'Em defesa do socialismo chinês: Capitalismo de Estado ou nova NEP?' (A. K. Fer)

Devemos considerar as diferenças que caracterizam a produção agrícola e a produção industrial, principalmente nas condições em que se deu o desenvolvimento chinês.

'Em defesa do socialismo chinês: Capitalismo de Estado ou nova NEP?' (A. K. Fer)

Por A. K. Fer para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Concessões à burguesia no Socialismo

A Nova Política Econômica (NEP a partir daqui) foi o plano econômico adotado pela União Soviética e proposto por Lênin após o abandono do Comunismo de Guerra. Se antes os camponeses tinham todo o excedente de sua produção e mais uma parte necessária para sua subsistência confiscados pelo estado devido às condições impostas pela guerra, agora, com a instituição do imposto em espécie, os camponeses estavam autorizados a vender o excedente da sua produção e acumular moeda em um cenário anterior a coletivização do campo, onde ainda existia propriedade privada. Isso tinha o intuito de estimular o desenvolvimento das forças produtivas, partindo da iniciativa dos camponeses motivados pela recompensa material.

Essa política foi criticada pelos esquerdistas da época de Lenin sobre o argumento de que isso significava um recuo na construção do socialismo. Em relação à isso, Lenin justifica no texto Sobre o imposto em espécie (O significado da NEP e suas condições):

“Imagino a nobre indignação com que alguns repudiaram estas palavras... Como? Na República Socialista Soviética a passagem ao capitalismo de Estado significaria um passo em frente?... Não será isto uma traição ao socialismo?”

Ao defender a NEP, Lenin argumenta que as forças produtivas desenvolvidas como as de países capitalistas de estado são necessárias para estabelecimento do socialismo, usando como exemplo a Alemanha:

“A história (de que ninguém, excepto os mencheviques obtusos de primeira ordem, esperava que desse de modo suave, tranquilo, fácil e simples o socialismo ‘integral’) seguiu um caminho tão peculiar que pariu em 1918 duas metades desligadas de socialismo, uma ao pé da outra, exactamente como dois futuros pintos dentro da mesma casca do imperialismo internacional. A Alemanha e a Rússia encarnaram em 1918 de modo mais patente a realização material das condições económico-sociais, produtivas e econômicas do socialismo, por um lado, e das condições políticas do socialismo, por outro lado.”

Porém, tomemos cuidado para não cair em algum tipo de etapismo. Foi tarefa do estado proletário soviético, e não de um estado democratico-burguês, desenvolver as forças produtivas, como foi colocado por Lenin:

“Se a revolução tardar ainda em ‘nascer’ na Alemanha, a nossa tarefa é aprender com os alemães o capitalismo de Estado, transplantá-lo com todas as forças, não regatear métodos ditatoriais para acelerar a transplantação do ocidentalismo para a bárbara Rússia, não se detendo perante meios bárbaros de luta contra a barbárie."

Apesar do recuo na supressão da propriedade privada, continua sendo verdade que os burgueses ainda são inimigos da classe trabalhadora e seus interesses privados são opostos aos interesses do proletariado. Isso em qualquer país. A diferenciação essencial entre capitalismo e socialismo reside no fato de que no socialismo o proletariado detém o controle do estado.

Para Lenin:

“Este simples exemplo com números — simplificado premeditadamente ao máximo para tornar mais popular a exposição — explica a correlação da situação atual, entre o capitalismo de Estado e o socialismo. Os operários têm nas mãos o poder de Estado, têm a mais completa possibilidade jurídica de «apanhar» todo o milhar, isto é, de não entregar nem um copeque que não seja destinado a fins socialistas. Esta possibilidade jurídica, que se apoia na passagem de facto do poder para os operários, é um elemento do socialismo. [...]” [1]

Com a dissolução da União Soviética e a decadência do bloco sovietico, os países socialistas ao redor do mundo, dependentes do auxílio soviético, se viram abandonados e isolados. Em países como Cuba, Coreia Popular, Vietnã, Laos e China, a solidariedade soviética não só não proporcionou o desenvolvimento industrial, como também o desincentivou. Além de que o mundo estava passando por uma série de inovações tecnológicas na indústria. Nesse contexto, manter a política econômica de total estatização e planificação da produção industrial sem as importações dos produtos industrializados soviéticos significava uma estagnação do desenvolvimento industrial, a impossibilidade de acesso a vários tipos de mercadorias (principalmente  as de alta tecnologia),  e o isolamento frente à comunidade internacional.

O socialismo de mercado na China tem as mesmas intenções e resultados observados na NEP da União Soviética, com a diferença crucial  de que é aplicada à produção industrial e não à produção agrícola. Ou seja, a política econômica da China, ao conceder autorização para existência e ampliação do lucro, da acumulação da moeda e da mais-valia pelas empresas estrangeiras, estimulou o desenvolvimento produtivo industrial usando como motivação o interesse privado e a recompensa material. Entre os benefícios trazidos por essa política, não está só o desenvolvimento econômico, mas também a possibilidade de relação com diversos países e o combate ao isolamento, como os impostos à Coreia Popular e Cuba.

A respeito das concessões impostas pela NEP, Lenin argumenta:

“O que são as concessões no sistema soviético, do ponto de vista das estruturas económico-sociais e correlação entre elas? São um acordo, um bloco, uma aliança do poder de Estado soviético, isto é, proletário, com o capitalismo de Estado, contra o elemento pequeno-proprietário (patriarcal e pequeno burguês). O concessionário é um capitalista. Dirige as coisas à maneira capitalista, com o objectivo de obter lucros, estabelece um acordo com o poder proletário a fim de obter lucros extra, superiores aos habituais, ou de obter um tipo de matérias-primas que doutro modo não poderia conseguir ou que dificilmente poderia conseguir. O Poder Soviético obtém vantagens sob a forma do desenvolvimento das forças produtivas, do aumento imediato, ou a mais breve prazo, da quantidade de produtos. Temos, por exemplo, uma centena de explorações, minas ou florestas. Nós não podemos explorar tudo: não temos máquinas, víveres, meios de transporte suficientes. Pelo mesmo motivo exploramos mal os restantes sectores.”

Além da motivação privada promovida pela política econômica chinesa, outro fator importante é: o  estado proletário chinês não acredita na tal “mão invisível do mercado”. Assim, tendo ingerência completa no planejamento da economia, promovendo um desenvolvimento que beneficia o todo o povo chinês (e não só a burguesia) e a acumulação do capital. Isso se evidencia no fato de que junto ao crescimento econômico vieram as políticas públicas para a erradicação da extrema pobreza no país - tanto que, atualmente, há mais pessoas (nominalmente) nessa situação no Brasil do que na China.

O socialismo chinês está em desenvolvimento, e isso é notório. Apesar da propriedade privada existir, ela não é um direito plenamente assegurado pelo Estado. Pelo contrário, é restrito e subjugado pela ditadura do proletariado.

Alguns apontamentos

Alguns camaradas podem argumentar dizendo que a NEP durou muito menos que a atual política econômica chinesa, e talvez essa seja uma crítica que faça sentido. No entanto, devemos considerar as diferenças que caracterizam a produção agrícola e a produção industrial, principalmente nas condições em que se deu o desenvolvimento chinês.

Veja, se enviássemos um engenheiro para uma fábrica na Inglaterra no século XVIII, ele possivelmente descobriria as técnicas envolvidas na máquina a vapor com facilidade e em um curto período de tempo. Porém, talvez o mesmo engenheiro demorasse décadas para entender como funciona um computador doméstico, caso ele não tenha contato  prévio com essa tecnologia.

Uso desse exemplo tosco para exemplificar o fato de que as tecnologias envolvidas na indústria dos nossos tempos são de extrema complexidade: mesmo alguém qualificado leva mais tempo para compreender as técnicas das tecnologias atuais, que são bastante distintas das anteriores, mais primitivas. O contato da indústria chinesa com o capital estrangeiro permitiu o acesso à técnica, principalmente. E, ao contrário do que muitos possam pensar, a indústria de computadores é essencial - não só para a produção de mercadorias, mas até mesmo para a soberania nacional. Vide a importância da indústria de chips para a tecnologia militar, por exemplo.

Logo, é previsível que a estratégia do socialismo de mercado perdure por um período de tempo mais longo que a NEP soviética. Ainda assim, devemos olhar com desconfiança para o avanço da propriedade privada na China, uma vez que não há sinais que indiquem a intenção de avançar na supressão da propriedade privada e no avanço da coletivização.

Na verdade, em relatório para o vigésimo congresso do PCCh, Xi Jinping sinaliza justamente o contrário, colocando até a seguinte declaração:

“A nossa modernização visa a prosperidade comum de todo o povo. A prosperidade comum é uma necessidade essencial do socialismo com características chinesas e requer um processo histórico de longo prazo. Tomamos sempre a aspiração do povo por uma vida melhor como o ponto de partida e o objetivo final da modernização. Trabalhamos para defender e fomentar a equidade e a justiça sociais, promover a prosperidade comum de todo o povo e evitar resolutamente a polarização entre ricos e pobres.”

A minha conclusão é de que existem críticas a serem feitas à China, como o abandono do internacionalismo e a longa duração do regime que convencionou-se a chamar de socialismo de mercado ou socialismo de características chinesas. Porém, rotulá-la como um país capitalista que abandonou o socialismo é ignorar o materialismo.

Por fim, camaradas, coloco alguns outros temas que merecem investigação e podem vir a ser tema de futuras tribunas: a influência da China na África em oposição ao rótulo de país imperialista, e o próprio relatório de Xi Jinping ao vigésimo congresso do PCCh.


Notas:

[1] O exemplo a que Lênin se refere:

“O pequeno burguês que esconde os seus milhares é um inimigo do capitalismo de Estado e quer realizar estes milhares exclusivamente para si, contra os pobres, contra toda a espécie de controlo geral do Estado, e a soma dos milhares forma uma base de muitos milhares de milhões para a especulação, que torpedeia a nossa edificação socialista. Suponhamos que determinado número de operários produz em alguns dias uma soma de valores expressa pelo número 1000. Suponhamos além disso que perdemos desta soma como consequência da pequena especulação, das dilapidações de todo o género e da fuga dos pequenos proprietários aos decretos soviéticos e às disposições soviéticas. Todo o operário consciente dirá: se eu pudesse dar 300 dos 1000 como preço da criação de uma maior ordem e organização, com gosto daria trezentos em vez de duzentos, pois com o Poder Soviético reduzir esse ‘tributo’, digamos, até cem ou cinquenta será uma tarefa perfeitamente fácil, desde que se implantem a ordem e a organização, desde que seja quebrado definitivamente o torpedeamento pelos pequenos proprietários de todo o monopólio de Estado.”