'Entre a confiança e a fidelidade, algumas coisas que ainda não entendemos…' (Kause Chaves)
[...]estamos inseridos numa sociedade tão individualista e punitivista que sempre que algo dá errado nosso primeiro ímpeto é buscar o culpado no lugar de compreender quais aspectos daquele erro são atributos individuais e quais são fissuras da própria dinâmica e forma social com que nos organizamos.
Por Kause Chaves para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Escrevo essa tribuna como uma maneira de dialogar sobre a questão da confiança, nas direções, entre camaradas e na própria organização… Os pontos aqui apresentados são angústias que carrego há muito tempo porém, não escrevi antes porque a crença na capacidade de nossa organização e camaradas muitas vezes nos causa um constrangimento em tratar de coisas simples, que deveriam ser pressupostos de qualquer organização séria (principalmente partidos), fica uma certa impressão de que se você vem e fala o básico, você está subestimando essa capacidade e inteligência dos seus camaradas, você está atacando a atuação particular de alguém, mas hoje é diferente… Vim aqui só para falar do básico. E por que? Porque a gente têm esquecido do que é fundamental e quando esquecemos disso nos perdemos completamente. E se escrevo essa tribuna agora é também porque percebo três “sensações” nos camaradas… Exaustão, Desânimo e Desconfiança, sentimentos que, a meu ver, são incapazes de mobilizar revolucionários. Se por algum acaso te incomoda que eu inicie uma tribuna falando de sensações e sentimentos e não cientificamente sobre a imortal ciência do proletariado ou num texto quase jurídico sobre como deveria ser cada componente de nossa organização, política, estética e moral, te respondo: é que eu sinto muito.
Eu preciso confiar nas minhas direções para ser um militante Leninista mas não podemos confundir confiança com fidelidade.
Escrevo esse tópico em diálogo com a tribuna da camarada Raquel, onde ela apresenta que houveram práticas questionáveis da parte das direções da CR de São Paulo para encaminhar uma proposta que lhes parecia mais correta.
Em outras ocasiões já chamei essa prática de “cupulismo”, “manobra”, “acesso privilegiado de informações” etc… mas não vou utilizar deles aqui porque facilmente são usados como uma forma de remover o caráter político da crítica e levar para o campo da moralidade e caça às bruxas: “você está acusando alguém de ter feito uma manobra?! Quem foi? Fale os nomes e contribua com a perseguição ou se cale para sempre”, então, voltando às práticas questionáveis, penso sempre que estamos inseridos numa sociedade tão individualista e punitivista que sempre que algo dá errado nosso primeiro ímpeto é buscar O CULPADO no lugar de, como comunistas, compreender quais aspectos daquele erro são atributos individuais e quais são fissuras da própria dinâmica e forma social com que nos organizamos atualmente.
Indo ao ponto, há hoje em nossa organização, uma lógica militante que não corresponde nem a nossos objetivos históricos, da construção de uma organização revolucionária de vanguarda capaz de fazer uma Revolução Brasileira, nem a nossos objetivos mais imediatos, de uma maior profissionalização e inserção nos espaços de luta da classe trabalhadora no país. Identifico que essa outra lógica, que não é revolucionária, mistura aspectos de uma identidade comunista sem compromisso de vida, o que nos aproxima desses vários partidos-seitas que temos no Brasil, com aspectos de um academicismo enorme “o militante bom é o que escreve e lê muito! E só ele!” o que nos aproxima principalmente de estudantes, potenciais estudantes, ex-estudantes e pessoas ainda envolvidas com a universidade onde essa valorização quase iluminista da transformação da sociedade pelo conhecimento é exaltada de maneira acrítica com aspectos do neoliberalismo, eu já trabalhei em diversos ambientes, com muitas pressões distintas e esvaziamento de minha humanidade mas, de maneira surpreendente, nenhum desses ambientes a removeu tanto quanto os espaços da UJC…Explico: em emprego nenhum esperei camaradagem, responsabilização da empresa pela sanidade física, emocional e psicológica de seus funcionários porque sei que o capitalismo não está aí pra isso… mas ao ingressar nessa organização, mais de 5 anos atrás, vi que toda a responsabilidade coletiva é atribuída ao indivíduo privado, enquanto se esvazia e cobra desse indivíduo que performe “O REVOLUCIONÁRIO” mesmo que as tarefas não estejam nem perto das necessidades da classe trabalhadora brasileira.
Essa identidade comunista academicista e neoliberal torna militar nessa organização muito difícil, um trabalho extremamente desgastante, não pelas tarefas que se faz, pela dificuldade da luta de classes no Brasil e pelos nossos desafios históricos mas pelo clima de censura, de sempre precisar ler e reler tudo mas entrelinhas, de precisar estar totalmente disciplinado sempre até para promover e realizar o cupulismo e, não é a toa que tanto as bases quanto as direções caem, como dominós numa sequência… Tal ambiente inóspito favorece a saída de grupos oprimidos (e depois nós nos surpreendemos com uma baixa proporção de pessoas racializadas na organização) e também da classe trabalhadora mais empobrecida (se você precisa escolher entre estar num bar toda semana com as direções de seu partido para poder saber e confiar nas linhas que serão apresentadas ou almoçar, uma hora a confiança acaba ou se fica anêmico…)
Essa lógica é culpa de quem?!
De certa forma, de tudo, de todos e de ninguém… Tem relação inclusive com a leitura feita por Heribaldo Maia, Vladimir Safatle, Jones etc… de que “a esquerda está morta”, e a primeira coisa que um cadáver faz é começar a feder… é atrair moscas para sugar o pouco de sumo que resta e começar a se misturar com o ambiente em que se encontra… e se nossa crítica em relação ao racha foi da incapacidade do PCB-CC de acolher e realizar autocriticas e ser verdadeiramente democrático com as bases, se nossa análise sobre a composição social do partido era de uma predominância, principalmente nas direções, de acadêmicos e estamos sendo formados cotidianamente e sem a devida contraposição pelo Neoliberalismo é de se esperar que todas essas coisas estejam também em nossas entranhas….
Então, a própria pergunta “a culpa é de quem?” Está errada! Não é o afastamento de um ou de uma centena de camaradas que vai resolver nossos problemas, não é a troca da CL, CR, CN, o controle sobre figuras públicas e/ou empresas ligadas ao partido que farão os problemas serem resolvidos…. São necessárias assim, mudanças mais fundamentais.
Um morto muito louco
Acho que a primeira coisa é assumir onde estamos e o que estamos fazendo, que a reorganização de um partido comunista no Brasil não é tarefa simples e nem será fácil e rápida como os primeiros meses de racha e os avanços em relação ao PCB-CC indicavam…
É Começar a recusar algumas tarefas, conseguir recolher alguns cacos, ter uma política decente de assistência (leia minha tribuna - Assistência - máquina de moer militante e uma proposta para intercâmbio entre células e núcleos) alterar na prática a racialização de nossa organização (leia a tribuna A contradição do Racismo em nossas fileiras) e não ficar tocando uma infinidade de acordos com outras organizações e atividades eleitorais, de DCE, municípios etc sem compreender que precisamos lidar com o chorume que se encontra a esquerda atualmente e que estamos totalmente imersos nela. Estamos performando uma estrutura e organização que não temos, como se isso fosse afastar os camaradas quando o que afasta eles é o exato oposto, é essa falsidade que cria falsas expectativas em relação ao que a organização pode ou não pode fazer.
Eu preciso confiar nas direções mas preciso ser convencido!
O que mais me incomoda nessa história toda é que eu confio nos camaradas que dirigem a organização e que o Leninismo é a linha correta mas o que é mais absurdo pra mim é que os camaradas mais capacitados da organização não queiram se dar ao trabalho de buscar convencer! Se as direções que são mais capacitadas, tem mais tempo, experiência e consideração pelos demais camaradas escolhe o caminho mais curto, de exigir fidelidade dos militantes às suas decisões políticas e não a confiança que só pode ser adquirida via convencimento nós já perdemos tudo, nós esquecemos do básico….
O que é o básico?
O básico é compreender que ninguém nasce militante e tampouco é militante só porque vestiu uma camiseta uma vez na vida, ser militante é uma tarefa constante de supressão de parte da própria vida, que envolve o tensionamento desconfortável com a realidade que nos cerca e, para que qualquer pessoa em sã consciência faça tamanho sacrifício é necessário que elas sejam convencidas, e esse convencimento não se dá com teses e resoluções que mais parecem uma “carta morta” jurídica qualquer, nossas teses não devem ser só espelhos, devem também ser navalhas capazes de cortar nossos inimigos…
O básico é compreender que um militante não é uma máquina de cumprir tarefas, que se alguém está passando por situações que envolvem cuidado que antes não eram parte de sua rotina (pai, mãe, avós ficando idosos e exigindo cuidados) isso não faz delas menos militantes ou menos sérias em seu compromisso revolucionário mas que a organização ao saber disso precisa ser capaz de realizar o destaque de outras pessoas para realizar as atividades daquele camarada.
O básico é parar de abandonar camaradas que são pais e mães e não conseguem sequer entender o que ocorre na organização quem dirá disputá-la, é entender que se há todo um esforço para que a vida dos militantes se transforme na organização, não dá simplesmente para suprimir parte da vida deles só porque eles tiveram filhos, algo totalmente normal.
O básico é compreender que nós podemos adoecer e isso não nos torna menores, menos militantes, e que é responsabilidade da organização contribuir com a sanidade de seus militantes não o contrário!
O básico é entender que se um dos fundamentos do Marxismo é que o trabalho origina nossa própria humanidade isso ocorre também com nossos camaradas então, ao estar com novas rotinas de emprego, desemprego ou subemprego isso também altera substancialmente a atuação de cada um desses camaradas na organização mas nada disso deve se tornar uma culpa como já vi muitas vezes acontecer “desculpa por não conseguir fazer tal tarefa camarada, estou trabalhando” como se só fosse possível ser comunista se o seu trabalho for a própria organização.
O básico é entender que estamos todos aqui para construir a revolução brasileira, fazer grandes amizades, eventualmente um grande amor, etc é totalmente acessório e não deve nunca ser fundamento político para promoção de nossos quadros.
Sobre esse último ponto, é responsabilidade coletiva da organização saber se as direções moram juntas, se são companheiras, casadas entre si, e mesmo quais tarefas precisam ser cumpridas antes de pensarmos os destaques. Senão sempre vai ser esse ato abstrato de “fulano é um ótimo quadro”, etc… Até a burguesia consegue compreender que em processos de escolhas não se deve necessariamente suprimir as reações interpessoais entre candidatos mas é necessário ter consciência delas para evitar distorções relacionadas a isso.
O básico é sabermos que só deixaremos de ser uma seita quando nossa luta não for só baseada na auto-construção e promoção mas na identificação profunda com a classe trabalhadora que só vai se dar quando nossas ações não se refletirem só pra dentro, mas também para fora.
Uma nova polêmica….
Por fim, apresento uma nova polêmica onde identifico problemas parecidos com o que vejo apresentados acima que é a questão do Jornal.
Há menos de 3 meses para o Congresso queremos lançar a quaisquer custos um jornal nacionalizado, que já tem nome, identidade visual, etc…
Vamos cobrar militantes do país inteiro a entregar um jornal que não foram convencidos em congresso que deveria existir e que deveria ser desse jeito, ou seja, estaremos cobrando uma prova de fidelidade.
Concordo que precisamos ter um jornal nacionalizado mas a maneira com que estamos atravessando tudo para fazer o “Jornal Palmares” existir antes do congresso me parece sempre a mesma lógica se repetindo de novo e de novo… “Se o jornal existir quando chegarmos no congresso, o peso da proposta daqueles que o defendem será maior”.
Então termino com um apelo…
Se há coisas que não estamos dispostos a discutir nesse Congresso, se há pontos que já estão amarrados, se há questões que não serão abertas mesmo sendo fundante para esse novo momento do Comunismo no Brasil que nossas direções apresentem quais são esses pontos! Pois sem isso, não será possível confiar nessa organização pois ela não está fazendo o básico que é confiar na capacidade crítica de seus próprios militantes e tentando passar o centralismo democrático como um golpe.
Eu quero provas de confiança mútua não testes de fidelidade cega!
Há braços