'Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista (parte 2): História da economia socialista soviética - O comunismo de guerra' (camarada Glushkovinho)

Para começar esse esforço de formulação positiva, precisamos estabelecer a história do desenvolvimento da parcela socialista da economia na União Soviética.

'Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista (parte 2): História da economia socialista soviética - O comunismo de guerra' (camarada Glushkovinho)

Por camarada Glushkovinho para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,

Inicialmente esse conjunto de escritos que estou batizando de “Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista” era para ser apenas um simples texto em 3 partes: 1 - Por que não defendemos modelo Chinês; 2 - História da parcela socialista da economia na União Soviética; 3 - Que tipo de economia defendem os marxistas leninistas.

Depois do texto bater 57 páginas de word e eu não estar nem na metade, comecei a aceitar o fato de que eu não iria conseguir terminar esse texto antes da etapa nacional do congresso. Então pretendo publicar ao longo das próximas semanas e meses cada parte do meu texto original conforme minha disponibilidade de tempo.

Recomendo a leitura consecutiva dos textos, visto que eles eram originalmente apenas um texto gigante com considerações a respeito da ordem de exposição dos conceitos.

Agradeço a compreensão!


2 - Uma breve história da economia socialista soviética

Para começar esse esforço de formulação positiva, precisamos estabelecer a história do desenvolvimento da parcela socialista da economia na União Soviética.

Primeiro período: O comunismo de guerra e o nascimento traumático do socialismo das entranhas do capitalismo (1917 - 1922).

“Camaradas operários, soldados, camponeses e todos os trabalhadores! Tome todo o poder local em suas próprias mãos. Tome e guarde como a menina dos seus olhos os grãos, as fábricas, os instrumentos, os produtos e o transporte - tudo isso é de agora em diante inteiramente seu; eles são propriedade pública.” - Lênin como presidente da Sovnarkom, Novembro de 1917 - Decree on Transfer of Power and the Means of Production to the Toilers (Decreto sobre Transferência de Poder e Meios de Produção aos Trabalhadores)

Imediatamente após tomar o poder, os bolcheviques confiscaram a grande indústria (tanto privada como estatal), confiscaram os bancos, confiscaram os aparatos de comunicação (telégrafos, sistema postal e jornais), confiscaram as poucas usinas de energia elétrica, confiscaram toda indústria de transporte (trens e as linhas de trem), confiscaram as minas, as pedreiras, as jazidas de petróleo, as madeireiras, toda grande produção e unidade de extração de recursos naturais. Toda essa parcela da economia, que representava apenas uma pequena parte da economia como um todo, que os bolcheviques batizaram de “postos de comando da economia”, foi confiscada imediatamente e posta sob a racionalização do esforço de guerra. O embrião do plano socialista surgiu do esforço de guerra do comunismo de guerra. Toda sociedade Russa foi voltada para o esforço de defesa do estado operário entre 1918 e 1920.

A produção era inteiramente voltada à indústria bélica. O trabalho planejado era majoritariamente organizado sob a estrutura do exército vermelho. As brigadas de trabalho eram formadas de soldados que eram postos ao trabalho como parte de uma estrutura hierárquica militar voltada à produção. A organização da parcela socialista da economia recém confiscada e posta sob o controle operário era ainda extremamente imatura. Os administradores soviéticos, dados as condições objetivas em que estavam inseridos, não agiam de forma a planejar minuciosamente a economia. Era uma situação emergencial, e como tal, o planejamento no comunismo de guerra era simplesmente um esforço pouco planejado para aumentar a produção da indústria bélica o mais rápido possível. Todo o esforço estava voltado à produção imediata de tudo aquilo necessário para alimentar o operário urbano e o soldado do exército vermelho, além de fornecer ininterruptamente todo o material de guerra necessário para o exército vermelho expulsar o inimigo do território que se tornaria a União Soviética.

Mas o que foi o comunismo de guerra e qual a sua relação com a parcela socialista da economia na Rússia?

“Nos últimos dias, isto é, no primeiro terço de Maio de 1918, a situação política agudizou-se extraordinariamente em virtude de causas tanto externas como internas:

Primeiro, intensificou-se a ofensiva direta das tropas contra-revolucionárias (de Semiónov e outros) com a ajuda dos japoneses no Extremo Oriente e, em ligação com isto, uma série de indícios apontou a possibilidade de um acordo de toda a coligação imperialista anti-alemã na base da apresentação de um ultimato à Rússia: ou lutas contra a Alemanha, ou te invadirão os japoneses com a nossa ajuda.

Segundo, depois (do acordo) de Brest, na política alemã obteve a supremacia, em geral, o partido militar, que pode agora também de um momento para o outro obter a supremacia acerca da questão de uma ofensiva geral imediata contra a Rússia, isto é, pôr de lado por completo a outra política dos meios imperialistas burgueses da Alemanha, que aspiram a novas anexações na Rússia mas que temporariamente querem a paz com ela e não uma ofensiva geral contra ela.

Terceiro, a restauração do monarquismo burguês-latifundiário na Ucrânia com o apoio dos elementos democratas-constitucionalistas-outubristas da burguesia de toda a Rússia e com a ajuda das tropas alemãs não podia deixar de agudizar a luta com a contra-revolução no nosso país, não podia deixar de dar asas aos planos, de dar ânimo à nossa contra-revolução.

Quarto, a desorganização nos abastecimentos agudizou-se extremamente e conduziu em muitos lugares a uma verdadeira fome, tanto em consequência de Rostov-do-Don ter ficado cortado de nós, como em consequência dos esforços da pequena burguesia e dos capitalistas em geral para frustrar o monopólio dos cereais e da oposição insuficientemente firme, disciplinada e implacável da classe dominante, isto é, do proletariado, a essas aspirações, esforços e tentativas.

(...) Na questão da preparação militar intensificada, tal como na questão da luta contra a fome, avança para primeiro plano a tarefa da organização.

Não se pode sequer falar de uma preparação militar minimamente séria sem superar as dificuldades alimentares, sem assegurar à população um regular abastecimento de pão, sem introduzir a ordem mais severa no transporte ferroviário, sem criar nas massas da população trabalhadora (e não só nas suas camadas superiores) uma disciplina verdadeiramente férrea. É precisamente neste domínio que estamos mais atrasados.(...) É necessária uma luta implacável contra a burguesia, que levantou a cabeça nos últimos dias como consequência das circunstâncias acima indicadas, é necessário declarar o estado de sítio, fechar os jornais, prender seus líderes, etc, etc. Estas medidas são tão necessárias como a campanha militar contra a burguesia rural, que retém os excedentes de cereais e torpedeia o monopólio dos cereais. Sem a disciplina férrea do proletariado é impossível salvarmo-nos da contra-revolução e da fome.” - Lênin, 12 ou 13 de Maio de 1918 - Teses sobre a Situação Política Actual, grifos meus

O comunismo de guerra foi a resposta pragmática do governo bolchevique em 1918 para a situação contra-revolucionária que se formava. As forças reacionárias estavam se agrupando e conspirando com capitalistas estrangeiros para derrubar o estado operário recém criado. O futuro da revolução estava em questão, e os bolcheviques não hesitaram em fazer tudo o que foi necessário. Foi instituído uma política extremamente autoritária e centralizada:

  • Toda indústria vital (os assim chamados “altos postos da economia” da grande produção) foi nacionalizada e submetida ao controle direto do estado operário.
  • Foram proibidas as greves dos operários e implementado um regime de extrema disciplina para com os trabalhadores da indústria.
  • Foram criadas brigadas de trabalho forçado para organizar o trabalho.
  • Foi nacionalizado e submetido ao comando militar (ou quase militar) toda a rede de telégrafos e transportes.
  • Todos os bancos foram nacionalizados e postos diretamente sob controle do estado operário.
  • Foi implementado um racionamento estrito da comida tanto para a cidade como para o campo.
  • Foi implementada a coleta forçada de grãos, onde os camponeses eram forçados a entregar todo o excesso da produção de grãos que era mais do que o necessário para sua sobrevivência. Por vezes, até uma parcela do que era necessário para a sobrevivência do camponês era requisitada forçadamente.
  • Foi instituído um controle central do esforço de guerra que coordenaria a requisição de grãos e o transporte dos bens materiais e da indústria para a priorização absoluta das necessidades materiais dos exércitos bolcheviques e do operário urbano.

Ou seja, como parte da política de comunismo de guerra, a parcela socialista da economia já havia sido estabelecida. No caso, ela era composta pelos “altos postos da economia”, a grande indústria vital socializada. Os bolcheviques tinham sob seu controle direto os trens, os telégrafos, as indústrias bélicas (e as indústrias necessárias para alimentar as bélicas), os bancos e a comida. E foi com o controle estrito e planejado que em pouco mais de 2 anos o comunismo de guerra promoveu a garantia da vitória para o estado operário.

Não podemos definir um método específico do planejamento socialista durante o comunismo de guerra. Isso porque o planejamento da parcela socialista da economia era feito de maneira ad hoc, exigindo para cada situação uma solução e método específico para responder às demandas emergenciais do estado operário. Essas soluções envolviam inclusive elementos que tratavam da parcela socialista da economia, por vezes como uma indústria capitalista monopolista estatal que buscava vender a um preço fixo ou lucrar, por vezes como um meio de diretamente fornecer certo recurso econômico sem preocupações de lucro ou venda (muitas vezes sem contabilidade apropriada). Ou seja, era uma situação confusa, cujo intuito era meramente resolver um problema presente através de qualquer meio que fosse mais adequado, não necessariamente através de um esforço que se preocupava com a expansão da parcela socialista da economia.

A justificativa para caracterizarmos essa parcela da economia como socialista era pois que a produção industrial do nascente estado operário não era organizada através das trocas de mercadorias. O minério de ferro ao ser extraído, transportado para o refino, transformado em liga, transportado para a fábrica, para ser finalmente transformado em munição para fuzil não passava por uma cadeia logística composta por unidades de produção que compravam e vendiam material. A pólvora para a munição de artilharia que chegava até o exército vermelho não era feita por uma empresa que vendia sua produção para o estado operário. Era feita pela administração direta da extração dos recursos naturais e sua transformação na indústria sem passar pela forma de mercadoria e sem gerar lucro em nenhuma etapa do processo. A organização da produção industrial no comunismo de guerra era feita sem o intermédio da mercadoria.

Ainda que o dinheiro continuava existindo e cumprindo sua função como mercadoria universal para ser meio de troca de mercadorias, o dinheiro também servia como meio de troca e de unidade de contabilidade de produtos não-mercantis frutos do planejamento socialista sob o comunismo de guerra. É claro que, ao utilizar o dinheiro como um dos métodos contábeis para as trocas do planejamento socialista, o dinheiro nem sempre representava corretamente a proporção do trabalho socialmente necessário (medido em horas de trabalho), já que seu mecanismo de formação de preços (o mercado) não estava presente para regular sua magnitude na produção propriamente socialista. Como efeito dessa ausência de um mecanismo de regulação da magnitude do dinheiro para com a magnitude do tempo de trabalho socialmente necessário, criava-se ao longo do tempo descompassos entre o valor expresso pelo dinheiro como política de estado e o tempo de trabalho socialmente necessário, já que o preço fixo estipulado pelo estado operário não acompanhava as variações do tempo de trabalho socialmente necessário. Esse descompasso entre o tempo de trabalho socialmente necessário dos produtos da parcela socialista da economia expressa no dinheiro e o trabalho socialmente necessário efetivamente existente nestes produtos foi fruto de instabilidade econômica tanto para o comunismo de guerra como para o plano GOELRO-NEP. Quando chegarmos no período de recuperação econômica da segunda guerra mundial, essa problemática que surge logo agora no comunismo de guerra ganha proeminência suficiente para se tornar a causa principal dos problemas econômicos na União Soviética pós-guerra.

Em contrapartida à produção industrial, a produção agrária era seu completo oposto: sendo majoritariamente criada a partir de parcelas de terra de controle efetivamente privado, os grãos e outros gêneros alimentícios eram ou comprados pelo estado operário a preço fixo, ou trocados por produtos industriais, ou confiscados sem contrapartida como forma de punição. Era uma situação que colocava o nascente estado operário numa posição extremamente precária ao estar à mercê da colaboração de uma classe social cujos interesses objetivos eram contrários aos da revolução de Outubro.

A política de coleta de grãos era uma questão primordial para o nascente estado operário. Como resposta emergencial à fome generalizada que se configurava na cidade a partir de Maio de 1918, o governo bolchevique imbuiu o Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos (Narkomprod) de poderes excepcionais:

“(...)

Tendo em conta esta situação e considerando que apenas através de uma contabilidade rigorosa e de uma distribuição uniforme de todos os estoques de cereais da Rússia é possível sair da crise do abastecimento alimentar, o Comitê Central Executivo de toda a Rússia decretou:

(1) Mantendo firmemente o monopólio dos grãos e os preços fixos e também conduzindo uma luta impiedosa contra os especuladores e traficantes ilegais de grãos, obrigar cada detentor de grãos a declarar a renúncia de todos os excedentes, exceto a quantidade necessária para consumo nas normas estabelecidas até o próximo colheita, uma semana após a notificação deste decreto em cada volost. As regras aplicáveis às encomendas serão definidas pelos órgãos locais de aquisição de alimentos do Narkomprod.

(2) Convidar todos os trabalhadores e camponeses sem propriedade a unirem-se imediatamente numa luta impiedosa contra os kulaks.

(3) Declarar inimigos da nação todas as pessoas que tenham excedentes de cereais e não os entreguem nos postos de abastecimento e até mesmo dissipem os stocks de cereais para a sua própria bebida caseira em vez de os entregarem nos postos de recolha; levá-los perante os Tribunais Revolucionários, colocá-los na prisão por pelo menos dez anos, confiscar todos os seus pertences, expulsá-los da obshchina e condenar os detentores de cerveja caseira ao trabalho forçado em obras públicas.

(4) No caso de descoberta de qualquer excedente de cereais que não tenha sido declarado para entrega, nos termos do ponto 1, os cereais serão requisitados sem pagamento, sendo metade do valor devido a preços fixos pelo excedente não declarado. pago às pessoas que participaram na descoberta dos excedentes, depois de efectivamente recebidos nos postos de recolha, e a outra metade à Comunidade Agrícola. As informações sobre a descoberta de excedentes devem ser comunicadas aos órgãos locais de aquisição de alimentos.

Considerando também que a luta contra a crise da aquisição de alimentos exige a adopção de medidas rápidas e decisivas, que a realização mais frutuosa de tais medidas exige, por sua vez, a centralização de todas as decisões sobre questões alimentares numa única instituição, e que tal instituição é a O Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos, o Comité Executivo Central de toda a Rússia, decretou - com o propósito de uma luta mais bem-sucedida contra a crise alimentar - atribuir ao Comissário do Povo para a Aquisição de Alimentos os seguintes poderes:

(1) Emitir decisões obrigatórias sobre questões de aquisição de alimentos, excedendo os limites normais de competência do Comissário do Povo para a Aquisição de Alimentos.

(2) Revogar instruções dos órgãos e instituições locais de aquisição de alimentos que contradizem os planos e atividades do Comissário do Povo para a Aquisição de Alimentos.

(3) Solicitar às instituições e organizações de todos os departamentos o cumprimento indiscutível e imediato das decisões do comissário em matéria de aquisição de alimentos.

(4) Fazer uso de tropas armadas em caso de resistência à requisição de cereais e outros géneros alimentícios.

(5) Demitir ou reorganizar os órgãos de aquisição de alimentos nas localidades, caso se oponham às decisões do Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos.

(6) Demitir, demitir, levar ao Tribunal Revolucionário e submeter à prisão nomeados e funcionários de todos os departamentos e organizações sociais, se interferirem de forma perturbadora nas decisões do comissariado.

(7) Transferir os presentes poderes, exceto o direito de prisão do ponto 6, para outras pessoas e instituições nas localidades mediante autorização do Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos.

(8) Todas as medidas dos Comissários do Povo para a Aquisição de Alimentos relacionadas, pela sua natureza, com o Comissariado do Povo dos Transportes e com o VSNKh são implementadas mediante acordo com os departamentos correspondentes.

(9) Todas as instruções e decisões do Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos, emitidas em virtude dos actuais poderes, são examinadas pelo seu colégio, que tem o direito - sem interromper a sua execução - de recorrer delas perante o Soviete dos Comissários do Povo.

(10) O presente decreto entra em vigor no dia da sua assinatura e será notificado por telégrafo.” - All-Russian Central Executive Committee (Comitê Central Executivo de toda a Rússia), 13 de Maio de 1918 - Decree on Food Procurement (Decreto sobre a Aquisição de Alimentos), grifos meus - https://soviethistory.msu.edu/1917-2/food-supply/food-supply-texts/decree-on-food-procurement/

Podemos ver que o germe da contradição entre campo e cidade surge desde o início do socialismo na Rússia. Sempre houve um grande problema por parte das autoridades soviéticas quanto ao abastecimento de alimento das cidades. A política do comunismo de guerra era uma política inteiramente contra os interesses do proprietário camponês, tanto pequeno como grande, mas principalmente do grande camponês, o Kulak. Isso era de tal forma pois a cidade não sobrevive sem o alimento proveniente do campo. Os interesses objetivos do campesinato pesavam contra os interesses do nascente estado operário. O que colocava o campesinato e o estado operário num caminho inevitável de colisão. Isso culminaria no processo de coletivização forçada do campo 10 anos depois, mas que por hora apenas culmina na política de confisco de grãos.

O esforço pela coleta de grãos só foi possível de ser concretizado com a ação conjunta do Narkomprod com os Comitês dos Camponeses Pobres (Kombed) e dos soviets locais. Foi apenas com a colaboração dos camponeses pobres que a coleta de grãos foi efetivada, sob a disciplina de ferro imposta pela autoridade central através dos poderes excepcionais do Narkomprod. Daí que surge a aliança entre o camponês e o operário. Tendo o governo bolchevique inimigos muito maiores e mais fortes que o kulak pulverizado pelo campo, era de interesse do estado operário fazer o máximo possível para evitar uma guerra declarada entre campo e cidade que culminaria numa distração do esforço de guerra e na fome generalizada. A aliança entre o operário urbano e o camponês pobre era tênue e baseada num inimigo em comum a fim de combater a restauração do capitalismo ou do czarismo na Rússia. A aliança entre operários e camponeses em 1918 não se deu por interesses em comum que permitiriam a construção do socialismo. Os interesses objetivos do campesinato eram contrários aos dos operários urbanos, isto é, da edificação da parcela socialista da economia e da transição socialista.

O início da organização dos “exércitos da comida”, organizações criadas com o intuito de implementar a coleta forçada de grãos dos kulaks para pôr em prática o decreto de 13 de Maio, foi crucial para combater a fome em 1918 e 1919. Suas responsabilidades eram:

“(a) Colher grãos de inverno em propriedades de antigos proprietários;

(b) Colher cereais nas áreas da linha da frente;

(c) Colher grãos nas terras de kulaks notórios e pessoas ricas;

(d) Ajudar na colheita oportuna de grãos em todos os lugares e na transferência de todos os excedentes para armazéns estatais.” - Lênin, 4 de Agosto de 1918 - Collected Works, 4th English Edition, Volume 27 (Moscow: Progress Publishers, 1972), pages 454-456 - https://soviethistory.msu.edu/1917-2/food-supply/food-supply-texts/food-requisition-detachments/

Foi durante o acirramento da guerra civil, ao final de 1918, que a Rússia foi vítima de um bloqueio completo de seu comércio exterior. Se as possibilidades para a compra de grãos do exterior para atenuar a fome na Rússia já eram poucas, em 1919 foi o ano em que nenhum tipo de importação de comida aconteceu, fruto do embargo econômico através da política de apoio aos exércitos brancos das potências capitalistas vitoriosas da primeira guerra mundial. Como consequência desse cenário de fome atenuado, a política de confisco de grãos, que já em Maio de 1918 previa o confisco forçado de grãos, se tornou ainda mais elementar para a sobrevivência do estado operário nos piores meses da guerra civil Russa. Em janeiro de 1919, a política de Maio de 1918 foi transformada na Prodrazverstka, a política de grãos que se manteve até a promulgação da Prodnalog em Março de 1921:

“A fim de fornecer urgentemente pão para as necessidades do Exército Vermelho e das áreas sem pão e para desenvolver os decretos do Comitê Executivo Central dos Sovietes de toda a Rússia sobre o monopólio de grãos (Coleção Uzak. 1918, No. 38, Art. 498 ) e sobre o imposto em espécie (Coleção Uzak. 1918 No. 82, Art. 864 e No. 99, Art. 1012) estabelece o seguinte procedimento para a alienação dos excedentes de cereais e forragens à disposição do Estado.

Art. 1 - Toda a quantidade de cereais e forragens necessárias à satisfação das necessidades do Estado será coletada da população entre as províncias produtoras.

Art. 2 - As províncias a que se aplica a coleta, bem como a quantidade de cereais e cereais forrageiros a ser coletada em cada província, são fixadas pelo Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos, de acordo com a dimensão da colheita, das reservas e dos padrões de consumo.

Art. 3 - O cálculo para coleta inclui a totalidade do ?? (семейного и продовольственного хлеба - talvez signifique produção familiar e produção para venda), bem como das forragens de cereais, já preparadas pelas autoridades alimentares de acordo com as ordens do Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos.Art.

4 - Está adicionado às atribuições estabelecidas do Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos, por despacho das comissões provinciais de alimentação, definir a quantidade de pão e cereais forrageiros necessários às necessidades da população urbana e camponesa local, que não dispõe de pão próprio na norma exigida.

Art. 5 - A base geral de coleta é estabelecida pelo Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos.

Art. 6 - A totalidade do pão e cereais forrageiros devidos à província de acordo com a atribuição, nos termos do art. 4º, deverão ser coletados da população a preços fixos estabelecidos e entregues até 15 de junho de 1919.

Art. 7 - Setenta por cento da quantidade total de grãos e forragens devidos à província de acordo com o cálculo para coleta devem ser entregues até 1º de março de 1919.Art.

8 - O Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos tem o direito, dependendo dos tipos da próxima colheita, de reduzir a quantidade a ser entregue adicionalmente após 1º de março.

Art. 9 - Os proprietários rurais que tenham entregue pelo menos setenta por cento até 1 de Março e a quantidade restante até 15 de Junho de pão e forragem que lhes é exigida para coleta estão isentos de impostos em espécie.

Art. 10 - Os proprietários rurais que não entregarem no prazo a quantidade de grãos forrageiros que lhes são devidos estão sujeitos à coleta compulsória gratuita das reservas que encontrarem em sua posse. Medidas severas são aplicadas àqueles que persistem e escondem maliciosamente as suas reservas, incluindo confisco de bens e prisão de acordo com sentenças do tribunal popular.

Observação. O procedimento e o direito de recurso contra atribuições incorretas são estabelecidos pelo Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos.” - Совет народных комиссаров (Conselho dos Comissários do Povo), 11 de Janeiro de 1919 - О разверстке между производящими губерниями зерновых хлебов и фуража, подлежащих отчуждению в распоряжение государства (Sobre a repartição entre as províncias produtoras de grãos e forragens, passíveis de coleta à disposição do Estado) - https://istmat.org/node/35464

Podemos resumir a política agrária do comunismo de guerra da seguinte forma:

  1. O produtor de grãos era forçado a se submeter à coleta de grãos do estado operário através do Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos.
  2. O Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos definia a quantidade necessária a ser coletada do produtor baseado na quantidade de grãos necessários para abastecer as cidades do estado operário e no número de produtores existentes.
  3. Para os produtores que colaboravam com a coleta forçada de grãos, o Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos comprava os grãos coletados através de um preço fixo.
  4. Quando havia um excedente de produção mesmo depois de coletada a quantidade definida pelo Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos, o produtor rural que colaborasse com a coleta era isento de imposto para vender apenas para o estado esse excedente pós coleta.
  5. Para os produtores que não colaboravam com a coleta forçada de grãos, todo grão achado era coletado através dos “exércitos da comida” sem contrapartida de forma punitiva até que se atingisse a quantidade estipulada da coleta.
  6. Para os produtores que repetidamente não colaboravam com a coleta, eram confiscadas suas propriedades e o produtor era encarcerado por pelo menos 10 anos.

Essa foi a política agrária do estado operário para os anos de 1919, 1920 e de 1921, quando ocorreu a substituição da Prodrazverstka pela Prodnalog (política de imposto em espécie) em Março de 1921:

“Art. 1 - Para garantir uma gestão correta e tranquila da economia com base numa disposição mais livre do agricultor com os produtos do seu trabalho e os seus próprios meios econômicos, fortalecer a economia camponesa e aumentar a sua produtividade, bem como estabelecer com precisão as obrigações do estado recaindo sobre os agricultores, a coleta forçada como método de aquisição estatal de alimentos, matérias-primas e forragens é substituída por um imposto em espécie.

Art. 2 - Este imposto deveria ser inferior ao imposto até agora através da coleta forçada. O montante do imposto deve ser calculado de modo a cobrir as necessidades mais urgentes do exército, dos trabalhadores urbanos e da população não agrícola. O montante total do imposto deve ser constantemente reduzido, uma vez que a restauração dos transportes e da indústria permite ao governo soviético receber produtos agrícolas em troca de produtos fabris e artesanais.

Art. 3 - O imposto é cobrado na forma de um percentual ou parcela dos produtos produzidos na fazenda, com base na colheita, no número de comedores na fazenda e na presença de gado nela.

Art. 4 - O imposto deve ser progressivo; a porcentagem de deduções para explorações agrícolas de camponeses médios, proprietários de baixos rendimentos e para explorações agrícolas de trabalhadores urbanos deve ser reduzida.

As explorações agrícolas dos camponeses mais pobres podem estar isentas de alguns e, em casos excepcionais, de todos os tipos de impostos em espécie.

Proprietários camponeses diligentes que aumentam a área semeada em suas fazendas, bem como aumentam a produtividade da fazenda como um todo, recebem benefícios pela aplicação do imposto em espécie.

Art. 5 - A lei fiscal deve ser elaborada de tal forma e publicada num momento em que os agricultores, mesmo antes do início do trabalho de campo da Primavera, sejam informados com a maior precisão possível sobre a dimensão das obrigações que lhes incumbem.

Art. 6 - A entrega dos produtos tributados ao Estado termina dentro de prazos precisamente estabelecidos em lei.

Art. 7 - A responsabilidade pelo cumprimento do imposto é atribuída a cada proprietário individual, e os órgãos do poder soviético são instruídos a impor penalidades a todos que não cumprirem o imposto.

A punição coletiva é abolida.

Para controlar a aplicação e implementação do imposto, são formadas organizações de camponeses locais de acordo com grupos de contribuintes de diferentes montantes de impostos.

Art. 8 - Todos os fornecimentos de alimentos, matérias-primas e forragens que permanecem com os agricultores depois de terem cumprido o imposto estão à sua inteira disposição e podem ser utilizados por eles para melhorar e fortalecer a sua economia, para aumentar o consumo pessoal e para troca por produtos das indústrias fabris e artesanais e da produção agrícola.

A troca é permitida dentro dos limites do volume de negócios económico local, tanto através de organizações cooperativas como em mercados e bazares.

Art. 9 - Os agricultores que desejem entregar o excedente que lhes resta após completar o imposto ao Estado, em troca desses excedentes voluntariamente entregues, devem receber bens de consumo e instrumentos agrícolas. Para tanto, é criado um estoque estatal permanente de alfaias agrícolas e bens de consumo, tanto de produtos produzidos internamente como de produtos adquiridos no exterior. Para este último efeito, são alocadas parte do fundo estadual de ouro e parte das matérias-primas colhidas.

Art. 10 - O abastecimento da população rural mais pobre é realizado pelo Estado de acordo com regras especiais.

Art. 11 - Para promover esta lei, o Comitê Executivo Central de toda a Rússia convida o Conselho dos Comissários do Povo a emitir regulamentos detalhados correspondentes no prazo máximo de um mês.” - Всероссийского Центрального Исполнительного Комитета (Comitê Executivo Central de Toda a Rússia), 21 de Março de 1921 - О замене продовольственной и сырьевой разверстки натуральным налогом (Sobre a substituição da atribuição de alimentos e matérias-primas por um imposto em espécie), grifos meus - https://istmat.org/node/46014

Com essa mudança de política, o decreto que proibia a comercialização de produtos agrícolas também é alterado:

“O Comitê Executivo Central de toda a Rússia, por resolução publicada na Coleção Uzak. 1921 No. 26, Art. 147, concedeu à população camponesa, que cumpria as obrigações do Estado, dar e comprar livremente os restantes excedentes de produtos agrícolas. Em conformidade com isto, o Conselho dos Comissários do Povo decide:

Art. 1 - Permitir imediatamente a livre troca, venda e compra:
  1. Pão, grãos e alimentos para animais nas províncias: Arkhangelsk, Ekaterinburg, Penza, Perm, Ural, Tula, Astrakhan, Tyumen, Vitebsk, Vyatka, Vladimir, Petrogrado, Vologda, Gomel, Chelyabinsk, Ivanovo, Kaluga, Kostroma, Moscou, Nizhny Novgorod , Novgorod, Olonets, Pskov, Severodvinsk, Smolensk, Cherepovets, Tver, Yaroslavl, Repúblicas Tártaras e Chuváchias, Pokrovsk, Voronezh, Samara, Saratov, Kursk, Ufa, Simbirsk, Orenburg, Ryazan, Tsaritsyn, Tambov', Oryol, Comuna do Trabalho de Alemães do Volga ( Nemkommuny) e a República Bashkir (Bashrespubliki).
  2. Batatas nas províncias: Arkhangelsk, Samara, Petrogrado, Severodvinsk, Tver, Vyatka, Oryol, Moscou, Perm, Tula, Ivanovo, Ryazan, Tsaritsyn, Kaluga, Tyumen e Bryansk.
  3. Sena nas províncias: Voronezh, Moscou, Yekaterinburg, Saratov, Tambov, Tula, Ural, Tsaritsyn, Astrakhan. Vitebsk, Ivanovo, Cherepovets, Repúblicas Tártaras (Tatrespubliki). Ryazan, Kaluga e Oryol.
Observação. Obrigar o Comissariado do Povo para a Aquisição de Alimentos de todas as localidades (províncias e distritos) onde a população cumpre obrigações estatais a pôr em vigor este decreto.

Art. 2 - Permitir a livre circulação de cereais e produtos alimentares à base de cereais, batatas e feno, puxados por cavalos, nas províncias indicadas para efeitos de troca, venda e compra.

Art. 3 - Remover todos os destacamentos de barragem que operam nas províncias indicadas, tanto em vias puxadas por cavalos como em ferrovias e hidrovias.

Observação. Segurança ferroviária e hidroviária é realizada exclusivamente com o objetivo de proteger o transporte da destruição.

Art. 4 - Esta resolução não cancela o procedimento de aquisição e preservação de sementes com base nos regulamentos emitidos em conformidade com o decreto do 8º Congresso do Comitê Executivo Central de toda a Rússia sobre ‘medidas para fortalecer e desenvolver a agricultura camponesa’.

Art. 5 - Para semear os campos da forma mais completa possível, estabelece-se que os agricultores que venderam pão ou batata durante o período de sementeira e, em consequência da venda, não semearam completamente os seus campos, sejam estritamente responsabilizados perante os Comitês de Expansão das Culturas e Melhoria do Cultivo da Terra (comitês de semeadura).” - Совет народных комиссаров (Conselho dos Comissários do Povo), 28 de Março de 1921 - О свободном обмене, покупке и продаже сельскохозяйственных продуктов в губерниях, закончивших разверстку (Sobre a livre troca, compra e venda de produtos agrícolas nas províncias que concluíram a atribuição) - https://istmat.org/node/46016

Mesmo com todas essas políticas e mesmo com o esforço ferrenho dos bolcheviques durante o período, a época do comunismo de guerra foi marcada por grandes ocorrências endêmicas de fome, fruto da incapacidade do estado operário de coletar grãos suficientes dos Kulaks e dos camponeses médios e pobres. A fome da guerra civil, e do comunismo de guerra por consequência, culminou na grande fome de 1921-1922. Após uma quebra das colheitas, não havia produção agrária suficiente para alimentar todo o país, e um grande esforço de ajuda humanitária internacional foi necessário para salvar milhões da inanição. A fome da guerra civil só foi resolvida depois de surtido os efeitos da Prodnalog a partir de 1923.

Foi dessa forma, portanto, que se estabeleceram as políticas econômicas do comunismo de guerra, tanto para o operário como para o camponês. O comunismo de guerra e toda sua violência foi fruto das necessidades materiais da revolução e da defesa do estado operário. Em resumo, temos até aqui a coletivização dos meios de produção industriais, formando a pequena parcela socialista da economia, o controle direto do governo bolchevique à tudo que é de importância ao estado operário e o acirramento a partir de agora da contradição campo-cidade.

(Continua na parte 3)