'Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista (parte 3): História da economia socialista soviética - A política GOELRO-NEP' (camarada Glushkovinho)

Para os bolcheviques, a política econômica principal sempre foi o plano GOELRO, pois é ele que efetivamente se tratava na prática de um “zerésimo plano quinquenal” para a edificação da grande indústria pesada, maior representante da parcela socialista da economia.

'Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista (parte 3): História da economia socialista soviética - A política GOELRO-NEP' (camarada Glushkovinho)

Por camarada Glushkovinho para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,

Inicialmente esse conjunto de escritos que estou batizando de “Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista” era para ser apenas um simples texto em 3 partes: 1 - Por que não defendemos modelo Chinês; 2 - História da parcela socialista da economia na União Soviética; 3 - Que tipo de economia defendem os marxistas leninistas.

Depois do texto bater 57 páginas de word e eu não estar nem na metade, comecei a aceitar o fato de que eu não iria conseguir terminar esse texto antes da etapa nacional do congresso. Então pretendo publicar ao longo das próximas semanas e meses cada parte do meu texto original conforme minha disponibilidade de tempo.

Recomendo a leitura consecutiva dos textos, visto que eles eram originalmente apenas um texto gigante com considerações a respeito da ordem de exposição dos conceitos.

Agradeço a compreensão!


Segundo período: A política GOELRO-NEP, a estabilização das relações econômicas e a preparação das bases materiais da transição socialista (1922 - 1927).

Garantida a vitória militar da guerra civil russa em 1920, pela primeira vez em 3 anos os bolcheviques puderam recuperar o fôlego. A guerra não estava ganha ainda, mas já estava claro para todos que o estado operário seria triunfante. Seria apenas uma questão de tempo para o exército vermelho expulsar todos os invasores, algo que só foi finalizado ao final de 1923 com a última ofensiva da expedição de Yakut no extremo oriente soviético.

Em 1920, ainda durante a guerra civil Russa, quando a situação já estava mais ou menos estabilizada e houve por parte do que se tornaria o governo soviético certa certeza sobre seu futuro, começou-se um esforço para a construção das bases materiais da transição socialista. O governo soviético então realiza seu primeiro grande ato: a política GOELRO-NEP, planejada em 1920, organizada em 1921 através da criação do Comitê de Planejamento Estatal (Gosplan) ao unificar as várias organizações de estado responsáveis por diferentes setores econômicos, e finalmente posta em prática em 1922, primeiro ano de atuação efetiva da estrutura de planejamento socialista do Gosplan. Enquanto a nova política de incentivo ao capitalismo promovia um apaziguamento das tensões entre campo e cidade ao mesmo tempo que estabilizava e reconstruia a base econômica soviética, o plano GOELRO é posto em prática para criar as bases materiais da transição socialista.

A guerra civil e a primeira guerra mundial trouxeram à Rússia grande miséria e destruição ao ponto de que a reprodução da vida tornou-se impossível para muitas pessoas, que sucumbiram aos milhões à fome e à devastação. Tamanha destruição material impedia o nascente estado operário de prover ao povo as mais básicas necessidades. O esforço de guerra, e a consequente política de comunismo de guerra, trouxe extensa destruição e miséria para a maior parte da população Russa, especialmente o camponês pobre. Então, com a vitória garantida e a autoridade do estado Russo restabelecida na maior parte da Rússia, o governo do estado operário voltou sua atenção ao desenvolvimento econômico emergencial para restabelecer as condições de reprodução social das cinzas de toda a destruição. A necessária política do comunismo de guerra teve um grande custo político e material. Essa política econômica por vezes causou os operários e camponeses a perderem a esperança no governo bolchevique e a alimentar revoltas como a grande revolta camponesa de Tambov e a revolta dos marinheiros de Kronstadt. Todas as revoltas foram eventualmente suprimidas pela autoridade central com um grande custo humano.

Lênin em dezembro de 1920 afirmou:

“Até o momento em que o Congresso dos Sovietes se reunir vocês irão receber um livro de seiscentas páginas – o plano para a eletrificação da Rússia. Esse plano foi construído por agrônomos e engenheiros de vanguarda. Nós não podemos expedir a realização dele sem a ajuda do capital e meios de produção estrangeiros. Porém, se nós desejarmos assistência, nós devemos pagar por ela. Até agora, nós estivemos enfrentando os capitalistas, e eles disseram que eles ou iriam nos estrangular ou nos forçar a pagar vinte mil milhões. Entretanto, eles não estão em posição de nos estrangular e nós não iremos pagar os débitos. No momento atual nós estamos gozando de um certo descanso. Enquanto nós estivermos em necessidade de assistência econômica nós estaremos dispostos a pagar vocês – é assim que nós apresentamos a questão e qualquer outra forma seria economicamente incorreta. A Rússia está em um estado de ruína industrial; ela está dez vezes pior, ou mais, do que antes da guerra. Se nos tivesse sido dito, três anos atrás, que nós estaríamos enfrentando todo o mundo capitalista por três anos, nós não acreditaríamos nisso. Agora, porém, nos será dito que restaurar a economia, com apenas um décimo da riqueza nacional do pré-guerra, é uma tarefa ainda mais difícil. E, de fato, é uma tarefa mais difícil do que lutar. Nós poderíamos lutar com a ajuda do entusiasmo das massas da classe trabalhadora e dos camponeses, que estavam se defendendo contra os senhores de terras. Atualmente não é uma questão de defesa contra os senhores de terras, mas de restaurar a vida econômica em perímetros que os camponeses não estão acostumados. Aqui a vitória não dependerá do entusiasmo, audácia ou autossacrifício, mas do esforço diário, monótono, pequeno e comum. Isso é indubitavelmente uma questão mais difícil. Onde nós devemos obter os meios de produção que nós precisamos? Nós devemos pagar para atrair os Americanos: eles são homens de negócios. E com o que nós devemos pagar? Com ouro? Porém, nós não podemos desperdiçar ouro. Nós temos pouco ouro sobrando. Nós temos pouco até para cobrir o programa de eletrificação. O engenheiro que esboçou o programa estimou que nós precisamos de, pelo menos, mil e cem milhões de rublos de ouro para realizar ela. Nós não temos tal estoque de ouro. Nem nós podemos pagar em matérias primas, porque nós ainda não alimentamos o nosso próprio povo. Quando, no Conselho dos Comissários do Povo, a questão se ergue de dar 100.000 poods de grão para os Italianos, o Comissário dos Povos para os Alimentos se levanta e protesta. Nós estamos barganhando por cada vagão de grãos. Sem grão nós não podemos desenvolver o comércio exterior. O que nós devemos dar então? Lixo? Eles têm lixo próprio o suficiente. Eles dizem, negociemos em grão; mas nós não podemos dar grão a eles. Portanto, nós propomos resolver o problema por meio das concessões.” - Lênin, 6 de Dezembro de 1920 - Discurso Proclamado em um Encontro de Ativistas da Organização de Moscou do P.C.R.(B.), grifos meus

Já nessa fala de Lênin temos uma explicação embrionária de como ele enxerga a questão da construção do socialismo através da NEP. Ao contrário do que a visão rasa sobre a NEP indica dizer, Lênin nunca sugeriu que a grande indústria deveria ser entregue aos capitalistas de coleirinha (ou os NEPman, como ficaram conhecidos). Concomitantemente ao plano GOELRO que priorizava a indústria pesada, era preciso restabelecer a produção da indústria leve. Contudo, o estado operário incipiente era extremamente limitado em sua capacidade organizativa e não detinha os meios para organizar toda a economia de uma só vez. Foi por isso que a NEP foi concebida: foi permitido o capitalismo, a troca de mercadorias, e foi desfeita parte das políticas mais opressoras do comunismo de guerra, com vistas a melhorar a qualidade de vida dos operários e camponeses. Também havia um grande problema sobre como financiar o plano GOELRO, visto que o estado operário não detinha a capacidade técnica nem produtiva para produzir o grande maquinário exigido para o plano GOELRO. Buscava-se pagar por especialistas e maquinários estrangeiros para construir a base da industrialização autárquica socialista. Contudo, os bolcheviques, como Lênin argumenta, “não tinham ouro” e tiveram que pagar com concessões aos industrialistas que tomou a forma da NEP.

Foi na segunda metade de fevereiro de 1920 que a Comissão do Estado para Eletrificação da Rússia (mais conhecida na literatura pela sua sigla GOELRO) começou suas atividades. Oito meses depois, em dezembro de 1920, após mais de 67 reuniões oficiais e um número incontável de reuniões de subcomissões e reuniões não oficiais, é apresentado um grande plano econômico, um livro de mais de 600 páginas, para começar o trabalho de edificação do socialismo. Foi sob esse contexto que Lênin afirmou em 21 de novembro de 1920:

- Mapa do plano GOELRO
“O Congresso dos Sovietes irá, portanto, discutir um relatório sobre a eletrificação da Rússia, para que possa ser elaborado um plano económico global para a reabilitação da economia nacional, de que falámos, no aspecto tecnológico. Não pode estar em pauta a reabilitação da economia nacional ou do comunismo a não ser que a Rússia seja colocada numa base técnica diferente e mais elevada do que aquela que existiu até agora. O comunismo é o poder soviético mais a electrificação de todo o país, uma vez que a indústria não pode ser desenvolvida sem electrificação. Esta é uma tarefa de longo prazo que levará pelo menos dez anos para ser realizada, desde que um grande número de especialistas técnicos estejam envolvidos no trabalho. Uma série de documentos impressos nos quais este projeto foi elaborado detalhadamente por especialistas técnicos serão apresentados ao Congresso. Não podemos alcançar os objetivos principais deste plano – criar regiões tão grandes de centrais elétricas que nos permitiriam modernizar a nossa indústria – em menos de dez anos. Sem esta reconstrução de toda a indústria nos moldes da produção mecanizada em grande escala, a construção socialista permanecerá obviamente apenas um conjunto de decretos, um elo político entre a classe trabalhadora e o campesinato, e um meio de salvar os camponeses do domínio de Kolchak e Deníkin; continuará a ser um exemplo para todas as potências do mundo, mas não terá uma base própria. O comunismo implica o poder soviético como um órgão político, permitindo à massa dos oprimidos gerir todos os assuntos de Estado – sem isso, o comunismo é impensável. Vemos provas disso em todo o mundo, porque a ideia do poder soviético e o seu programa estão, sem dúvida, a tornar-se vitoriosos em todo o mundo. Vemos isto em todas as fases da luta contra a Segunda Internacional, que vive do apoio da polícia, da igreja e dos velhos funcionários burgueses do movimento da classe trabalhadora.” - Lênin, 21 de Novembro de 1920 - Our Foreign and Domestic Position and Party Tasks (Nossa posição externa e interna e tarefas partidárias), grifos meus

Podemos ver claramente que a produção socialista só é possível com a grande produção. O planejamento socialista só se torna possível na grande produção socialista. Logo, os esforços do plano emergencial do GOELRO se tratavam de criar o mais rápido possível as bases materiais para que a transição socialista se tornasse possível. O GOELRO é a evolução da política econômica socialista anterior, o comunismo de guerra. O plano GOELRO se trata justamente da sublimação do comunismo de guerra que deixa de priorizar acima de tudo a defesa militar do estado operário e, com o fim da ameaça existencial, passa a priorizar aspectos emergenciais da produção de comida e energia elétrica.

Também podemos ver claramente como é falso qualquer tipo de comparação da NEP com a política econômica chinesa. Enquanto a NEP foi concebida como o meio para recuperar a economia devastada pela guerra e fornecer ao GOELRO tudo aquilo que não podia ser planejado diretamente, a política econômica chinesa não opera seu capitalismo monopolista de estado com a mesma finalidade. A diferença crucial é que a NEP sempre foi um plano emergencial temporário que visava acima de tudo criar as condições materiais para o aumento da parcela socialista da economia (aquela grande produção que é planejada diretamente pela autoridade central sem o intermédio da troca de mercadorias) enquanto que a política econômica chinesa busca exatamente o contrário: a conversão da grande indústria socialista do período maoísta em monopólios capitalistas estatais ou privados que priorizam o aumento da parcela capitalista da economia acima de tudo. Por esse motivo, quem deseja fazer paralelos como a China ser um “NEP gigante” vai ter grande dificuldade em explicar como a China age exatamente contra os objetivos da NEP soviética. Justamente pela NEP soviética ter sido, na verdade, a GOELRO-NEP soviética que podemos demonstrar o caráter oportunista de quem defende capitalismo monopolista estatal como finalidade da transição socialista ao fazer paralelos entre o “socialismo Chinês” e a NEP.

Diferente da historiografia tradicional que prefere dar o nome da política entre o fim do comunismo de guerra e o primeiro plano quinquenal como meramente “Nova Política Econômica”, acredito que seja muito mais coerente batizar esse período entre 1922 e 1927 como política econômica do GOELRO-NEP, visto que a NEP não é concebível sem o GOELRO e o GOELRO não é concebível sem a NEP. Para os bolcheviques, a política econômica principal sempre foi o plano GOELRO, pois é ele que efetivamente se tratava na prática de um “zerésimo plano quinquenal” para a edificação da grande indústria pesada, maior representante da parcela socialista da economia. Enquanto isso, a NEP, por ser fruto de condições materiais circunstanciais da posição que se encontrava o estado operário, se tratava de organizar a produção da indústria leve, que não podia ainda ser planejada tal como a grande indústria pesada por suas características específicas, e de regenerar a produção agrária, visto a predominância da pequena produção rural e a hostilidade de parte da classe camponesa para com o estado operário.

Mas então, do que se consiste a NEP?

Lênin em seu discurso de 25 de Abril de 1921, uma das poucas gravações que temos o privilégio de escutar, discorre:

https://youtu.be/UAp2rUEf_W4?feature=shared

“Camaradas!

O Poder Soviético está convidando capitalistas estrangeiros que queiram receber concessões na Rússia.

O que são concessões? São um acordo entre o Estado e capitalistas que se disponham a montar ou melhorar uma indústria (por exemplo, extração e transporte fluvial de madeira, extração de carvão, petróleo, minério etc.), pagando ao Estado, por isso, com uma parcela do produto extraído, e a outra parcela recebendo em forma de lucro.

Está o Poder Soviético agindo bem, tendo destronado os latifundiários e capitalistas russos, e agora convidando os estrangeiros? Está sim, pois tendo a revolução operária arrefecido em outros países, precisamos fazer alguns sacrifícios, desde que consigamos de modo rápido, ou até imediato, melhorar a situação dos operários e camponeses. Os sacrifícios consistem em cedermos centenas de milhares de toneladas de víveres importantes aos capitalistas durante alguns anos, e a melhora na situação dos operários e camponeses consiste em recebermos de pronto quantidades adicionais de petróleo, querosene, sal, carvão, utensílios agrícolas etc. Não temos o direito de recusar a melhora imediata na situação dos operários e camponeses, pois ela é indispensável, visto estarmos devastados, e os sacrifícios que citei não vão nos arruinar.

Mas não é perigoso convidar capitalistas, não significa estimular o capitalismo? Sim, significa estimular o capitalismo, mas não é perigoso, pois o poder continuará nas mãos dos operários e camponeses, e as propriedades dos latifundiários e capitalistas não serão restituídas. A concessão é uma espécie de acordo de arrendamento. O capitalista se torna arrendatário de parte da propriedade estatal, por contrato, por um determinado prazo, mas não se torna dono. A posse continua com o Estado.

O Poder Soviético velará para que o capitalista arrendatário respeite o acordo, que ele nos seja vantajoso e que se dê a melhora na situação dos operários e camponeses. Sob tais condições, o estímulo do capitalismo não é perigoso, e a vantagem para operários e camponeses consiste em receber mais produtos.” - Lênin, 25 de Abril de 1921 - Concessões e Estímulo do Capitalismo

Aqui vemos claramente o intuito da NEP: melhorar a situação dos operários e camponeses o mais rápido possível. Concomitante a isso, o objetivo do GOELRO se tratava de criar as bases materiais para a grande produção socialista. Ambas as políticas foram efetivadas pelo incentivo ao capitalismo privado, sob fortes condições de temporalidade e arrendamento. É importante notar aqui o caráter decisivo de utilizar o capital e os especialistas estrangeiros como a maneira mais rápida de desenvolver as condições necessárias para a transição socialista. Os bolcheviques sabiam muito bem que se a indústria soviética fosse deixada para se desenvolver apenas com as condições materiais disponíveis internamente na Rússia, demoraria muito mais do que o aceitável, e colocaria em conflito direto com a pouca paciência dos camponeses na relação conflituosa que o estado operário tinha com o campesinato. Quanto a essa relação do estado operário com o campesinato, Lênin em Março de 1921 ao defender a criação do imposto em espécie como substituição da política de confisco de grãos do comunismo de guerra explica:

https://youtu.be/mIb3E39Ears?feature=shared

“Camaradas!

Substituindo a requisição de produtos, o imposto em espécie deverá deixar aos camponeses nas próximas colheitas médias milhões de toneladas em cereais excedentes. A lei lhes dá o direito de empregá-los com absoluta liberdade, conforme os planos pessoais de melhorar sua alimentação, engordar o gado e trocá-los por produtos industrializados. O livre câmbio de cereais excedentes por artigos da indústria aumentará o interesse dos camponeses em incrementar sua produtividade agrícola e facilitará esse incremento ao desenvolver todo tipo de produção que lhes forneça os bens de uso corrente.

Melhor que tudo seria se conseguíssemos o quanto antes restaurar plenamente as grandes fábricas e usinas, bem como os transportes por ferrovias e águas. Poderíamos então fornecer aos camponeses, com rapidez, abundância e preço baixo, os produtos industrializados indispensáveis – sal, querosene, tecidos, calçados, utensílios agrícolas e fertilizantes. Para restaurarmos rapidamente a grande indústria, precisamos de grandes reservas de combustíveis e víveres nas cidades, mas não estamos em condições de ajuntar e transportar tudo isso. Assim, ao lado do esforço de superar essa dificuldade, precisamos começar um esforço urgente para desenvolver e estimular de todo jeito a pequena indústria. Ela pode e deve fazer o camponês melhorar já sua vida e sua produção sem que o Estado tenha grandes reservas de matérias-primas, combustíveis e víveres.

Que todos os quadros do Partido e dos sovietes entendam direito e cumpram com zelo seu dever de estimular e desenvolver de todas as formas a pequena indústria favorável à economia camponesa.” - Lênin, meados de fim de Março de 1921 - Sobre o Imposto em Espécie

Ou seja, a NEP, além de servir como meio imediato para a recomposição da produção industrial, serve também, na relação tênue entre o estado operário e o campesinato, como forma de apaziguamento. Visto que o estado operário precisava da produção agrária para subsistir, ainda levando em conta que o campesinato não estava preparado para a transformação da produção da pequena propriedade rural na grande propriedade mecanizada, o estado operário não podia na época se aventurar em um conflito desnecessário com os camponeses e seu modo de produção pequeno-burguês cuja única possibilidade de vitória era a pírrica.

Havia uma concepção errônea no partido bolchevique de que se podia atingir o comunismo de maneira imediata, sem passar pelo longo processo de transição. E isso foi um erro que Lênin reconheceu em seu discurso para o segundo congresso dos departamentos de educação política:

“No início de 1918 esperávamos um período em que a construção pacífica seria possível. Quando a paz de Brest foi assinada, parecia que o perigo tinha diminuído por algum tempo e que seria possível iniciar uma construção pacífica. Mas estávamos enganados, porque em 1918 um perigo militar real tomou conta de nós sob a forma do motim da Checoslováquia e da eclosão da guerra civil, que se arrastou até 1920. Em parte devido aos problemas de guerra que nos assolaram e em parte devido à situação desesperada em que se encontrava a República quando terminou a guerra imperialista – devido a estas circunstâncias, e a uma série de outras, cometemos o erro de decidir passar diretamente à produção e distribuição comunistas. Pensávamos que, sob o sistema de apropriação de excedentes alimentares, os camponeses nos forneceriam a quantidade necessária de cereais, que poderíamos distribuir entre as fábricas e assim conseguir a produção e distribuição comunistas.

Não posso dizer que tenhamos imaginado este plano de forma tão definida e clara; mas agimos aproximadamente nesse sentido. Isso, infelizmente, é um fato. Digo infelizmente, porque a breve experiência convenceu-nos de que essa linha estava errada, que ia contra o que tínhamos escrito anteriormente sobre a transição do capitalismo para o socialismo, nomeadamente, que seria impossível contornar o período de contabilidade e controle socialista em aproximando-se até mesmo do estágio inferior do comunismo. Desde 1917, quando surgiu o problema da tomada do poder e os bolcheviques o explicaram a todo o povo, a nossa literatura teórica tem sublinhado definitivamente a necessidade de uma transição prolongada e complexa, através da contabilidade e do controle socialistas, da sociedade capitalista (e quanto menos desenvolvido for, mais tempo demorará a transição) até mesmo para uma das abordagens à sociedade comunista.(...)

É aqui que a tarefa dos Departamentos de Educação Política de combater isto vem à tona. O principal problema à luz da Nova Política Económica é tirar partido da situação que surgiu o mais rapidamente possível.

A Nova Política Económica significa substituir a requisição de alimentos por um imposto; significa regressar ao capitalismo em grande medida – até que ponto não sabemos. As concessões a capitalistas estrangeiros (é verdade, apenas muito poucas foram aceitas, especialmente quando comparadas com o número que oferecemos) e o arrendamento de empresas a capitalistas privados significam definitivamente a restauração do capitalismo, e isto é parte integrante da Nova Política Económica; pois a abolição do sistema de apropriação de excedentes alimentares significa permitir que os camponeses negociem livremente os seus excedentes de produção agrícola, o que sobrar após a cobrança do imposto – e o imposto cobra apenas uma pequena parte dessa produção. Os camponeses constituem uma enorme secção da nossa população e de toda a nossa economia, e é por isso que o capitalismo deve crescer a partir deste solo de livre comércio.

Este é o próprio ABC da economia, tal como ensinado pelos rudimentos dessa ciência, e na Rússia ensinado, além disso, pelo aproveitador, a criatura que não precisa de ciência económica ou política para nos ensinar economia. Do ponto de vista da estratégia, a questão fundamental é: quem tirará primeiro partido da nova situação? A questão toda é: a quem o campesinato seguirá? O proletariado, que quer construir a sociedade socialista? Ou o capitalista, que diz: “Vamos voltar atrás; é mais seguro assim; não sabemos nada sobre esse socialismo que eles inventaram”?” - Lênin, 17 de Outubro de 1921 - The New Economic Policy And The Tasks Of The Political Education Departments, Report To The Second All-Russia Congress Of Political Education Departments (A nova política econômica e as tarefas dos departamentos de educação política, relatório ao segundo congresso de departamentos de educação política de toda a Rússia), grifos meus

Como fruto do incentivo ao capitalismo através da NEP, a União Soviética enfrentou em 1923 o que ficou conhecido como a “crise das tesouras” (que ganhou este nome quando um gráfico apresentado por Trotsky ao partido bolchevique mostrava 2 linhas de preços que formavam uma tesoura). As trocas desiguais entre campo e cidade criaram uma grande pressão inflacionária na economia de mercado da NEP, inflação essa que causava grande descontentamento popular. De toda forma, pequenos ajustes nas políticas econômicas foram suficientes para solucionar a “crise das tesouras”, não tendo nenhuma consequência duradoura para a história do desenvolvimento econômico da União Soviética.

Mas do que se consistia, afinal, o plano GOELRO?

O objetivo principal do GOELRO era recuperar a economia soviética através da eletrificação. Contudo, o plano GOELRO não era meramente um plano de eletrificação. A eletrificação servia apenas como fio condutor de todo um esforço holístico para regenerar a produção industrial destruída durante os processos sociais da revolução e da guerra civil.

Quando Lênin afirmou em Dezembro de 1920 que a economia do estado operário estava 10 vezes pior do que antes da guerra, ele não estava exagerando. Podemos ver que especialmente a indústria de meios de produção (aquela parcela da indústria que constroi o maquinário necessário para a criação de novas indústrias e para a manutenção das existentes) era 11% do que foi em 1916. Podemos ver também que a indústria passou de 44,5% do total da economia em 1916 para apenas 17,7% do total da economia em 1920. Podemos ver também como a política do comunismo de guerra implementada entre 1919 e 1921 causou uma redução anual sistemática da produção agrária, culminando na grande fome de 1922 e justificando a NEP.

O plano GOELRO foi, portanto, um plano para a reconstrução da economia industrial do estado operário a partir dos esforços para eletrificação. Podemos ver que foi apenas em 1927 que a economia do estado operário se recuperou o suficiente para se igualar aos níveis de 1916, fruto dos esforços da política GOELRO-NEP.

Como a indústria de meios de produção estava praticamente arruinada (lembrando que em 1920 ela era apenas 11% do que foi em 1916), não havia possibilidade nenhuma para o estado operário conduzir a reconstrução da indústria apenas com a produção de meios de produção interna. Foi por isso que, durante os anos da política GOELRO-NEP, a maior parte dos meios de produção foram importados de países como Alemanha e Estados Unidos. Foi através das conceções que inicialmente o estado soviético converteu o investimento estrangeiro em compra de maquinário para sua parcela socialista da economia. Posteriormente à fome de 1922-1923, o estado soviético começou também a exportar grãos. E disso se concretizou portanto a política de comércio internacional do estado operário: o grande objetivo do comércio internacional durante o GOELRO-NEP era vender grãos e dar concessões em troca de maquinário e especialistas para a edificação de uma indústria de meios de produção que possibilitaria o início da transição socialista.

Foi dessa forma, portanto, que o plano GOELRO fez com que a indústria de meios de produção crescesse mais de 10 vezes em termos absolutos entre 1920 e 1928 (primeiro ano do primeiro plano quinquenal). Além disso, em termos de participação relativa da economia, a indústria de meios de produção soviética passou de 8,4% do total da economia em 1920 para 36,4% em 1928. É nesse sentido que podemos ver com clareza que a NEP era uma política subordinada ao esforço do plano GOELRO. Mesmo que os dados não sejam comparáveis (pois um está em rublos de 1913 e o outro em rublos de 1936), podemos ver que as exportações e as importações soviéticas durante o período do GOELRO-NEP chegam a mais de 20% do total da economia, mesmo se assumimos uma grande margem de erro para a inflação entre 1913 e 1936.

O plano GOELRO não era somente um plano de reconstrução industrial. Ele também previa a construção das bases materiais de vários outros elementos da transição socialista:

  1. Eletrificação e Planejamento Estatal
“É evidentemente impossível elaborar um plano para a economia nacional da Rússia numa base elétrica sem se dar uma visão mais ou menos clara das perspectivas para esta economia como um todo. Além disso, elaborar um projeto para a eletrificação da Rússia significa fornecer um fio condutor vermelho para toda a atividade econômica criativa, para construir as principais bases para a implementação de um plano estatal unificado para a economia nacional.

Na verdade, o que é um plano econômico nacional na sua forma ampliada? Poderemos dar uma receita para um tal plano para todos os países e povos, abstraindo das condições específicas de lugar e tempo? Claro que não. Neste caso, receberíamos uma fórmula abstrata vazia, desprovida de qualquer conteúdo efetivo. Aqui, como em todos os outros casos, não existe verdade absoluta – a verdade é sempre concreta.” - Plano GOELRO, grifos meus - https://istmat.org/node/29117
  1. Eletrificação e Fornecimento de Combustível
“A energia elétrica em larga escala pode ser obtida utilizando reservas naturais de energia térmica, ou seja, vários tipos de combustível, ou utilizando energia hídrica. Os trabalhos da GOELRO fornecem uma imagem clara do abastecimento de combustível do país e da disponibilidade de fontes de energia hídrica.

As consequências da crise dos combustíveis que vivemos mostram claramente que sem resolver esta crise não há necessidade de pensar em qualquer tipo de recuperação e renascimento do país. Esta crise de combustível fez-se sentir pela primeira vez de forma acentuada em 1912-1913, irrompendo nos anos seguintes com cada vez mais força. As causas da crise tornar-se-ão claras para nós se, tendo-nos familiarizado com a necessidade geral de combustível da Rússia, considerarmos sequencialmente três aspectos independentes e igualmente importantes do fornecimento de combustível: a produção de combustível, o seu transporte e a utilização por consumidores individuais." - Plano GOELRO - https://istmat.org/node/29118
  1. Eletrificação e Água
“Especialmente a utilização da energia hídrica na sua forma moderna tem recebido pouco desenvolvimento na Rússia, apesar do facto de nos últimos anos os técnicos russos terem feito muito trabalho para estudar a possibilidade de obter grandes centrais eléctricas nos nossos rios e lagos.

Portanto, antes de mais nada, é preciso saber as condições em que esta ou aquela instalação hidráulica se torna economicamente viável e, antes de mais nada, tudo o que é dado pelas condições naturais do local e pela natureza do fluxo utilizado.

Por um lado, trata-se de um terreno e de uma estrutura geológica adequados, permitindo a construção das estruturas necessárias e a obtenção de pressão suficiente, e por outro lado, o teor de água e o regime de caudal do rio, ribeira ou outra fonte hídrica de interesse.” - Plano GOELRO - https://istmat.org/node/29119
  1. Eletrificação e Agricultura
“Olhando através dos trabalhos dos funcionários da secção agronômica da GOELRO, que procuram, sob diferentes pontos de vista, traçar pelo menos os principais marcos do extremamente complexo e difícil problema da ascensão da nossa agricultura, chegamos antes de mais nada à conclusão geral de que, nas suas principais características, a nossa agricultura lembra-nos de forma impressionante a imagem do nosso abastecimento de combustível.

(...)

Ao mesmo tempo, verifica-se que a própria Rússia, ao calcular a densidade populacional, estava muito pior provida de recursos de grãos em comparação com alguns outros países que importavam grãos, como a tabela a seguir mostra a provisão comparativa de vários países com seus próprios produtos de grãos e batatas em poods por pessoa per capita:

(...)

Estes dados mostram claramente quão baixo é o nível de produtividade do nosso trabalho agrícola, quão pequenas são as normas do nosso consumo per capita e quão fictícios são, portanto, os nossos chamados “excedentes de cereais”. A Rússia era verdadeiramente o celeiro da Europa, mas apenas devido à desnutrição das grandes massas.” - Plano GOELRO - https://istmat.org/node/29120
  1. Eletrificação e Transporte
“Nos capítulos sobre agricultura e combustíveis, ficou claro quais são as dificuldades que existem na Rússia em abastecer a população e os centros industriais com as principais fontes de qualquer desenvolvimento - alimentos e combustível: carvão, petróleo, pão, algodão - tudo isso deve ser transportado centenas e milhares de quilômetros, antes que o produto caia nas mãos do consumidor, e o custo dos produtos, é claro, acabe aumentando.

Olhando mais de perto, a situação parece estar numa posição ainda mais difícil. Algumas das áreas mais ricas não receberam qualquer grande desenvolvimento devido ao facto de o transporte ser extraordinariamente caro.

(...)

Tudo o que foi dito acima indica quão grande é a necessidade na Rússia de transporte urgente e barato, que poderia reunir partes remotas da república num corpo econômico mais coeso, e as nossas rotas para isso são claramente insuficientes tanto em termos de capacidade de carga como o custo relativamente alto de transporte de um peso unitário por quilômetro de viagem.

É necessário criar um esqueleto básico de transporte a partir dessas rotas que combine transporte de baixo custo com extrema capacidade de carga.” - Plano GOELRO - https://istmat.org/node/29129
  1. Eletrificação e Indústria
“Na implementação do programa, as maiores dificuldades serão causadas pela escassez de metal e, em parte, pela escassez de moeda, uma vez que não pode ser reposta por crédito e concessões. Assim, a atração de metais e capitais estrangeiros parece ser uma condição inevitável para a implementação do programa planejado para o desenvolvimento da economia nacional.

No entanto, se num período de 10 anos conseguíssemos curar as feridas infligidas pelas guerras e quase duplicar o alcance da produtividade global, eliminando simultaneamente as principais inconsistências na estrutura racional de toda a nossa economia, o ritmo adicional da nossa vida económica teria todos os pré-requisitos para um novo levantamento, muito mais decisivo. Aqui devemos enfatizar mais uma vez apenas a natureza aproximada de nossos cálculos e, em particular, sua condicionalidade em coordenadas temporais. Vimos que as grandes tarefas de organização e transformação da nossa economia exigem de forma decisiva ter em conta não só a nossa situação, mas também a situação mundial. Assim, o nosso plano económico terá de ser revisto à medida que toda a situação mundial realmente muda na era de transição que estamos a viver. Procurámos assumir uma posição o mais cautelosa possível, porque os erros neste sentido são menos perigosos nas suas consequências do que os erros opostos.

Os nossos cálculos mostram que num primeiro momento, no programa de eletrificação generalizada, seria mais conveniente focar numa capacidade adicional de aproximadamente 1.500 mil kW. No entanto, só foi possível identificar este valor após uma análise geral da nossa economia, cujo esboço é dado na nossa introdução. Os nossos trabalhadores para a eletrificação de áreas individuais desenvolveram um plano de electrificação muito mais amplo, o que é compreensível, porque a sua tarefa não incluía ter em conta as possibilidades à escala de toda a Rússia. Publicamos deliberadamente o seu trabalho sem qualquer ajuste posterior aos resultados globais da nossa análise. Se a realidade alterar positivamente os nossos cálculos cautelosos, tanto melhor: poderemos reorganizar rapidamente as filas previstas e encontraremos material rico para isso no trabalho das regiões. Mas o árbitro aqui só pode ser a própria vida, sempre avançando...

(...)

Ao mesmo tempo, este exemplo mostra claramente o quanto precisamos de um plano geral para a nossa economia nacional, pelo menos desenvolvido como uma primeira aproximação.” - Plano GOELRO, grifos meus - https://istmat.org/node/29130

Em resumo, podemos ver até então como a NEP não foi pensada num vácuo, assumindo que o desenvolvimento econômico do estado operário viria pelo capitalismo. Muito pelo contrário, a NEP pressupõe a existência de um plano tal como o GOELRO que trata de organizar a economia em escala nacional servindo efetivamente como um ensaio para os futuros planos quinquienais. Aqui podemos ver efetivamente como o GOELRO foi na prática um zerésimo plano quinquenal, cujos autores plenamente afirmam a necessidade de um plano melhorado feito tanto sobre uma base material mais consolidada como em um ambiente menos emergencial e favorável para o planejamento.

Foi durante esse cenário que a política GOELRO-NEP proporcionou ao estado operário uma rápida recuperação econômica, demorando apenas 5 anos para retornar aos níveis de produção de 1916. Enquanto a indústria se desenvolvia através da importação de meios de produção, matérias primas e especialistas, o estado operário consolidava sua política de aliança com o campesinato, permitindo seu livre desenvolvimento econômico e exportando seus grãos para financiar o plano GOELRO. Contudo, a natureza antagônica dos interesses do campesinato, especialmente dos Kulaks, e do estado operário não tardaram a se chocar.

(Continua na parte 4)