Engels e a importância da luta teórica

Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Nunca será demasiado insistir nessa ideia em uma época em que a propaganda em voga do oportunismo vem acompanhada de uma atração pelas formas mais estreitas da atividade prática.

Engels e a importância da luta teórica
Homero (1959), de Gely Korzhev, uma das telas do tríptico Os Comunistas.

Vladímir Ilitch Uliánov Lênin

Excerto de Que fazer?, publicado em Março de 1902

Publicado a partir de marxists.org


“Dogmatismo, doutrinarismo”, a fossilização do Partido, castigo inevitável do estrangulamento forçado do pensamento”, tais são os inimigos contra os quais entram na arena os campeões da “liberdade de crítica” do Rabótcheie Dielo. Muito nos agrada que essa questão tenha sido colocada na ordem do dia; apenas proporíamos completá-la com uma outra: E quem são os juízes?

Temos diante de nós dois anúncios de publicações literárias. Um deles é o “Programa do Órgão Periódico da União dos Social-Democratas Russos, Rabótcheie Dielo” (separata do n. 1 do Rab. Dielo). O segundo é o “Anúncio da retomada das edições do grupo ‘Emancipação do Trabalho’” [1]. Ambos datam de 1899, época em que a “crise do marxismo” estava, há muito, na ordem do dia. Pois bem, em vão procuraríamos na primeira obra as indicações sobre essa questão e uma exposição precisa da atitude que o novo órgão pensa adotar. Nem esse programa nem seus suplementos, aprovados pelo III Congresso da “União” em 1901 [2] (Dois Congressos, p. 15-18), mencionam o seu trabalho teórico e seus objetivos imediatos no momento atual. Durante todo esse tempo, a redação do Rabótcheie Dielo deixou de lado as questões de teoria, apesar de essas preocuparem os social-democratas do mundo inteiro.

O outro anúncio, ao contrário, assinala logo de início que, ao longo dos últimos anos, se verifica um menor interesse pela teoria; reclama insistentemente “atenção vigilante para o aspecto teórico do movimento revolucionário do proletariado”, e conclama a uma “crítica implacável das tendências antirrevolucionárias, bernsteinianas, e outras”, em nosso movimento. Os números publicados da Zaria mostram como este programa foi aplicado.

Vemos, assim, que as grandes frases contra a fossilização do pensamento etc. dissimulam o desinteresse e a impotência em desenvolver o pensamento teórico. O exemplo dos social-democratas russos ilustra, de uma forma particularmente notável, esse fenômeno generalizado na Europa (também assinalado, há muito, pelos marxistas alemães): a famosa liberdade de crítica não implica na substituição de uma teoria por outra, mas a liberdade de prescindir de qualquer teoria coerente e refletida, expressando ecletismo e ausência de princípios. Quem conhece, por pouco que seja, a situação real de nosso movimento não pode deixar de ver que a grande difusão do marxismo foi acompanhada por um relativo rebaixamento do nível teórico. Muitos, pouco preparados teoricamente, outros inclusive sem qualquer preparo, aderiram ao movimento por seus êxitos práticos e por sua importância efetiva. Por isso, pode-se julgar a falta de cuidado demostrada pelo Rabótcheie Dielo, pela definição de Marx, que lançou de forma triunfante: “Cada passo do movimento efetivo é mais importante do que uma dúzia de programas” [3]. Repetir tais palavras nessa época de dissensões teóricas equivale a dizer à vista de um cortejo fúnebre: “Tomara que tenham sempre algo a levar!” Além disso, essas palavras são extraídas da carta sobre o programa de Gotha, na qual Marx condena enfaticamente o ecletismo na formulação dos princípios. Se a união é verdadeiramente necessária, escrevia Marx aos dirigentes do partido, façam acordos para realizar os objetivos práticos do movimento, mas não se permitam a barganha de princípios, nem façam “concessões” teóricas. Tal era o pensamento de Marx, e eis que há entre nós pessoas que, em seu nome, procuram diminuir a importância da teoria!

Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Nunca será demasiado insistir nessa ideia em uma época em que a propaganda em voga do oportunismo vem acompanhada de uma atração pelas formas mais estreitas da atividade prática. Para a social-democracia russa em particular, a teoria assume importância ainda maior por três razões esquecidas com muita frequência, a saber: primeiro, nosso partido apenas começou a se constituir, a elaborar sua fisionomia, e está longe de ter acabado com as outras tendências do pensamento revolucionário que ameaçam desviar o movimento do caminho certo. Ao contrário, a época recente se distingue notadamente (como Axelrod já há muito havia antecipado aos “economistas”) por uma revitalização de tendências revolucionárias não social-democratas. Nessas condições, um erro “sem importância” à primeira vista pode acarretar às mais deploráveis consequências, e é preciso ser míope para considerar inoportunas ou supérfluas as discussões de tendência e a delimitação rígida de matizes. Da consolidação de um ou outro “matiz” pode depender o futuro da social-democracia russa por muitos e longos anos.

Segundo, o movimento social-democrata é, pela sua própria essência, internacional. Isso não significa somente que devemos combater o chauvinismo nacional. Significa também que um movimento incipiente em um país jovem só se desenvolve com êxito quando incorpora a experiência dos outros países. Para tanto, não é suficiente apenas conhecer essa experiência, ou limitar-se a copiar as últimas resoluções. É preciso saber adotar uma atitude crítica ante essa experiência e comprová-la por si próprio. Quando se constata o quanto se desenvolveu e se ramificou o movimento operário contemporâneo, pode-se compreender o acúmulo de forças teóricas e de experiência política (e revolucionária) necessárias para se realizar essa tarefa.

Terceiro, a social-democracia russa tem tarefas nacionais como nenhum outro partido socialista do mundo jamais o teve. Mais adiante, falaremos das obrigações políticas e de organização que nos impõe essa tarefa: liberar todo um povo do jugo da autocracia. No momento, queremos apenas sinalizar que só um partido orientado por uma teoria de vanguarda pode desempenhar o papel de combatente de vanguarda. E para se fazer uma ideia mais concreta do que isso significa, que o leitor recorde dos predecessores da social-democracia russa, tais como Herzen, Bielínski, Tchernichévski e a brilhante plêiade de revolucionários da década de 1870; que pense na importância mundial que a literatura russa vai conquistando na atualidade, que… mas, basta! Citaremos as observações, feitas por Engels em 1874, sobre a importância da teoria no movimento social-democrata. Engels reconhecia na grande luta da social-democracia não apenas duas formas (política e econômica) — como se faz entre nós — mas três, colocando a seu lado luta teórica. Suas recomendações ao movimento operário alemão, já vigoroso prática e politicamente, são tão instrutivas do ponto de vista dos problemas e discussões atuais, que o leitor não se importe que transcrevamos uma longa passagem do prefácio ao livro A Guerra camponesa na Alemanha [4], que há muito já se tornou uma raridade bibliográfica:

Os operários alemães têm duas vantagens essenciais sobre os operários do restante da Europa. A primeira delas é que pertencem ao povo mais teórico da Europa e conservaram esse sentido teórico quase já completamente perdido pelas chamadas classes “cultas” da Alemanha. Sem a filosofia alemã que o precedeu, sobretudo sem a filosofia de Hegel, o socialismo científico alemão, o único socialismo científico já existente, jamais se constituiria. Se os operários alemães não tivessem esse sentido teórico, esse socialismo científico nunca se tornaria, tal como se tornou hoje, carne de sua carne, sangue de seu sangue. E que essa imensa vantagem se expressa, por um lado, quando se constata a indiferença do movimento operário inglês por qualquer teoria, uma das principais razões do seu tão lento avanço, apesar da excelente organização dos diferentes ofícios e, por outro lado, na perturbação e na confusão semeados pelo proudhonismo, em sua forma inicial, entre franceses e belgas, e, em sua forma caricatural (que lhe deu Bakunin), entre espanhóis e italianos.

A segunda vantagem consiste no fato de os alemães serem quase os últimos a se integrar ao movimento operário. Assim como o socialismo alemão jamais esquecerá que assenta nos ombros de Saint-Simon, Fourier e Owen — três pensadores que, apesar de todo o caráter fantasioso e utópico das suas doutrinas, estão entre os maiores cérebros de todos os tempos, antecipando-se genialmente a uma infinidade de verdades cuja exatidão agora demonstramos cientificamente —, do mesmo modo o movimento operário alemão nunca deve esquecer que se desenvolveu debruçado sobre os ombros do movimento inglês e francês, que teve a possibilidade simplesmente de aproveitar sua dura experiência, assim evitando no presente os erros que outrora, na maior parte dos casos, não se podia evitar. Onde nos encontraríamos agora sem o precedente das trade-unions inglesas e da luta política dos operários franceses, sem o monumental impulso dado especialmente pela Comuna de Paris?

Deve-se fazer justiça aos operários alemães por terem aproveitado, com rara inteligência, as vantagens da sua situação. Pela primeira vez desde o surgimento do movimento operário, a luta é conduzida metodicamente nas suas três direções — teórica, política e econômica-prática (resistência contra capitalistas) —, coordenadas e articuladas entre si. É nesse ataque concêntrico por assim dizer, que residem, precisamente, a força e a invencibilidade do movimento alemão.

Por um lado, essa situação vantajosa, por outro, as particularidades insulares do movimento inglês e a repressão violenta ao movimento francês, fazem com que os operários alemães assumam a frente da luta proletária. Não é possível prever quanto tempo durarão os acontecimentos que lhes permitem ocupar esse lugar de honra. No entanto, enquanto o ocuparem espera-se que irão cumprir as obrigações que lhes são impostas. Para tanto, terão de redobrar seus esforços em todos os domínios da luta e da agitação. Particularmente, os dirigentes deverão se instruir cada vez mais em todas as questões teóricas, libertando-se progressivamente da fraseologia tradicional, específica da velha concepção de mundo, tendo sempre claro que o socialismo, desde que se tornou uma ciência, exige ser tratado como uma ciência, ou seja, ser estudado. A consciência dessa maneira alcançada, e cada vez mais lúcida, deve ser difundida entre as massas operárias com cuidado ainda maior, deve se consolidar ainda mais fortemente a organização do partido e dos sindicatos […].

[…] Se os operários alemães continuam avançando nesse sentido, não diria que marcharão à frente do movimento — não é de modo algum conveniente ao movimento que os operários de uma ou outra nação em particular marchem à sua frente —, mas que assumirão um lugar de honra na primeira linha de combate e se encontrarão preparados para isso se, de repente, duras provas ou grandes acontecimentos exigirem deles maior coragem, maior decisão e energia.

As palavras de Engels revelaram-se proféticas. Alguns anos mais tarde, os operários alemães foram inesperadamente submetidos à dura provação da lei de exceção contra os socialistas. E os operários alemães encontraram-se de fato suficientemente preparados para sair vitoriosos.

O proletariado russo terá de sofrer provas ainda infinitamente mais duras, terá de combater um monstro perto do qual o da lei de exceção em um país constitucional mais parece um pigmeu. A história nos atribui agora uma tarefa imediata, que é a mais revolucionária de todas as tarefas imediatas do proletariado de qualquer país. A realização dessa tarefa, a destruição do baluarte mais poderoso, não somente da reação européia, mas também (podemos agora dizê-lo) da reação asiática, fará do proletariado russo a vanguarda do proletariado revolucionário internacional. Temos o direito de esperar que obteremos este título honorário merecido já pelos nossos predecessores, os revolucionários da década de 1870, se soubermos animar com o mesmo espírito de decisão e a mesma energia irredutível o nosso movimento, mil vezes mais amplo e mais profundo.


Notas

[1] Grupo “Emancipação do Trabalho”: o primeiro grupo marxista russo fundado por Plekhánov na Suíça, em 1883. Levou adiante um grande trabalho de propaganda do marxismo na Rússia, desferindo um sério golpe no populismo que constituía o principal obstáculo ideológico no caminho da difusão do marxismo e do desenvolvimento do movimento social-democrata russo. Os dois projetos de programa dos social-democratas russos (de 1883 e 1885), escritos por Plekhánov e publicados pelos “Emancipação do Trabalho”, representaram um passo importante na criação do Partido Social-Democrata Russos (POSDR). O grupo tinha estabelecido laços com o movimento operário internacional e, a partir do primeiro Congresso da II Internacional (Paris, 1889), o grupo, ao longo de sua existência, representou a social-democracia russa em todos os congressos da Internacional. Ao mesmo tempo, o grupo “Emancipação do Trabalho” incorreu em vários e sérios erros: superestimava o papel da burguesia liberal e subestimava o espírito revolucionário do campesinato como reserva da revolução proletária. Esses erros foram os embriões das futuras posições mencheviques de Plekhánov e outros membros do grupo. Lênin assinalou que o grupo apenas “lançou os fundamentos teóricos da social-democracia e deu o primeiro passo ao encontro do movimento operário”.

[2] O III Congresso da “União dos Social-Democratas Russos” realizou-se na segunda quinzena de setembro de 1901 em Zurique; suas resoluções selaram a vitória do oportunismo nas fileiras da “União”. O congresso aprovou emendas e aditamentos aos projetos sobre a unificação das organizações dos social-democratas russos no exterior, elaborados na conferência de Genebra, em junho de 1901, e que tiveram um caráter abertamente oportunista. Tudo isso predeterminou o fracasso do congresso de “unificação” das organizações do POSDR no exterior, que foi realizado alguns dias depois do III Congresso da União. O congresso aprovou também as Instruções para a redação do Rabótcheie Dielo que, de fato, constituíram um estímulo para os revisionistas.

[3] A frase de Marx comparece na sua carta a W. Bracke, de 5 de Maio de 1875. O programa do Partido Operário Social-Democrata Alemão foi aprovado em 1875 no Congresso de Gotha no qual se unificaram os dois partidos social-democratas alemães, que até então tinham estado separados: os eisenachianos e os lassalleanos. O programa padecia de ecletismo e era oportunista, uma vez que os eisenachianos fizeram concessões aos lassalleanos, cedendo em aspectos centrais. Marx e Engels submeteram o projeto do Programa de Gotha a uma crítica demolidora, considerando-o um grande passo atrás em comparação com o programa de Eisenach, aprovado em 1869.

[4] https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/guerras/prefacio.htm