marcadas por uma constituição subjetiva adequada ao capital, o que implica, por um lado, o reconhecimento do primado do inconsciente sobre o consciente, e por outro lado, a necessidade de romper com o trabalho ideológico revolucionário parcial – aquele que vislumbra apenas as batalhas contra-hegemônicas nos espaços já subsumidos inteiramente à aparelhagem estatal. Mas que isto significa?     

A primazia do inconsciente

Iremos aqui defender que o movimento comunista brasileiro não avançará em direção à estratégia socialista tão somente visando o primado da conscientização das massas. Diante dos profícuos avanços do marxismo nos últimos cinquenta anos, soterrados por grande parte da tradição pecebista, olhemos para a incontornável descoberta althusseriana sobre as profundezas da ideologia que, diferente do que ainda se prega, não está inscrita no nível da consciência, mas do inconsciente dos sujeitos. Este é o ponto fundamental, me parece, para que sejamos capazes de destravar o debate acerca da estética, das artes e da cultura.  

Localizar a ideologia no nível do inconsciente significa reconhecer que um povo não é arregimentado tão somente através de uma operação estética pedagógica, racional, convincente ou consciente, mas também e, sobretudo, através de uma estética interpelativa, capaz de arrebatar subjetividades por intermédio de um apelo libidinal vigoroso o bastante para a reorientação do desejo capitalista; desejo este já constitutivo de todos os sujeitos sob o regime de acumulação pós-fordista, mas que, sabemos, pode ser reorientado ao sabor da luta de classes.

Camaradas, este ponto é absolutamente central: o capitalismo é uma totalidade ideológica, cujo desejo habita o inconsciente das massas, ao passo que a consciência é o locus para onde o desejo é conduzido através da via pulsional. Não queremos, com isto, escantear a importância da consciência de classe – dimensão necessariamente constitutiva da caminhada revolucionária –, mas reposicionar uma crítica cambaleante e desarmada deste importante salto oferecido por nossa tradição.

Diante destes avanços é possível compreender como se tornam vulneráveis os imensos esforços das esquerdas em conscientizar a classe trabalhadora às vésperas das eleições burguesas, para que, ato contínuo, a aparelhagem estatal opere numa espécie de “conscientização avessa” de forma bem-sucedida. Todo o trabalho educativo parece se pulverizar, em alguma medida desvelando a impotência da ação pedagógica quando não acompanhada de uma conquista mais profunda das subjetividades.

A extrema-direita brasileira organizada pelo bolsonarismo também revela a deficiência de um trabalho ideológico voltado tão somente ao aspecto educativo da classe trabalhadora. Há de ser dito que a capacidade deste campo em convocar grandes massas se confirma até o momento, ainda que tenha ocorrido o desvelamento público de ações criminosas persistentes relativas não apenas ao mandato de Jair Bolsonaro, mas a toda sua vida política e pessoal, tal qual a de seus mandantes fardados. É evidente que não se trata de consciência de classe o que coaduna esta parcela da população brasileira, mas algum dispositivo mobilizador do desejo imanente pela interrupção do percurso normal das coisas. 

Poderíamos também exemplificar esta problemática inscrita no campo revolucionário, apontando para o Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro no que tange os últimos anos de sua ala direitista, a mesma que arquitetou e articulou expulsões ou perseguições arbitrárias, violando o centralismo democrático e nossas resoluções, provocando, por fim, uma cisão histórica na organização. Tratando-se, em geral, de comunistas da velha guarda e militantes de longa caminhada partidária, seria até mesmo insensato dizer que falta a tais figuras consciência de qualquer espécie, quando o que falta a esta gente é libido revolucionária. Ora, falta-lhes desejo de ruptura. 

Para além do sensível imediato

Fincando os pés na estética, também será preciso dizer sobre os limites da expressão nacional-popular, expressão esta que defenderemos com unhas e dentes, flechas e enxadas, ao som do ponto cantado e do samba, mas também com armas de fogo e filosofia, para não estacionarmos no que já se liga à compreensão das massas quanto aos símbolos e signos que a pertencem, e para habilitá-las ao reconhecimento de outros espelhos ofuscados pelos mecanismos da ideologia dominante. Neste sentido, a superidentificação do receptor com a coisa não será a única forma possível de inscrever a classe trabalhadora no solo da questão nacional; solo este onde alguns frutos vitais são estrategicamente retirados do horizonte popular pela aparelhagem estatal, mesmo com raízes profundas nesta mesma terra que à classe trabalhadora sempre pertenceu.    

Para além disto, há de notarmos uma outra dimensão importante nas experiências estéticas ancoradas tão somente na identidade nacional, de grupos específicos ou figuras históricas. A alta capacidade de navegação de tais enfoques nos circuitos culturais hegemônicos desvela grande parte de seu caráter conciliatório presente, pois a luta pela história de um povo, ou pela reivindicação de símbolos populares e revoltas nacionais, deve marchar amparada por uma vanguarda política revolucionária que exalte tais episódios históricos não apenas como memória viva, mas como uma ameaça anunciada desde já: como promessas que se cumprem desde agora. Portanto, não se trata absolutamente de escantear tais abordagens, mas identificar em nossa estética o que temos preservado em benefício da ordem burguesa.

À título de exemplo, talvez seja importante sinalizarmos que a luta pela memória de Marighellas e Marielles, antes de tudo, diz respeito à reivindicação de seus horizontes políticos e de suas ações enquanto militantes revolucionários, e não apenas de seus rostos estampados e adequados à agitação partidária ou à forma mercadoria. Lutar pela memória de nossos camaradas alvejados também demanda nosso comprometimento em enfrentar aquilo que interrompe estas trajetórias e sobrevive pulsante na vida política brasileira. Neste caso, a questão militar (tal qual a violência revolucionária, sobre a qual trataremos mais à frente) é parte constitutiva de nosso particular – é um fulcro decisivo da questão nacional em suas raízes nascentes, arvoradas com o passar dos séculos através de programas ideológicos, mobilização de massas e, não esqueçamos, manifestações estéticas.    

Percebam como os limites da estética engessada à determinadas problemáticas não implicam o seu abandono, mas um reposicionamento na forma pela qual estes elementos são tratados. Do mesmo modo, nenhuma questão será aquela que deve resumir a inteireza de nossas manifestações estéticas; manifestações estas que extrapolam nossos símbolos, signos, gritos e paletas, mas que dizem respeito também à nossa ação militante frente aos problemas de nosso tempo; ação esta que não encontraria esteios suficientes tão somente na pura representação vitoriosa (ou derrotista) de figuras históricas, categorias oprimidas e brasilidades expressas tais quais se manifestam no real ou no ideal.

A estética revolucionária deve, em última instância, conduzir sujeitos à ação revolucionária. Esta afirmação é importante para identificarmos os limites da arte e da cultura como instâncias que se inscrevem na política, mas não são a política, tal qual a política se inscreve nas artes e na cultura, mas não são as artes e nem a cultura. Queremos dizer com isto que a estética dos Panteras Negras possuía uma capacidade arrebatadora de interpelação e conquista da juventude negra estadunidense, mas o sucesso de sua estética não se coroava tão somente na adesão de militantes ao partido, mas em ações políticas consequentes majoradas no seio de uma organização política.

Que cem flores aguerridas desabrochem

É imperativo de nossas lutas a compreensão de que o desejo se manifesta de maneira involuntária, tal qual fazem as massas na reprodução das relações capitalistas, pois ideologicamente submetidas à segunda, a primeira torna-se desejante daquilo que a sujeita: ordem, valor e acumulação. Não há operação mental antecedendo tais reproduções do capital em termos de cálculo do fazer: as massas simplesmente o fazem, assim como estas mesmas reproduções também se realizam a partir da classe trabalhadora revolucionária.

Isto ocorre porque o desejo capitalista igualmente constitui subjetivamente os sujeitos revolucionários, desde sempre interpelados ideologicamente pelos aparelhos burgueses. Não há constrangimento em assumir isto. A necessidade de manutenção da vida imediata passa imperiosamente por relações sociais de sujeitos com aquilo que mais profundamente os corroem. O ponto decisivo é que o desejo revolucionário – este desejo enquanto pulsão da qual não se tem consciência – extrapola o nosso já-desejo de servidão.

O que estamos defendendo aqui é que a experiência estética majorada por nós, militantes revolucionários – verdadeiramente desejantes da revolução – não deve se limitar enquanto arma pedagógica, conscientizadora ou reveladora da realidade tal qual ela se apresenta. Do mesmo modo, não se trata de afunilarmos a experiência estética numa espécie de reivindicação de formas mais ou menos efetivas. Nosso tempo histórico é marcado pelas profundas contradições das crises do capital, pelo desprezo às lutas socialistas e pelas subjetividades que não a desejam. Seremos tão somente capazes de enfrentar a complexidade deste tempo compreendendo táticas estéticas diversas que, por fim, desemboquem na reconfiguração das sensibilidades para o socialismo [2].

A discussão, portanto, acerca dos temas e identidades, particular e universal, nacionalismo e internacionalismo, realismo mágico ou socialista, mas também acerca do concreto e abstrato, figurativo e geométrico, gêneros literários e cinematográficos, deve ser feita com o intuito de confluir nossas diversas possibilidades de manifestação estética (jamais rendidas ao desejo capitalista) em prol da estratégia socialista. Firmeza nos princípios e flexibilidade tática, uma das máximas leninistas aqui nos cabe para a despressurização da criatividade revolucionária: nossa estética não demanda uma disputa por temas ou cânones, mas uma coesão radical pelos fins.

Queremos aqui defender, contudo, que deve ser repudiada a arte alusiva ao gozo mercantil. A flexibilidade tática jamais deve abrir brechas para reforçar aquilo que já constitui ideologicamente a classe trabalhadora neste início de século através da aparelhagem burguesa. A firmeza nos princípios abre brechas para um destravamento de nossos meios, formas, ferramentas e linguagens, desde que haja um comprometimento radical com a reorientação do desejo capitalista ao desejo revolucionário

Resgatemos aqui um trecho de Mao Tsé-Tung em seu discurso Sobre a justa solução das contradições no seio do povo que, a despeito de ter ocorrido no período pós-revolucionário chinês, apresenta critérios políticos importantes a serem aplicados não apenas na reflexão sobre a atividade artística, mas também nas múltiplas manifestações estéticas do movimento comunista brasileiro:

Como determinar, na vida política do nosso povo, se as nossas palavras e atos são ou não corretos? (...) é possível formular, em termos gerais, o critério seguinte: 1) As palavras e os atos devem ajudar a unir e não a dividir o povo das nossas distintas nacionalidades; 2) Devem beneficiar e não prejudicar a transformação e construção socialistas; 3) Devem ajudar a consolidar, e não a minar ou enfraquecer a ditadura democrática popular; 4) Devem ajudar a consolidar e não a minar ou enfraquecer o centralismo democrático; 5) Devem ajudar a reforçar e não a rejeitar ou enfraquecer a direção do Partido Comunista; 6) Devem favorecer e não prejudicar a unidade socialista internacional e a unidade internacional entre os povos amantes da paz no mundo inteiro.

Notemos que com exceção do terceiro critério, já muito diretamente ligado ao momento da transição socialista, todos estes pontos nos são próprios e implicam desejo revolucionário para que sejam levados a cabo. Contudo, em se tratando de critérios políticos, aproveitemos para sinalizar certo condicionamento de nossa militância em pensar a estética revolucionária somente como aquela que trata diretamente nossas lutas por formas e conteúdos absolutamente inteligíveis: a classe trabalhadora; os símbolos nacionais; os personagens históricos; as bandeiras; a exploração capitalista; o momento revolucionário.

Há de irmos além e reconhecermos que, se a inteligibilidade da manifestação estética cumpre um papel fundamental na agitação e propaganda do partido junto às massas, também devemos recorrer ao materialismo histórico para analisar, a título de exemplo, os impactos do movimento surrealista no início do século XX em seu caráter revolucionário, que incorpora o marxismo enquanto crítica ao modo de produção capitalista e prática artística coletiva, igualmente observemos a forma pela qual os pintores e poetas cubanos exprimiram a questão nacional na efervescência do contexto revolucionário, ou mesmo como o teatro épico de Brecht compreendeu a atuação teatral como interpretação política e os impactos de sua ruptura com a tese da identidade.

Ódio ao gozo mercantil

Se o que nos importa agora é a necessidade de uma coesão estética revolucionária radicalmente comprometida com a destruição do gozo capitalista para a estratégia socialista brasileira, nada disso diz respeito a um esquerdismo tolo, que recusaria nossa navegação pelos aparelhos estatais – das instituições culturais às mídias burguesas –, ou nossas reivindicações muito imediatas enquanto classe trabalhadora para uma vida mais digna através do estado ou do direito. Pois tais reivindicações nada se aproximam de uma ode à forma valor: há um imenso abismo entre as necessidades iminentes da classe trabalhadora e a medíocre difusão do consumo enquanto gozo compensador.

Diremos agora o que pode tão somente reforçar uma obviedade para alguns leitores, no entanto, há de ser considerado o acesso deste texto à camaradas inscritos em diferentes momentos da reflexão estética e da formação política. Para que cem flores aguerridas desabrochem num momento não revolucionário, marcado pela morosidade das lutas socialistas no Brasil e no mundo, é preciso que haja um abandono radical das experiências estéticas liberais de esquerda, as quais se manifestam coadunadas com o deleite mercantil capitalista, aquele que inscreve a classe trabalhadora enquanto categorias oprimidas para uma maior subsunção às ideologias neoliberais do pós-fordismo, ad infinitum na busca de um gozo vitorioso, literalmente empreendido e jamais alcançado. Isto seria pura reafirmação do sujeito de direito portador-proprietário de mercadoria, portanto, uma reafirmação da ideologia burguesa por aqueles que supostamente buscam combatê-la, denotando, em última instância, as limitações (ou performances) revolucionárias, e até mesmo progressistas, de nossos companheiros e camaradas.

A esquerda liberal, assim, vergonhosamente serve à manutenção servil das estruturas que permitem suas poucas representatividades nos aparelhos burgueses; aparelhos estes cujas portas se abrem, novamente, à medida do capital e em benefício do mesmo. Notemos que se naturaliza músicos progressistas louvarem a forma valor (a ode ao consumo) tal qual o fazem os artistas plásticos e audiovisuais tidos pelas esquerdas como referências cabíveis, sob a justificativa de que os sonhos e os desejos da classe trabalhadora tivessem de ser reconhecidos e reafirmados, quando estes sonhos são a condição de sua sujeição profunda; são aquilo que aos comunistas cabe destruir, expondo os mecanismos da ideologia burguesa para o gérmen de sonhos realizáveis.    

É evidente que tal posicionamento não se confunde com uma crítica moral sobre o que deleita a classe trabalhadora enquanto consumidora da cultura. Aqui se estabelece uma crítica a respeito da produção artística e cultural no seio de um partido comunista por militantes trabalhadores da cultura, intelectuais e artistas, e de como a inteireza dos movimentos comunistas devem avançar no desenvolvimento desta crítica. Com isso, defenderemos que tal amplificação do desejo capitalista através de estéticas tidas como aliadas ao nosso campo, devem ser firmemente repudiadas. Isto não anula a totalidade do trabalho desenvolvido por artistas como tais e quais (também sujeitos assujeitados pela ideologia dominante), mas há de se abrir um debate crítico acerca do cultivo de nossas próprias algemas.

Estética e violência

Pudemos sinalizar, até o momento, uma coesão entre as múltiplas formas de manifestações estéticas sob o horizonte político da estratégia socialista, passando pela refutação radical da reprodução do desejo capitalista em nossas produções e pela crítica ao restringimento de nossos temas e problemáticas não apenas como um limitador do fazer artístico, mas, sobretudo, das demandas subjetivas das massas no capitalismo pós-fordista. Se a flexibilidade estética por nós proposta implica algumas ponderações subtrativas (o que deve ser recusado) tais quais citadas previamente, oferecemos agora um apelo aditivo (o que pode ser integrado). 

Sob a necessidade de emergir uma força mobilizadora a  partir  das  múltiplas  manifestações estéticas aqui defendidas, talvez seja o caso de refletirmos com mais demora sobre um elemento comum, habitável nas entranhas  dos  sujeitos, revolucionários ou não, como uma espécie de introjeção da repressão, resultante  de  alguma  coisa  percebida  na  vida  como  aquela  massacrante  banalidade  da  própria  vida  sobre  estes  sujeitos – própria do valor – que pela forma política estatal os afoga (o Estado), e pela forma de subjetividade jurídica os condena (o Direito), portanto  algo  no  mundo  que  os  aniquila  antes  que  estes  possam utilizá-la para  aniquilar  um  mundo. Este ponto de inflexão mesmo da vida – mesmo da luta – cuja força condenada potencialmente colapsa as forças que o condenam, me parece se apresentar como um denominador comum poderoso às necessidades revolucionárias da estética em nosso tempo. A saber, a violência.

É preciso reforçar que nossa estética não pode ser pensada unicamente às massas não radicalizadas, mas também à própria militância comunista que, a despeito de seu trabalho ideológico revolucionário, também segue interpelada ideologicamente pela letargia das esquerdas liberais e pelos mecanismos das ideologias burguesas. Por isso é importante pensarmos na necessidade de um denominador comum capaz de equalizar as múltiplas dimensões da arte revolucionária nas emergências de nosso tempo. Porque o futuro foi suspenso. Não apenas pelo atrofiamento do imaginário político, ou pelos processos ininterruptos de adiamento da revolução, mas porque habitamos este colapso, onde tal adiamento não encontra grandes esteios futuros.

Não podendo mais haver um pressuposto da revolução como um porvir sempre adiável (nossos filhos a farão, ou nossos netos ou bisnetos!), defendemos a busca de uma imanência mobilizadora imediata que possa se ligar às bases, mas também à militância revolucionária. Com isto, convencidos de que seja precisamente algum teor violento, aquele que nos parece capaz de, na urgência dos tempos, provocar reconfigurações das sensibilidades em ambas as dimensões. Porque a repressão violenta existe. E esta afirmação não denota uma contradição diante de nossos apontamentos anteriores sobre as limitações revolucionárias do real ou tão somente uma constatação materialista rasa, mas trata-se da identificação deste real como um dos “espelhos ofuscados” pela ideologia dominante, como citado previamente.

O teor violento inscrito na experiência estética revolucionária deve operar numa manobra que desloque o receptor de seu estado passivo analítico, transformando este elemento próprio da vida capitalista (mas também de sua finitude) como um dispositivo radical de interrupções legítimos às massas. Percebam que, em termos estéticos, não estamos nos referindo necessariamente ao conteúdo, mas também às formas [3]. Isto vale para pensarmos tanto o trabalho de agitação e propaganda do partido, as produções artísticas e culturais dos trabalhadores e trabalhadoras das artes, mas, sobretudo, a estética comunista em sua inteireza: nossas ações e mobilizações, programas táticos e postura revolucionária.    

Sobre a Ação Revolucionária Cultural (ARC)

Camaradas, aqui se encontra, por fim, nossa proposta sobre o que defenderemos chamar de Ação Revolucionária Cultural: um movimento que parte, sobretudo, da compreensão da cultura como um Aparelho Ideológico de Estado, portanto, da compreensão sobre a insuficiência de nossas ações na aparelhagem estatal e da necessidade de construirmos nossos próprios aparelhos. Evidentemente, a ARC não se pretende a um aparelho ideológico revolucionário, mas uma das peças que habilita a construção do nosso aparelho revolucionário cultural. Partiremos do pressuposto althusseriano de que nenhum sujeito, obra ou iniciativa pode ser considerado um aparelho em si, mas uma estrela na constelação de sujeitos, obras e iniciativas que formam, na sua totalidade, um aparelho específico [4].  

Se procuramos destrinchar nesta tribuna a necessidade de tomarmos o desejo capitalista, já constitutivo de todos os sujeitos no pós-fordismo, como um desejo a ser reorientado a um mais desejo revolucionário, cabe a nós dirigirmos esta elaboração teórica à ação política. O mesmo poderia ser feito a partir de outros aparelhos (religioso, escolar, sindical, etc.), mas aqui nos limitaremos ao cultural em decorrência de nosso ofício ligado às artes plásticas e nossa pesquisa sobre o conceito de ideologia, o que nos habilita uma proposição mais consequente. Ainda assim, vale dizer que não nos ocuparemos em destrinchar rigorosamente todos os aspectos desta ação, uma vez que isto cabe tão somente ao trabalho coletivo. Mas qual seria, então, nossa proposta basilar?

Defendemos que a Ação Revolucionária Cultural seja um movimento organizado pela Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista visando a ocupação anual de espaços públicos ou privados para a manifestação das experiências estéticas de nosso tempo histórico e a ampliação do debate acerca das artes, cultura e estética em nível nacional.

Levantaremos aqui alguns pontos centrais:

● A ARC deve ocorrer anualmente em todos os estados os quais nossa militância se propuser a fazê-lo;

● A ARC deve aglutinar os trabalhadores da cultura do PCB-RR, a saber, artistas plásticos, músicos, escultores, atores, cineastas, performers, intelectuais e pesquisadores da cultura, das artes e da estética para a realização da ação junto às massas;

● A ARC não deve se limitar aos militantes do partido, mas deve se coroar junto às massas trabalhadoras da cultura;

● A ARC não se trata de uma ocupação para a militância em prol da militância, mas de uma ação dirigida por nossos militantes em prol da aproximação do partido com as massas locais dispostas a integrá-lo;

● A ARC se pretende, portanto, um movimento de confluência das múltiplas experiências estéticas que se pretendem revolucionárias com as múltiplas experiências estéticas de artistas plásticos, músicos, escultores, atores, cineastas, performers, intelectuais e pesquisadores da cultura que desejem integrá-la;

● A ARC, com isto, se coloca como um movimento aberto às massas do ponto de vista do seu acesso e participação efetiva, pois se trata de um movimento que compreende a “arte” como a totalidade da produção estética de um tempo histórico e não da “arte” em conformidade com a ideologia burguesa da arte;

● A ARC, no entanto, deve proporcionar um amplo debate sobre as artes, a cultura e a estética pelo prisma marxista, buscando coadunar as manifestações artísticas de nosso tempo histórico em benefício da experiência estética crítica e revolucionária, assim como aproximar as massas do debate crítico;

● A ARC, desta forma, proporcionará um espaço de conflito ideológico que deve ser tomado como profícuo ao contato das massas com novas experiências estéticas oferecida por militantes revolucionários, assim como ao contato de nossa militância com o seio criativo das massas;

● A ARC deve proporcionar, assim, mesas de debates com intelectuais, artistas, profissionais da educação, acadêmicos, pesquisadores e comunicadores durante o seu período de realização;

● A ARC deve necessariamente ocorrer em feriados ou finais de semana, podendo se iniciar e/ou se encerrar antes ou depois destes, visando a maior adesão possível da militância e das massas ao movimento;

● A ARC não deve ocorrer de forma sincrônica em estados diferentes e deve se organizar numa agenda que possibilite a eventual (e talvez remota) participação de nossa militância em diversos estados os quais ela possa integrar;  

● A ARC deve se apresentar como um movimento cultural e político, dirigido por um partido marxista-leninista e orientado pela unidade de contrários entre a firmeza nos princípios e a flexibilidade tática, significando que, para além de nossa defesa sobre a coadunação de diferentes experiências estéticas sob o mesmo princípio revolucionário, na ocasião específica da Ação Revolucionária Cultural estaremos em amplo diálogo com manifestações estéticas que se pretendem tão somente progressistas e até mesmo liberais;

● A ARC, contudo, deve recusar a participação de manifestações estéticas de caráter reacionário. Experiências estéticas racistas, misóginas, xenofóbicas, homofóbicas, transfóbicas, capacitistas, bem como neonazistas, neofascistas e sionistas, estarão radicalmente desautorizadas a integrarem o movimento, sob a condição de serem eliminadas caso haja qualquer tentativa de inserção no evento;

● A ARC, por fim, deve se propor um movimento cultural radicalmente desmercantilizado do ponto de vista das obras e manifestações artísticas potencialmente desdobradas em mercadoria, se opondo à ideia de feira ou mercado. Um movimento revolucionário como tal deve se efetivar num espaço não submetido ao valor em benefício da ampla potencialidade do fazer artístico.

Finalmente, estas são nossas contribuições primeiras acerca da crítica estética e de alguns pontos que julgamos elementares para a construção da Ação Revolucionária Cultural, movimento este que tão somente poderá ser realizado a partir de um empenhado trabalho coletivo de nossa militância. Contudo, esperamos que estas pinceladas inicias possam, desde já, estimular a criatividade revolucionária para o desenvolvimento de todo o restante necessário.

Abraços fraternos, camaradas!


[1] Este aspecto pode ser verificado na esteira dos pintores comunistas brasileiros ou mesmo no seio dos muralistas mexicanos. Sobre os limites das artes plásticas no modernismo brasileiro, ver NAVES. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[2] Não há aqui defesa alguma do que seria uma espécie de etapismo ideológico. A superação completa da ideologia dominante e o estabelecimento de uma nova ideologia ocorrerá tão somente através da Revolução Socialista. Se, por um lado, reconhecemos a ideologia como ahistórica, portanto, sempre submetida à luta de classes, também reconhecemos que a tomada do poder pelas massas ocorrerá ainda sob a ideologia dominante do capital.

[3] A título de exemplo, breve leitura sobre os Panteras Negras como vanguarda dos anos 60: https://www.brasildefato.com.br/2016/08/03/panteras-negras-foram-vanguarda-dos-anos-60

[4] Para a leitura obrigatória sobre o conceito de ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, ver ALTHUSSER. Sobre a Reprodução e Os Aparelhos Ideológicos de Estado. Disponível em: https://estudossindicais.wordpress.com/wp-content/uploads/2016/11/louis-althusser-sobre-a-reproduc3a7c3a3o-editora-vozes-1999.pdf


REFERÊNCIAS:

https://jacobin.com.br/2023/01/mark-fisher-nos-ajudou-a-pensar-para-alem-do-realismo-capitalista/

https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2019/03/17/e-hora-de-encontrar-nossa-estetica/

https://politica210.wordpress.com/wp-content/uploads/2014/11/althusser-louis-ideologia-e-aparelhos-ideolc3b3gicos-do-estado.pdf

https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2024/05/09/as-forcas-armadas-contra-o-brasil-negro-parte-1/

https://periodicos.unifesp.br/index.php/limiar/article/view/9480

https://www.scielo.br/j/rsocp/a/KCPFxfXGpLQD3q6MbZ5HbBJ/?format=pdf

https://www.marxists.org/portugues/mao/1957/02/27.htm

https://traduagindo.com/2019/08/11/o-carater-popular-da-arte-e-o-realismo-por-bertold-brecht/

https://www.scielo.br/j/rdp/a/VyhSzRbVW4HWrwSntYTqCDj/?format=pdf&lang=pt

https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo247artigo137artigo138arigo3.pdf

https://www.lavrapalavra.com/2022/09/05/lam/

https://www.lavrapalavra.com/2021/07/26/sobre-o-conhecimento-da-arte-resposta-a-andre-daspre/

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/764987/mod_resource/content/1/Aula%208%20texto%202.pdf