'Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista (parte 1): Por que não defendemos modelo Chinês' (camarada Glushkovinho)

Se nossas fundações teóricas econômicas são frágeis ou insuficientes, podemos facilmente incorrer em uma miríade de erros em nossas formulações políticas no programa do nosso partido e nas concepções econômicas de vários de nossos camaradas.

'Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista (parte 1): Por que não defendemos modelo Chinês' (camarada Glushkovinho)

Por camarada Glushkovinho para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,

Inicialmente esse conjunto de escritos que estou batizando de “Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista” era para ser apenas um simples texto em 3 partes: 1 - Por que não defendemos modelo Chinês; 2 - História da parcela socialista da economia na União Soviética; 3 - Que tipo de economia defendem os marxistas leninistas.

Depois do texto bater 57 páginas de word e eu não estar nem na metade, comecei a aceitar o fato de que eu não iria conseguir terminar esse texto antes da etapa nacional do congresso. Então pretendo publicar ao longo das próximas semanas e meses cada parte do meu texto original conforme minha disponibilidade de tempo.

Recomendo a leitura consecutiva dos textos, visto que eles eram originalmente apenas um texto gigante com considerações a respeito da ordem de exposição dos conceitos.

Agradeço a compreensão!


Essa tribuna busca responder uma pergunta importantíssima para a reconstrução do nosso partido que parece pairar sobre todos nós, mas que até então não foi endereçada diretamente.

“A segunda questão para resgatar é a questão da teoria. Não é preciso gastar saliva com citações sobre a teoria revolucionária e o movimento revolucionário, mas importa e muito voltarmos aos fundamentos marxistas-leninistas de nossa visão de mundo. Não existe instituição mais privilegiada na humanidade que um partido comunista para o desenvolvimento de uma teoria revolucionária e a ênfase em instituições externas ao Partido para esse trabalho, com destaque para a universidade, foi também um erro que cometemos no PCB. O Partido deve desenvolver-se teoricamente porque também isso é uma tarefa da revolução, inescapável das demais tarefas. Nesse sentido, é a ortodoxia do marxismo-leninismo que deve ser defendida a ferro e fogo.” - Quais são as principais questões que devemos resolver no XVII Congresso? de G. Lazzari, grifos meus.

O camarada G. Lazzari, em sua excelente tribuna sobre os problemas fundamentais que nosso congresso tratará, expôs uma síntese extremamente necessária do atual período político que passamos em geral e sobre o atual período de lapidação teórica em específico que deveria guiar nossos esforços intelectuais: estamos em busca de uma ortodoxia do marxismo-leninismo que seja bem definida e seja evoluída suficientemente para guiar nosso trabalho prático e enterrar de vez as concepções revisionistas, ultra-esquerdistas e confusionistas que surgem do zoológico ideológico no seio do nosso partido.

Tal qual a fração bolchevique rompeu com os grilhões do POSDR em 1903, nós rompemos com os grilhões do grupo político que se apossou da legenda eleitoral do Partido Comunista Brasileiro em 2023. Agora livres dos males do pecebismo, podemos nos voltar ao trabalho definitivamente revolucionário e pôr fim à luta interna inútil.

O primeiro passo desse processo é a realização de uma formulação ideológica que retorne aos fundamentos do marxismo-leninismo para que nosso congresso possa a referendar como a matriz teórica que nos trará a tão desejada unidade partidária, fruto da unidade ideológica na teoria e da unidade de ação na prática.

As teses econômicas de um partido revolucionário são seus alicerces de sustentação ideológica. Se nossas fundações teóricas econômicas são frágeis ou insuficientes, podemos facilmente incorrer em uma miríade de erros em nossas formulações políticas, tal como vou argumentar os erros fundamentais presentes no programa do nosso partido e nas concepções econômicas de vários de nossos camaradas.

Deixo aqui portanto minha pequena contribuição em busca da ortodoxia: que tipo de economia defendem os marxistas-leninistas?

1 - Por que não defendemos o “socialismo Chinês”

A problemática sobre qual economia defendemos não é um tema fácil de abordar, pois podemos abordá-la de diferentes maneiras e sob diferentes prismas. A que eu escolho para ser guia desta tribuna é o prisma de combater as posições pró-China em vias de estar presente na nossa última etapa do congresso através da delegação do Distrito Federal, além de outros camaradas. O camarada G. Xavier fez um bom trabalho em expor na sua tribuna o caráter nitidamente revisionista das posições adotadas pela delegação.

Antes que você pule da cadeira e comece a falar “camarada Glushkovinho, é muito feio chamar de revisionista quem discorda de você”, quero portanto fazer uma rápida definição e trato técnico do que significa “revisionismo”. Não é a primeira vez que esse termo é utilizado na nossa tradição intelectual, e uma das mais famosas foi a polêmica de Lênin com Bernstein.

“O socialismo pré-marxista foi derrotado. Já não continua a luta em seu próprio terreno, mas sim no terreno geral do marxismo, como revisionismo. Vejamos, pois, qual é o conteúdo ideológico do revisionismo.

(...)

No campo da política, o revisionismo tentou rever o que realmente constitui a base do marxismo, ou seja, a teoria da luta de classes. A liberdade política, a democracia, o sufrágio universal, destroem a base da luta de classes – diziam-nos os revisionistas – e desmentem o velho princípio do Manifesto Comunista de que os operários não têm pátria. Uma vez que na democracia impera a “vontade da maioria”, não devemos ver no Estado, segundo eles, o órgão da dominação de classe, nem negar-nos a entrar em alianças com a burguesia progressista, social-reformista, contra os reacionários.

(...)

Passando à economia política, temos de assinalar, antes de mais nada, que neste campo as “emendas” dos revisionistas eram muitíssimo mais variadas e circunstanciadas; esforçaram-se por sugestionar o público com “novos dados sobre o desenvolvimento econômico”. (...) Diziam que a “teoria da bancarrota”, para a qual marcha o capitalismo, é inconsistente por causa da tendência para as contradições de classe se suavizarem e atenuarem. Diziam, finalmente, que não seria mau corrigir também a teoria do valor de Marx de acordo com Böhm-Bawerk.” - Lênin, 1908 - Marxismo e Revisionismo

Revisionismo, como empregado por Lênin, é o conjunto das concepções intelectuais que tratam as categorias científicas do marxismo como “incorretas” pois foram supostamente “superadas” através do avanço dialético da história natural ou estariam erradas desde o princípio. É claro que Marx e Lênin erraram em várias coisas. Contudo, a revisão aqui não se trata de apontar os erros de análise de Marx e Lênin ao comparar cientificamente suas proposições com a realidade, mas sim em abandonar suas concepções teóricas sem demonstrar cientificamente que são incorretas, muitas vezes por motivos oportunistas secundários e não por uma honesta busca intelectual. No contexto desta tribuna, portanto, “revisionismo” é empregado como o abandono intelectual das categorias fundamentais do marxismo-leninismo que não foram devidamente expostas como incorretas através do exercício da análise científica.

Para Lênin, Bernstein e companhia estavam revivendo questões do socialismo pré-marxista superadas pelo marxismo. Também é o caso dos proponentes da “China socialista” que revivem questões já superadas na transição socialista pelo marxismo-leninismo sem dar uma resposta satisfatoriamente científica do porquê abandonar o referencial ortodoxo mais do que provado empiricamente.

Há uma “safadeza teórica” em propositalmente não debater o que é socialismo e o que implica esse socialismo na economia a partir das categorias de análise do marxismo-leninismo. Os camaradas que defendem o suposto “socialismo Chinês” nunca o fazem por uma discussão teórica das categorias e como essas categorias surgem da análise real da sociedade chinesa. A justificativa sempre perpassa a concepção de “socialismo com características chinesas” sem se evidenciar de onde surgiu essa concepção teórica e de como ela se encaixa com as categorias fundamentais do marxismo-leninismo. Eu acredito que a maior parte dos camaradas fazem isso por ignorância, fruto de um baixíssimo grau de formação especialmente sobre economia em nosso partido, ao não se dedicar para ir além dos estudos medíocres sobre a economia socialista, e em parte como influência de ideólogos do “modelo Chinês” como Elias Jabbour e os replicadores de seu discurso. Contudo, uma minoria dos camaradas que defendem essas ideias são convictamente revisionistas, e o fazem não por ignorância, mas como projeto político. Independentemente da razão, as ideias dessas pessoas precisam ser atacadas e sua natureza intelectual posta para todos verem.

O camarada G. Xavier já se propôs a demonstrar a safadeza a partir de Marx. Portanto, para não repetir os pontos que o camarada já fez, me proponho a ir um pouco além de Marx e começar com o “Lênin tardio”, aquele Lênin que esteve à frente da política da incipiente União Soviética de 1918 a 1923. Quando em 1921 se terminava a política da economia de guerra e as lideranças bolcheviques voltavam sua atenção aos problemas econômicos da Rússia, Lenin escreveu um texto chamado “Sobre o Imposto em Espécie” como parte de um esforço para se concretizar o que conhecemos como Nova Política Econômica (Ou NEP como ficou conhecida na literatura):

“Em primeiro lugar, é necessário analisar qual é precisamente a transição do capitalismo ao socialismo, que nos dá direito e fundamento para nos denominarmos República Socialista dos Sovietes.

(...)

Mas o que significa a palavra transição? Não significará, aplicada à economia, que no regime actual existem elementos, partículas, pedaços de capitalismo e de socialismo? Todos reconhecem que sim. Mas nem todos, ao reconhecerem isto, reflectem sobre precisamente que elementos das diferentes estruturas económicas e sociais existem na Rússia. E nisto está toda a essência da questão.

Enumeremos esses elementos:

1) economia camponesa, patriarcal, isto é, natural em grau significativo;
2) pequena produção mercantil (isto inclui a maioria dos camponeses que vendem cereais);
3) capitalismo privado;
4) capitalismo de Estado;
5) socialismo.” - Lenin, 1921 - Sobre o Imposto em Espécie (O Significado da Nova Política e as Suas Condições)

Note que a categoria de economia socialista é devidamente separada das outras e que a transição é dada uma definição sólida e sem conversa mole. Vamos então fazer um esforço para entender quais são esses pedaços econômicos que dão forma e significado à transição propriamente socialista.

A economia camponesa é o que hoje conhecemos como a agricultura familiar. É aquela agricultura familiar ou comunal cuja produção é usada majoritariamente para a subsistência dos produtores e o excesso, quando existe, é então comercializado através de trocas mercantis.

A pequena produção mercantil, como o próprio nome indica, é a forma que se dava à economia protagonizada pelos Kulaks na Rússia de Lênin. Até os Kulaks de pequenas propriedades rurais usavam-se majoritariamente do trabalho assalariado dos camponeses pobres. Essa forma de produção tinha como finalidade a troca, e gerava diversos tipos de extratos sociais que variam desde grandes e ricos Kulaks até Kulaks que mal conseguiam manter sua condição como proprietário de terra misturando muitas vezes o trabalho familiar com o trabalho assalariado durante a colheita.

O capitalismo privado é a clássica concepção de pequena-burguesia e de burguesia. São as lojinhas, as pequenas empresas, a pequena indústria, toda uma miríade de atividades econômicas cujo proprietário é muitas vezes insignificante e sofre com a competição do grande capitalista que forma a classe da burguesia propriamente dita através da grande produção privada capitalista.

A última forma do capital monopolista, que sublima o controle privado das empresas por um capitalista individual para o controle societário e pulverizado dos capitalistas em todos os ramos do monopólio através de empresas públicas, dá um caráter de controle genérico à burguesia como classe. No caso da Rússia socialista, esse controle era deturpado e submetido ao controle operário através dos bolcheviques que controlavam o estado Russo e por tabela controlavam diretamente a grande produção do capital monopolista de estado.

E portanto, toda a ideia de transição culmina em transformar todos esses elementos de produção capitalistas e pré-capitalistas em uma produção propriamente socialista. Uma das primeiras coisas que os bolcheviques fizeram ao chegar no poder foi a completa expropriação do capital monopolista de estado e do grande capitalista privado e a transformação dessa produção na produção propriamente socialista. Ou seja, é a transformação da produção cuja finalidade é o lucro através da troca para a produção cuja finalidade é atender as necessidades diretas e imediatas do conjunto da classe trabalhadora. A forma que essa produção tomava era a sublimação da produção mercantil, aquela que visa produzir mercadorias para troca, para a produção planejada para atender diretamente as necessidades materiais da classe trabalhadora.

Existe aqui um significado muito específico de “planejamento”. Algo que é planejado, é aquilo que é racionalmente pensado para servir um propósito. E existe, no ramo da economia burguesa, o planejamento estatal de setores estratégicos através do papel que o estado cumpre atuando sob mecanismos de mercado como a emissão de moeda, a cobrança de impostos, as leis que impedem, permitem, condicionam ou regulam certos tipos de circulação de capitais e mercadorias, etc… Na história do capitalismo, sempre houveram planos de recuperação econômica, ou planos de desenvolvimento econômico que visavam suprimir os efeitos das crises cíclicas do capitalismo e avançar o crescimento econômico necessário para impedir o colapso do sistema capitalista e para permitir a exportação de capitais que dá o caráter imperialista do capitalismo monopolista estatal. Em outras palavras, o planejamento propriamente socialista não se trata do planejamento da economia de mercado.

E aqui começam as safadezas intelectuais. Os proponentes pró-China amam reduzir o socialismo ao planejamento estatal. Eles afirmam sem medo de serem felizes de que a China é socialista não por que está em vias de abandonar a produção mercantil e substituir essa produção pela produção planejada, mas sim por que a China planeja seus mercados melhor que os outros estados capitalistas. O socialismo na boca dessa gente deixa de ser a superação do mercado como mecanismo econômico que liga as demandas com as ofertas e passa a ser criar condições para o aprofundamento desse mecanismo econômico de maneira mais eficiente. Alguns vão ainda ao extremo cômico de afirmar que a maior economia do planeta (em termos de paridade de preços) não possui condições materiais suficientes de acumulação de capital e capacidade produtiva para transicionar sua economia capitalista de produção mercantil para um planejamento propriamente socialista. Se a Rússia do pós-guerra civil conseguiu fazer a transição imediata de uma parcela da sua economia em 1920, tenho certeza que 100 anos depois a maior economia do planeta tem ordens de magnitude mais do que o necessário para transicionar.

A transição socialista sempre foi sobre aumentar a parcela econômica da economia propriamente socialista até que ela vai engolindo as outras formas de produção e se torna a única forma de produção na sociedade. Uma transição é algo que possui um fim  bem definido, e no caso da transição socialista esse fim é a economia propriamente socialista ser a única forma de produção na sociedade. Essa definição de transição também nos permite mensurar através de critérios objetivos e científicos se determinada sociedade caminha para o objetivo dessa transição ou se caminha em sentido contrário. Podemos expressar a transição em termos numéricos. Podemos dizer através do estudo científico que sociedade X tem 20% de produção socialista, 40% de produção capitalista estatal e 40% de produção capitalista privada. Essas categorias nos dão o ferramental para afirmar que se uma sociedade possui 20% de sua produção nos moldes da produção propriamente socialista e passa a ter 30% na década seguinte, podemos afirmar cientificamente que essa sociedade progrediu na transição econômica socialista. Enquanto que se o inverso é verdade, se a parcela de produção socialista vai de 30% a 20% em 10 anos, podemos dizer que essa sociedade regrediu na transição econômica socialista.

Para salientar de vez quero trazer uma anedota do primeiro plano quinquenal da união soviética aprovado no quarto congresso do PCUS, onde isso é expresso de maneira categórica:

“(...) A forma organizacional da economia nacional tornou-se fundamentalmente diferente, uma vez que, com base na nacionalização da indústria de grande escala e de outros postos de comando, a gestão econômica planejada tornou-se possível, deslocando cada vez mais a anarquia do mercado capitalista de mercadorias.

(...)

Na elaboração de um plano quinquenal da economia nacional, (...), é necessário esforçar-se por alcançar a combinação mais favorável dos seguintes fatores:

(...)

Um ritmo de desenvolvimento econômico nacional mais rápido do que nos países capitalistas e um inevitável aumento sistemático da parcela do setor econômico socialista, que é o ponto decisivo e principal de toda política econômica do proletariado.” -

Коммунистическая партия Советского Союза. Коммунистическая партия Советского Союза в резолюциях и решениях съездов, конференций и Пленумов ЦК (1898-1988) / КПСС ; Ин-т Марксизма-Ленинизма при ЦК КПСС - Instituto do Marxismo-Leninismo no Comitê Central do PCUS, O Partido Comunista da União Soviética nas resoluções e decisões de congressos, conferências e Plenários do Comitê Central (1898-1988) - Tomo 4 1926-1929 p. 274-276 - http://elib.shpl.ru/ru/nodes/9421-kommunisticheskaya-partiya-sovetskogo-soyuza-v-rezolyutsiyah-i-resheniyah-sezdov-konferentsiy-i-plenumov-tsk-1898-1988-m-1983-1990

Está mais que claro que na tradição do marxismo-leninismo nunca houve confusão nenhuma sobre qual parcela da economia tomava forma capitalista e qual parcela da economia tomava forma socialista. Sempre foi uma questão de crescer a parcela socialista até que ela se torne a única forma de produção econômica. Como o próprio relatório para o primeiro plano quinquenal da união soviética diz, a expansão da parcela socialista da economia é a finalidade da política econômica do proletariado. Enquanto isso, os defensores do “socialismo Chinês” tentam passar despercebidos desse fato ao falar que a economia da China é socialista pois é o “estado operário que comanda o mercado” ou variações nesse sentido. Lênin prefere ser honesto quando vai defender o capitalismo monopolista de estado sob controle operário para a NEP:

A circulação de mercadorias é a liberdade de comércio, é o capitalismo. Ele é-nos útil na medida em que nos ajuda a lutar contra a dispersão do pequeno produtor e, até certo ponto, contra o burocratismo. A experiência, a prática, estabelecerão a medida. Não há nisso nada de terrível para o poder proletário enquanto o proletariado mantiver firmemente o poder nas suas mãos, mantiver firmemente nas suas mãos os transportes e a grande indústria.” - Lenin, 1921 - Sobre o Imposto em Espécie (O Significado da Nova Política e as Suas Condições) - grifos meus

Pois então, de onde surgiu o suposto “socialismo com características chinesas”?

Quando Mao e seus apoiadores perdem a hegemonia do Partido Comunista da China após as falhas retumbantes da revolução cultural e do grande salto adiante, se lança ao comando do partido a direita política do PCC representada por Deng Xiaoping. O PCC então começa a implementar uma política de redução da parcela socialista da economia (que, mesmo com os problemas apontados pelo camarada G. Xavier da concepção de aliança com a burguesia nacional, foi sob Mao que a parcela socialista da economia na China mais se desenvolveu) e uma abertura condicional ao capital estrangeiro através de uma larga expansão da produção mercantil e da burguesia na China. Buscava-se desenvolver a economia chinesa não através da superioridade econômica da economia propriamente socialista, mas sim através da acumulação de capital de um pujante capitalismo monopolista estatal. Foi nesse contexto que houve a revisão do maoismo (que, independentemente das suas particularidades, promovia no âmbito da economia o planejamento socialista) e a criação do mito do “socialismo com características chinesas” por Deng Xiaoping.

Objetivamente falando, foi a política econômica do “socialismo com características chinesas” que trouxe uma redução da parcela da economia propriamente socialista na China. Então se a finalidade da política econômica do proletariado é a expansão da parcela socialista da economia, como considerar o “socialismo com características chinesas” uma política econômica socialista? Não é e nunca foi. Desde o princípio foi uma política econômica que buscou e busca até hoje o aumento da parcela capitalista da economia e a redução da parcela socialista da economia em nome do desenvolvimentismo nacional. Só chama isso de socialismo quem quer imbuir o socialismo de um significado mentiroso de “transição”, como se não houvesse critérios objetivos para auferir a dita transição. Do jeito que Lênin definiu o que é a transição socialista e do jeito que os planejadores soviéticos do primeiro plano quinquenal definiram a finalidade da política econômica proletária, podemos concluir que, se aplicamos os mesmos critérios que eles, precisamos batizar a política de Deng Xiaoping de “capitalismo com características chinesas”, já que objetivamente cumpre esse papel.

Ainda assim, os proponentes do suposto “socialismo Chinês” tem várias cartas em suas mangas. Eles podem falar “mas na China há uma infinidade de formas de propriedade”. Sim, isso é verdade, não muda o fato de que a parcela da economia socialista que foi expandida no período maoísta foi reduzida brutalmente após Deng Xiaoping e seu “socialismo com características chinesas” composto de privatizações e o rompimento de políticas propriamente socialistas. O fundamento da transição socialista é seu objetivo. E como já estabelecido pelo próprio Lênin:

“(...) o capitalismo monopolista de Estado é a mais completa preparação material do socialismo, é a sua antessala, é o degrau da escada da história entre o qual e o degrau chamado socialismo não há nenhum degrau intermédio.” - Lênin, 1917 - A Catástrofe que nos Ameaça e como Combatê-la, grifos do próprio Lênin

Não existe motivo para que a China, em seu atual estado de desenvolvimento econômico, se furte da completa transição de sua economia para uma economia planejada socialista. Não existem motivos econômicos para isso, nem supostamente motivos políticos para isso (já que em tese seriam todos comunistas no poder, não?). É claro que se a transição não ocorre na China é porque a luta de classes na China culminou para que a direita revisionista tomasse o poder do estado operário. A China estar há décadas parada no último degrau do capitalismo monopolista de estado não é acidental, é projeto político. É conclusão incontornável de qualquer análise minimamente honesta da luta de classes na China de que, se as políticas econômicas e a tendência histórica são mantidas, a economia Chinesa ou vai se manter como capitalismo monopolista de estado, ou vai se degenerar por completo nas outras formas de capitalismo nacionalista-chauvinista e abandonar qualquer pretensão nominal de socialismo.

Se pararmos para ler o décimo-quarto plano quinquenal da China, fazendo a devida ressalva de que esse documento não inclui as discussões tal como foi o documento do primeiro plano quinquenal da União Soviética que citei, podemos averiguar que se trata apenas de objetivos que assumem a persistência de uma economia de mercado. Não somente isso, como os planos de longo prazo do PCC se trata de aprofundar as relações mercantis na sociedade chinesa. Enquanto os soviéticos discutiam sobre a parcela da produção capitalista e como reduzi-la, os chineses estão mais preocupados atualmente em expandir o capitalismo monopolista de estado objetivando chegar no longo prazo a níveis de PIB per capita (métrica que apenas faz sentido numa economia fundamentada em mercados) análogos aos do centro capitalista.

Os camaradas que se propõe a defender o “socialismo Chinês” como uma transição socialista vão precisar explicar como as concepções econômicas de Lênin estão erradas. Vão precisar explicar como a teoria da transição socialista em Lênin precisa ser superada. Em outras palavras, a defesa do “socialismo com características chinesas” exige uma revisão da base econômica do marxismo-leninismo, exige especificamente dizer que o objetivo de uma política econômica proletária não é o aumento da parcela socialista de uma economia e o consequente desenvolvimento econômico promovido pela superioridade qualitativa da grande produção socialista, mas sim seu desenvolvimento submetido à produção mercantil, à privatização, à submissão parcial do desenvolvimento ao capital estrangeiro e à exportação de capitais, ao desenvolvimentismo nacional capitalista e à rendição completa de qualquer pretensão de internacionalismo proletário.

Outros camaradas já fizeram uma avaliação muito mais completa sobre o caráter imperialista do desenvolvimento econômico capitalista Chinês e não vale a pena repetir os argumentos lá presentes, como os camaradas S. Sarapura, Marte e Doni (entre outros). Aqui subscrevo à conclusão principal de que a China, como fruto de suas relações econômicas capitalistas, é objetivamente uma potência imperialista. Os camaradas que discordam disso, usam uma definição de imperialismo estranha ao marxismo-leninismo.

Faço algumas menções:

O camarada A. K. Fer, que respeitosamente se colocou à frente para defender o socialismo Chinês (e aqui portanto eu o trato com a seriedade que ele merece), não discute o que é imperialismo, mas mesmo assim conclui que não podemos chamar a China de imperialista por circunstâncias que pouco importam para a definição do que é imperialismo. A linha argumentativa visa fazer um paralelo entre a NEP e a política econômica Chinesa, algo que vou demonstrar mais abaixo que é falso, e que já demonstrei parcialmente quando discuti sobre as parcelas da economia e sua relação objetiva com a transição socialista. O camarada A. K. Fer ignora este elemento da disputa teórica, o que torna a defesa dele extremamente fraca. Em resumo, ao camarada não lidar com a categoria do imperialismo e nem com os fundamentos da transição socialista, a conclusão do texto do camarada não se sustenta a partir das premissas. O elemento argumentativo fundamental da minha crítica ao camarada A. K. Fer é não lidar com o dado objetivo de que a parcela socialista da economia na China apresenta tendência de queda. Isso é critério decisivo para uma experiência socialista ser categorizada como tal. É preciso pontuar que não existe “socialismo de mercado”, tal como o camarada diz, no pensamento econômico marxista-leninista. Essa categoria de análise é fruto da revisão do marxismo-leninismo, algo que especificamente rejeito. Se os camaradas querem defender o mercado como elemento de um capitalismo monopolista estatal de um estado operário, não podem fazer usando categorias de análise frutos da revisão do marxismo-leninismo sem justificar propriamente tal revisão e do porquê as categorias ortodoxas são insuficientes. Na análise marxista-leninista da transição socialista, existe  uma separação cristalina entre a parcela da economia socialista e a parcela da economia capitalista. Por isso é um erro de categoria dizer que a parcela econômica capitalista (seja ela privada ou na forma de monopólio estatal) é “socialismo de mercado” pela simples presença do estado operário como regulador das trocas de mercadorias e da circulação de capitais (algo que, apenas por ser mais eficiente e servir os interesses nacionais, não torna o estado operário fundamentalmente diferente dos outros estados capitalistas nesse aspecto).

Alguns camaradas como Felipe Mir, “camarada China” e Paulo Pinheiro fazem uma constatação sobre a pertinência de um debate sobre “China é ou não é socialista” e “se esse rótulo importa”. Acho que uma resposta se faz necessária. Os camaradas têm razão em dizer que não podemos nos voltar a um “purismo” de pensar que nossos problemas teóricos se resumem a uma reavaliação do socialismo histórico. Aqui, faço coro com a mensagem dos camaradas de que precisamos fazer para o Brasil o mesmo tipo de análise que fazemos para a China e União Soviética. Precisamos formular positivamente sobre o Brasil pois só assim teremos acúmulo teórico suficiente para servir de guia do nosso trabalho prático. Acho que as polêmicas em torno do perfil do proletariado brasileiro e a tática eleitoral fazem parte desse balde intelectual do comunismo brasileiro que precisamos encher. De toda forma, eu também acho pertinente, para impedir o revisionismo e o oportunismo de corroer nossos objetivos políticos, discutir exatamente sobre a China ser ou não socialista à luz do debate sério e qualificado. Eu estou fazendo esse esforço de tentar mostrar “o que Lenin diz” para questionar os camaradas: “a análise leninista continua correta?”. Pois os camaradas muitas vezes fazem um debate apartado das categorias fundamentais do marxismo-leninismo e isso tem implicações na nossa análise da realidade da luta de classes no Brasil e nas nossas propostas de intervenção nessa realidade. É importante salientar nesse debate teórico que o marxismo-leninismo não se trata de um desenvolvimentismo sob uma economia de mercado que serve os interesses nacionais. Por isso que, por exemplo, quando colocamos no nosso programa do partido elementos políticos que presumem uma economia de mercado, vamos nos dar com a cara na parede ao usarmos esse programa como a síntese do que buscamos realizar. Inúmeras categorias do marxismo-leninismo são universais (no sentido que se aplicam a todos os países capitalistas ou socialistas), e os particularistas que dizem “o Brasil é especial e nada se aplica a ele desse universal” são os que mais embarcam num oportunismo rasteiro que culmina, por exemplo, numa defesa de um capitalismo nacional-desenvolvimentista.

É por isso, portanto, que nesse debate sobre o caráter imperialista da economia chinesa precisamos voltar a Lênin e sua definição de imperialismo:

“Se fosse necessário dar uma definição o mais breve possível do imperialismo, dever-se-ia dizer que o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo. Essa definição compreenderia o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas fundido com o capital das associações monopolistas de industriais, e, por outro lado, a partilha do mundo é a transição da política colonial que se estende sem obstáculos às regiões ainda não apropriadas por nenhuma potência capitalista para a política colonial de posse monopolista dos territórios do globo já inteiramente repartido.

Mas as definições excessivamente breves, se bem que cômodas, pois contêm o principal, são insuficientes, já que é necessário extrair delas especialmente traços muito importantes do que é preciso definir. Por isso, sem esquecer o caráter condicional e relativo de todas as definições em geral, que nunca podem abranger, em todos os seus aspectos, as múltiplas relações de um fenômeno no seu completo desenvolvimento, convém dar uma definição do imperialismo que inclua os cinco traços fundamentais seguintes:

1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica;

2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse "capital financeiro" da oligarquia financeira;

3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande;

4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si,

e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes. O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes.” - Lênin, 1916 - O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, grifos meus

Ninguém pode discordar que:

1) A China concentra sua produção e seus capitais em grandes monopólios capitalistas estatais; Evidência para isso é seu planejamento econômico ser meramente um planejamento de seus mercados, não contendo nenhum elemento de planejamento propriamente socialista.

2) Não existe separação nenhuma entre o capital bancário Chinês e o capital industrial Chinês. O capital financeiro é o meio pelo qual a China planeja seus mercados, oferecendo créditos para o capitalista privado em áreas prioritárias da economia ou para financiar iniciativas de indústrias sob a forma capitalista estatal.

3) O capital Chinês é exportado em largas quantidades globalmente e inclusive recentemente um conglomerado Chinês ganhou uma concessão para construir a linha de trem São Paulo-Campinas.

4) Sob o neocolonialismo contemporâneo, as associações internacionais dos capitalistas tomam forma sob a Organização Mundial do Comércio, Banco Mundial, Banco dos BRICS, Fundo Monetário Internacional, etc... Organizações essas que a China participa plenamente. E aqui, para os camaradas que querem discordar disso, me respondam o seguinte: a China se beneficia ou não das políticas neoliberais forçadas pelo FMI em países da África e da América Latina? Não é o FMI, entre as inúmeras outras organizações, que abre as portas da privatização para o capital Chinês inundar esses mercados? A China não busca se inserir plenamente nas trocas internacionais típicas do capitalismo?

O único ponto passível de debate é a última característica definidora do imperialismo segundo Lênin. A China não partilha território e nem engaja no tipo de dominação imperialista militar característica da OTAN. Contudo, há sinais de que isso pode mudar, como por exemplo o chauvinismo Chinês sob o mar do sul da China, que busca usar da força militar para dominar uma região do mar rica em recursos naturais, entre outras considerações geopolíticas como negar à OTAN essa região para instalar suas bases e dominar um estreito importante para o tráfego marítimo do comércio mundial. Outro sinal importante é a completa oposição do PCC pela luta do Partido Comunista da Filipinas. A China prefere vender armas ao governo Filipino do que ajudar uma revolução comunista nas Filipinas.

Se aplicamos os mesmos critérios que Lênin aplica para falar de imperialismo, somos forçados a reconhecer que a China é pelo menos um participante significante do imperialismo, mesmo que não se engaje no imperialismo da mesma forma que o centro capitalista. De toda forma, a China objetivamente se beneficia do imperialismo para seu desenvolvimento nacional, e ela nitidamente não se importa de extrair super-lucros da periferia ao exportar capital para se desenvolver, mesmo que corriqueiramente a China perdoe dívidas e faça acordos de transferência de tecnologia com outros países. Nada disso tem a ver com a caracterização de imperialismo na ortodoxia do marxismo-leninismo.

Uma conclusão importante de toda essa seção de meu texto sobre imperialismo, é que o capitalismo monopolista de estado, e por tabela o capitalismo monopolista de estado Chinês, é indissociável do imperialismo pois, em determinado ponto de seu desenvolvimento material, todo capitalismo monopolista de estado precisa exportar capital e expandir mercados. É simplesmente consequência inseparável de uma economia pautada pela produção mercantil na forma do capitalismo monopolista de estado. O capitalismo monopolista de estado não é um arranjo econômico que permite a autarquia (a auto-suficiência econômica sem a necessidade de explorar outros povos).

J. Manoel tem mais que razão ao afirmar que Elias Jabbour não defende revolução. Quem defende “socialismo Chinês” não defende a ortodoxia do marxismo-leninismo, defende a revisão do marxismo-leninismo. É fruto da pobreza intelectual do movimento comunista brasileiro nas questões econômicas. Como remediação a isso, o próprio camarada G. Lazzari deixa bem claro: é preciso que o partido se desenvolva intelectualmente para evidenciar ao movimento comunista brasileiro as caducadas teóricas de quem defende posições nacional-desenvolvimentistas como a do “socialismo Chinês”.

De toda forma, não se define que tipo de economia defendemos pela negativa, dizendo apenas que não defendemos parar nossa transição socialista na etapa do capitalismo monopolista de estado, tal qual quem elogia o “socialismo Chinês”. Precisamos elaborar a ortodoxia de qual economia defendemos através da formulação positiva, para não deixar esse espaço vazio ser preenchido por qualquer tipo de conceituação torta. Deixo abaixo um esboço incompleto desse esforço.

(Continua na parte 2)