'Em defesa de um coletivo sobre e para pessoas com deficiência' (Bruna Luisa Gago Silva e Ricardo Augusto de Souza Oliveira)

Para escancararmos ainda mais a negligência e a sub-representatividade política da classe trabalhadora com deficiência a nível institucional, que abarca a necessidade de discussão no campo marxista-leninista, precisamos falar da quantidade de pessoas com deficiência no Congresso Nacional.

'Em defesa de um coletivo sobre e para pessoas com deficiência' (Bruna Luisa Gago Silva e Ricardo Augusto de Souza Oliveira)

Por Bruna Luisa Gago Silva e Ricardo Augusto de Souza Oliveira para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

CONTEXTO DA DEFICIÊNCIA NO BRASIL 

O Brasil possui 203 milhões de habitantes, destes, 18,6 milhões possuem algum tipo de deficiência, o que corresponde a 8,9% da população na faixa etária de pessoas de 2 anos ou mais. Dentre elas, 47,2% possuem 60 anos ou mais, o que equivale a aproximadamente 8,8 milhões de pessoas. Este indicativo faz parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): Pessoas com Deficiência 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC). 

Mas não se enganem, o número de pessoas com deficiência no Brasil tende a ser maior do que o número apresentado pelo Censo de 2022, isso por conta de contradições na metodologia utilizada, como por exemplo a estimativa de cerca de 2 milhões de autistas no Brasil, em comparação ao documento de prevalência do espectro autista feito pelo Centro de Controle de Prevenção e Doenças (CDC), que aponta cerca de 1 criança autista para cada 36 não-autistas nos Estados Unidos, o que convertido para a nossa população de 203 milhões de habitantes, equivale a cerca de 6 milhões de pessoas autista no Brasil. Pelo fato da estimativa da Rede de Monitoramento de Autismo e Deficiências de Desenvolvimento (ADDM) do CDC atuar com base em laudos médicos, a estimativa tende a ser mais verossímil, além de que o número de pessoas autistas “está aumentando” - estatisticamente - a cada atualização do CDC (de 2 em 2 anos), o que demonstra uma constante melhora nos critérios diagnósticos e escancara uma parte da população autista que era desconsiderada nas estatísticas. Outra contradição do IBGE, seguindo a linha do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é a não consideração de deficiências em suas estatísticas - enquanto deficiências - como, por exemplo, o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), e a gagueira (disfemia/tartamudez), ambas deficiências do neurodesenvolvimento. 

Mas afinal, o que é deficiência? Quem é classificado como pessoa com deficiência? O que é a interseccionalidade e como ela se dá dentro da identidade da deficiência? E principalmente, quais são os processos atuais e históricos que afetam essa parte da classe trabalhadora? É necessário, mais do que nunca, o campo marxista-leninista atuar nesse campo em busca da construção de uma coletividade radical? Essas e várias outras perguntas serão respondidas neste documento, sob a percepção de duas pessoas com deficiência, uma vivenciando a interseccionalidade

da sexualidadade, e outra experienciando a interseccionalidade de gênero e sexualidade, ambas sob a conjuntura brasileira neoliberal e historicamente periférica ao sistema econômico capitalista e, mais evidentemente, a atual conjuntura da luta interna e externa do Partido Comunista Brasileiro - Reconstrução Revolucionária (PCB-RR) que, além de se alinhar ao modo de organização marxista-leninista, se faz contraponto ao tratamento de uma classe trabalhadora única, que supostamente não seria possuidora de variadas especificidades interseccionais de lutas específicas a serem feitas no presente e no futuro, no Brasil e no mundo. 

O objetivo aqui não é, sob hipótese alguma, finalizar o debate em relação a intersecção de deficiências e o Materialismo Histórico Dialético, mas sim elevar a importância do debate no campo político marxista-leninista. Este documento poderá servir como base para qualquer ação voltada à emancipação da classe trabalhadora e suas particularidades dentro da luta de pessoas com deficiência. Portanto, partindo disto, seguimos. 

O QUE É DEFICIÊNCIA? 

Para entendermos o que é deficiência como conceito, é preciso entendermos que este é disputado no tempo e espaço. 

O MODELO BIOMÉDICO DA DEFICIÊNCIA 

Este modelo defende, de acordo com Debora Diniz no livro “O que é deficiência”, que a deficiência é “consequência natural da lesão em um corpo, e a pessoa deficiente deve ser objeto de cuidados biomédicos”, ou seja, na falta de alguma característica no corpo de um trabalhador é preciso a intervenção deste modelo, que individualiza corpos com deficiência, sem qualquer questionamento a estrutura política em que as pessoas estão inseridas, que envolve desde questões sociopolíticas a arquitetônicas. O modelo biomédico da deficiência se baseia nessa premissa para patologizar corpos desviantes da norma e procurar uma eventual cura para eles, por exemplo, a partir de estudos de genes, como fazem com a trissomia do cromossomo 21 (T21) e o espectro autista. Com estes estudos “inofensivos”, a tentativa de curar pessoas com deficiência, visando um processo eugenista, é uma perspectiva. À BBC News Brasil, um porta-voz da Down Syndrome International, entidade de apoio a pessoas com síndrome de Down, apontou que "Os países não mantêm um registro de quantos abortos são realizados porque o feto tem Down", porém, no entanto, um grupo de prestigiados especialistas nesta área apresentou uma estimativa, e concluiu que na Europa, na última década, em média 54% das gravidezes em que o feto era T21 foram interrompidas. Em alguns países, ocorrem abortos eugênicos em oito das dez gestações nas quais o T21 é identificado. Essa prática de aborto é definido, por Maria Helena Diniz, jurista, advogada e professora, como uma “interrupção criminosa da gestação”, e que é “praticado com escopo de aperfeiçoar a raça humana, logrando seres geneticamente superiores ou com caracteres genéticos pré determinados para alcançar uma forma depurada de eugenia que substitui o direito de procriar pelo de nascer com maiores dotes físicos”. Elon Musk, empresário trilionário, em entrevista ao podcast “Artificial Intelligence”, em conversa com Lex Fridman, falou sobre seus objetivos com sua tecnologia experimental de interface cérebro-computador da Neuralink: “Então, Neuralink, eu acho que a princípio, vai resolver muitas doenças relacionadas ao cérebro. Então, poderia ser qualquer coisa como autismo, esquizofrenia [...]”. Esse processo é eugenista pois tenta, a todo custo, patologizar deficiências, as classificando como doenças - já que “podem ser curadas”, além de normalizar corpos para que sejam os mais produtivos possíveis para o trabalho no sistema capitalista, e não só, tenta fazer com que pessoas com deficiência deixem de existir, ao ponto de sequer poderem nascer em nome de um bem maior: a não-deficiência. Para explicitar melhor a ligação do modelo biomédica à luta da burguesia pelo capital, devemos escancarar suas raízes, que partem do caráter neoliberal. Para isso, usamos a definição de David Harvey em “O Neoliberalismo: história e implicações”, que diz que o:

“neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a  teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para  entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções  do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício.” 

Esses processos de normalização de corpos com deficiência são aplicados constantemente até os dias atuais, sendo um deles a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), que faz parte do campo da psicologia, comumente associada ao suporte no atendimento de pessoas autistas. Nela há um conjunto de princípios e técnicas para ensinar novos comportamentos a uma criança. No caso de crianças autistas, o intuito dessa aplicação é apagá-las enquanto autistas para a sociedade, visando sua normalização. Aqueles que são aplicadores da terapia ABA e não desrespeitam o autistar da pessoa autista, simplesmente não a aplicam de forma devida. Aqueles que defendem a utilização da Análise do Comportamento Aplicada apenas para casos de autoagressão e derivados, esquecem-se que demais terapias, como a Terapia Cognitiva-Comportamental (TCC), conseguem interferir nestas mesmas questões com maestria, sem qualquer aplicação da ABA. Para demonstrar o que é a Análise do Comportamento Aplicada, temos que citar Ivar Lovaas, um psicólogo, pesquisador e professor, que foi um dos primeiros pesquisadores a modificar comportamentos de crianças autistas utilizando a Análise do Comportamento Aplicada (ABA) junto ao Treinamento por Tentativas Discretas (TDT), que é uma metodologia de ensino que faz parte da ABA, que utiliza instrução e reforços em massa que criam contingências claras para moldar novas habilidades. Devido a sua importância na aplicação da terapia ABA, muitas pessoas falam do “método Lovaas” quando se referem ao ensino de crianças autistas. Mas vejamos como ele colocava a pessoa autista em posição de sub humano, de forma mais explícita durante sua entrevista a Chance (1974, p. 76): 

“Mostramos aos pais como recompensar o comportamento apropriado, como punir o comportamento inadequado, como moldar o discurso e assim por diante. Os pais se tornam os principais terapeutas e nós nos tornamos consultores dos pais. Quando eles têm um problema que não podem resolver sozinhos, tentamos encontrar uma solução. Mas, em um sentido real, o pai se torna um psicólogo infantil. E isso é ótimo para as crianças; sem a cooperação dos pais, poderíamos realizar muito pouco. Você vê, você começa praticamente do zero quando trabalha com uma criança autista. Você tem uma pessoa no sentido físico – eles têm cabelo, nariz e boca – mas não são pessoas no sentido psicológico. Uma maneira de olhar para o trabalho de ajudar crianças autistas é vê-lo como uma questão de construir uma pessoa. Você tem a matéria-prima, mas tem que construir a pessoa.” (tradução do Ricardo) 

Outro exemplo está no campo da fonoaudiologia quando se trata da abordagem terapêutica para pessoas gagas. A gagueira - também conhecida como disfemia e tartamudez, assim como outras deficiências, é descrita pelo modelo biomédico como “problemas frequentes com a fluência e fluxos normais da fala” - lê-se “fluente” e “normal” o corpo sem deficiência, que é o único corpo passível de normalidade por este modelo. Assim, entende-se que não somos fluentes sequer em nosso idioma nativo, e que devemos buscar a interferência da fonoaudiologia para melhorarmos, buscando sempre um corpo normal. 

Além de não abordarem questões necessárias de adaptabilidade comunicacional, como o uso de mensagens ao invés de telefonemas e vídeo-chamadas, ou da Comunicação Alternativa e Aumentativa (CAA), que abrange os métodos de comunicação usados para complementar ou substituir a fala ou a escrita para pessoas com deficiência na produção ou compreensão da linguagem falada ou escrita, algumas deficiências sofrem com a não inclusão na Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Este é o caso da gagueira e da mudez, além de outras deficiências da comunicação. Em teoria, elas seriam abraçadas pela LBI, mas por não estarem descritas em detalhes enquanto deficiências com direitos políticos, estes direitos não são respeitados. Podemos usar como exemplo o caso de um candidato ao cargo de analista ambiental do Ibama, excluído do concurso público pela junta médica por não o reconhecerem como pessoa com deficiência, além de ter seu pedido de candidatura mantido por improcedência da 5.ª Turma do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, isto pré-Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e pré-Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Mesmo após 15 anos do caso em questão, o cenário das pessoas gagas continua o mesmo. 

Hoje a luta por reconhecimento de deficiências não incluídas pela Lei Brasileira de Inclusão se dá, por exemplo, pelo Coletivo Orgulho Gago, cujo trabalho é reconhecido pelo Whitney Museum of American Art, museu de arte contemporânea dos Estados Unidos, na figura de JJJJJerome Ellis, pessoa gaga e ume des criadores da bandeira do Orgulho Gago, utilizada pelo Coletivo. Ele é formado em sua maioria por pessoas gagas, com ampla diversidade de identidades marginalizadas que se interseccionam, tendo como co-fundadora SSSSSSofia Fernandes, pessoa não-binárie gaga. 

É importante ressaltar este tipo de protagonismo na luta por direitos de pessoas com deficiência em contraponto a atuações como do Instituto Brasileiro de Fluência (IBF) e a Associação Brasileira de Gagueira (Abra Gagueira). O IBF, em seu III Fórum Científico a nível internacional, de 2023, não chamou uma pessoa gaga para se apresentar no Fórum, além da Instituição ser formada por fonoaudiólogos, assim como a Abra Gagueira, que mesmo com o atual presidente da Associação sendo o Luiz Fernando Ferreira, uma pessoa gaga, em seu cronograma do 12º Encontro Brasileiro de Pessoas que Gaguejam, de 2023, apenas fonoaudiólogos iriam se manifestar, assim como pais e mães de pessoas gagas. 

O protagonismo da luta pelas pessoas com deficiência tem que partir, não só, mas principalmente dos corpos com deficiência. “Nada sobre nós, sem nós”. 

O MODELO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA 

Este modelo defende, de acordo com Debora Diniz no livro “O que é deficiência”, em referência a Mike Oliver, pesquisador da primeira geração do modelo social, que: 

“[...] as causas da segregação e da opressão sofrida por Oliver, por exemplo, deveriam ser buscadas não nas seqüelas da poliomielite contraída na infância, mas nas barreiras sociais que dificultavam ou impediam sua locomoção em cadeira de rodas. Sua dificuldade de locomoção não deveria ser entendida como uma tragédia pessoal fruto da loteria da natureza, mas como um ato de discriminação permanente contra um grupo de pessoas com expressões corporais diversas”

Em síntese “um deficiente como Oliver diria: “minha lesão não está em não poder andar. Minha deficiência está na inacessibilidade dos ônibus””. Ainda, para o modelo social “[...] a deficiência era o resultado do ordenamento político e econômico capitalista, que pressupunha um tipo ideal de sujeito produtivo.”, que “[...] ela decorria dos arranjos sociais opressivos às pessoas com lesão.”, e que “[...] sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência.” 

A partir da compreensão dessas barreiras sociais vivenciadas por corpos divergentes da norma, autores como Sassaki elaboraram o conceito de dimensões de acessibilidade, que abrange a acessibilidade arquitetônica, que compreende a supressão dos impedimentos físicos que dificultam o acesso aos ambientais; A acessibilidade comunicacional, relacionada a supressão dos impedimentos de comunicação interpessoal e escrita; A acessibilidade metodológica, voltada a supressão dos impedimentos nos métodos pedagógicos e técnicas de estudos; A acessibilidade instrumental: significando a supressão dos impedimentos nos instrumentos, utensílios e ferramentas pedagógicas; A acessibilidade programática que é em relação a supressão dos impedimentos ocultos em políticas públicas; A acessibilidade atitudinal: relacionada a supressão de atitudes preconceituosas, estigmatizantes, estereotipadas e discriminatórias. Porém, para além dessas dimensões de acessibilidade citadas por Sassaki, hoje compreende-se o conceito com maior amplitude, como a dimensão de acessibilidade sensorial e acessibilidade digital, e de todas elas a derrubada da barreira atitudinal é a principal, pois a partir dela que as demais poderão ser superadas. 

Em complemento a Debora Diniz, com maior ênfase política, Tiago Henrique França, no artigo “Modelo Social da Deficiência: uma ferramenta sociológica para a emancipação social”, aponta que o modelo social da deficiência surge “advindo do movimento social das pessoas com deficiência na Inglaterra” - isso no fim dos anos 60 e começo da década de 70, e que “essa concepção de deficiência tem por objetivo fomentar a emancipação das pessoas com deficiência para que percebam criticamente qual o lugar que ocupam na sociedade.” Além disso, no artigo pontua-se que ”o Modelo Social origina-se da necessidade de crítica ao entendimento majoritário sobre a deficiência, o Modelo Médico, que se entende como universal e neutro, sendo assim também percebido socialmente devido à sua proximidade com o senso comum.”

A INTERSECCIONALIDADE DOS CORPOS 

Partindo do campo da interseccionalidade, que estuda a intersecção ou sobreposição de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação, podemos averiguar que a classe trabalhadora, que já sofre dentro do sistema econômico capitalista vigente que se baseia na propriedade privada dos meios de produção e sua exploração com fins lucrativos também possui outras diferentes formas de opressões estruturais sobre si além de sua posição como proletariado. A classe trabalhadora não é homogênea, sendo ela fragmentada por diferentes marcadores sociais que por ora se interseccionam, diferenciando trabalhadores de trabalhadores de acordo por raça, sexo, sexualidade, gênero e deficiência, por exemplo. Aqui, não defenderemos o identitarismo, que entende a luta política baseada somente em nome de identidades sociais e pelos que são parte dela, que pode ser inclusive agregado à extrema-direita como o “malafaismo”, e sim a defesa da união entre classe trabalhadora e suas diferentes identidades que se interseccionam. Não é possível desassociar as múltiplas identidades da materialidade do proletariado, já que todos nós possuímos identidades, marginalizadas ou não. 

De acordo com o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2020, comprovou-se que pessoas com deficiência recebem, em média, menores salários, “e as taxas de emprego para essas pessoas são menores em 53% para homens e em 20% mulheres, em comparação às pessoas sem deficiência“, o que evidencia a influência do gênero nos percentuais de desemprego entre as pessoas com deficiência, além de que pessoas com diferentes deficiências têm menor remuneração e oportunidades no mercado de trabalho, como aponta o artigo da revista Estudos Econômicos, intitulado “Deficiência, Emprego e Salário no Mercado de Trabalho Brasileiro”. Com base nos dados do artigo, podemos observar a vantagem salarial de trabalhadores deficientes sem limitações das atividades e os não-deficientes em relação aos deficientes com limitações (necessitam “ajustes significativos na infraestrutura ou nas rotinas de trabalho”), o que prova que não há hegemonia sequer no grupo das pessoas com deficiência (PcD). 

De acordo com os dados do módulo Pessoas com deficiência da Pnad Contínua 2022, a população com deficiência no Brasil foi estimada em 18,6 milhões de pessoas de 2 anos ou mais, o que corresponde a 8,9% da população dessa faixa etária. A desigualdade persiste mesmo entre as pessoas com nível superior: nesse caso, a taxa de participação foi de 54,7% para pessoas com deficiência e 84,2% para as sem deficiência. O nível de ocupação, pontua que apenas 26,6% das PcD estavam ocupadas, menos da metade do percentual encontrado para as pessoas sem deficiência (60,7%). O nível de ocupação, de acordo com o IBGE: 

“classifica como pessoas ocupadas na semana de referência as pessoas que, nesse período, trabalharam pelo menos uma hora completa em trabalho remunerado em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios (moradia, alimentação, roupas, treinamento etc.) ou em trabalho sem remuneração direta em ajuda à atividade econômica de membro do domicílio ou, ainda, as pessoas que tinham trabalho remunerado do qual estavam temporariamente afastadas nessa semana”. 

Cerca de 55,0% das pessoas com deficiência que trabalhavam estavam na informalidade, enquanto para as pessoas ocupadas sem deficiência esse percentual foi de 38,7%. Já o rendimento médio real habitualmente recebido pelas pessoas ocupadas com deficiência foi de R$1.860, enquanto o rendimento das pessoas ocupadas sem deficiência era de R$ 2.690. 

Para evidenciar ainda mais o ponto de não-hegemonia, precisamos considerar outros recortes sociais que interseccionam com a deficiência, como a disparidade salarial entre homens e mulheres num geral, sendo o rendimento delas em média 77,7% do rendimento dos homens (R$ 1.985 frente a R$ 2.555), já de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2019, uma mulher com deficiência terá maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho em comparação a uma mulher não-deficiente. Ainda no grupo das mulheres, é importante salientar a relação salarial de mulheres lésbicas cisgêneras ao salário de mulheres não-lésbicas cisgêneras, que pode chegar até 20% acima do salário de mulheres cis heterossexuais devido a uma “probabilidade” de não-gestação e não-maternidade, de acordo com o Banco Mundial em 2014, que deixa explícito o sexismo na hora de escolher uma profissional mulher no mercado de trabalho, a discriminando pelo seu gênero e/ou sexo, deixando claro os papéis de gênero impostos na sociedade patriarcal. E não pensem que por isso as mulheres cis lésbicas “saem ganhando” sobre as mulheres cis heterosexuais; segundo o levantamento "Representatividade, Diversidade e Percepção — Censo Multissetorial da Gestão Kairós 2022", realizado com mais de 26 mil pessoas entre 2019 e 2021, lésbicas representam apenas 1% no quadro geral das empresas; mulheres bissexuais, 1,4%; mulheres heterossexuais correspondem a 29,5% e homens heterossexuais 64,8%. Quando o recorte é feito em relação às lideranças, o cenário é ainda mais excludente às mulheres LGBTQIAP+. 

Precisamos salientar que quando estamos falando da comunidade LGBT+ do Brasil, falamos do país que tem a maior porcentagem da população autodeclarada LGBT+ do mundo, segundo a pesquisa 'Global Advisor - LGBT+ Pride 2023', feita pela Ipsos em 30 países. No Brasil, 15% dos entrevistados se declaram como parte da população LGBT+, número superior à média global, que é 9%, ou seja, estamos falando de uma população que é muitíssimo atingida, principalmente quando escancaram a hipocrisia de sermos o país que mais consome conteúdo adulto de trans e travestis desde 2016, caminhando entre o desejo e o ódio, já que pelo décimo quarto ano seguido o Brasil lidera a lista de países que mais mata pessoas trans e travestis, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). 

De acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia, o FGV Ibre, no primeiro trimestre de 2023 a remuneração média das mulheres negras era de R$ 1.948, o equivalente a 62% do que as mulheres não-negras ganham, 80% do que os homens negros ganham e 48% do que homens brancos ganham, isso devida a uma longa história de escravização de pessoas pretas que perpassou três séculos e meio, com feridas históricas que continuam abertas sem qualquer reparação. 

O relatório “A Situação das Pessoas Negras com Deficiência no Brasil”, da Minority Rights Group, de 2023, levanta os seguintes dados:

“Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, de um total de 190.755.799 habitantes, 51% se autodeclararam como negros (8% pretos e 43% pardos). Deste valor numérico, 45 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência, ou seja, um quarto da população brasileira, aproximadamente 24%. Dessa relação, ainda pelo Censo 2010, observa-se que 24,3% das pessoas com deficiência são negras, e 56% se identificam como do sexo feminino. Isso indica uma sub-representação de pessoas negras com deficiência em comparação com a população negra geral de 51%. Em contrapartida, Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) que foi realizada no período de 2013 a 2019 em residências particulares indicou que dos 279.382 entrevistados, 14.703 eram negros com deficiência ou 5% e 8.677 eram mulheres negras com deficiência, ou 3%. No entanto, em 2018, o IBGE realizou uma revisão dos dados gerais sobre pessoas com deficiência, coletados pelo censo de 2010, para alinhar a coleta de dados com o Washington Group on Disability Statistics e garantir comparabilidade na metodologia, análise e estatísticas com outros países. Por esse motivo, houve queda no percentual oficial de pessoas com deficiência no país, de 23,9% para apenas 6,7%.”..

Vale ressaltar que apesar dos novos índices se comunicarem com os dados obtidos na primeira Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), em 2013, que estima a porcentagem de 6,2% de pessoas com deficiência no Brasil, a metodologia da pesquisa escolheu privilegiar o modelo biomédico de conceituação de pessoa com deficiência e se afastou da perspectiva social adotada no questionário do Censo, de acordo com a plataforma DIVERSA - Educação inclusiva na prática. Além disso, também aponta o relatório da Minority Rights Group: 

“Pesquisas baseadas em dados censitários mostram que pessoas negras são significativamente mais propensas a viver em áreas inacessíveis para cadeiras de rodas e sem calçadas, saneamento, iluminação e drenagem adequadas, o que destaca a ligação entre deficiência, raça e pobreza no Brasil. Essa população também sofre com taxas mais altas de desemprego, acesso restrito à educação, saúde mais precária, menos oportunidades econômicas, bem como marginalização da participação social e política. Este relatório também reconhece o papel das mulheres no cuidado de pessoas com deficiência, a maioria das quais também são mulheres negras de origem marginalizada, envolvidas em trabalhos não remunerados de cuidado familiar que perpetuam a pobreza das famílias com membros com deficiência. A ausência de políticas públicas para apoiar e remunerar as pessoas em tais funções de cuidado contribui para a opressão contínua tanto das mulheres negras quanto das pessoas negras com deficiência.” 

Além da cisgeneridade, estereótipos de mulheridade hetero-cis-normativo, sexualidade e negritude, parcialmente já expostas para um dimensionamento mais amplo da interseccionalidade, devemos considerar as existências de pessoas trans e travestis, que no Brasil tem a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência em 90% dos casos devido a dificuldade - em maior parte - da inserção no mercado formal de trabalho, além da deficiência na qualificação profissional causada pela exclusão social, familiar e escolar. De acordo com a ANTRA, instituição brasileira voltada a suprir as necessidades da população de travestis e trans, assim como combater a transfobia, a expectativa de vida de pessoas trans e travestis é de apenas 35 anos, a mesma expectativa de vida dos chineses pré-proclamação da República Popular da China em 1949, quando a China era o país mais pobre do mundo, enquanto também em contraponto temos a expectativa de vida da população brasileira em 2023, de 77 anos segundo o IBGE. Também há de se levantar que um estudo feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA) revela que alunos, alunas e alunes trans e travestis compõem apenas 0,3% das graduações nas universidades federais, isto em muito também devido ao abandono do ensino médio entre os 14 e os 18 anos, de acordo com uma pesquisa da Rede Nacional de Pessoas Trans no Brasil, de 2017, por conta de uma opressão estrutural às identidades do guarda-chuva T. Segundo um estudo feito pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), somente 16,7% das pessoas trans se encontram no mercado de trabalho atualmente. Além disso, vale ressaltar que “segundo o DSM-5, a transgeneridade está mais preponderante em crianças autistas encaminhadas para atendimento clínico do que na população em geral, com incidência de 7,8%, de acordo com estudos recentes”, de acordo com o livro “Diversidade sexual, étnico-racial e de gênero: saberes plurais e resistências” na pesquisa “Crianças com disforia de gênero e transtorno do espectro autista: O despreparo dos profissionais da psicologia” do X Congresso internacional de diversidade sexual, étnico-racial e de gênero - volume 1 (X CINABEH). Segundo este mesmo livro, a condição transexual desumaniza mais a criança autista, levando a negação do reconhecimento de sua condição humana, devido a racionalidade diagnóstica (que perpetua nos DSMs (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais)) que comumente leva o profissional ao sentimento de estranheza quando uma criança autista desafia a matriz binária de inteligibilidade heteronormativa branca. 

A abordagem da deficiência caminhou de um modelo médico, no qual a deficiência é entendida como uma limitação do indivíduo, para um modelo social (MSD) mais abrangente, que compreende a deficiência como resultado das limitações e estruturas do corpo, mas também da influência de fatores sociais e ambientais do meio no qual está inserida. Nesta nova abordagem, utiliza-se como ferramenta a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF/OMS), no âmbito da avaliação biopsicossocial, como bem aponta o Ministério Público do Paraná. 

Quando falamos do espectro autista, estamos nos referindo a uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento (conhecidos como nível 1, nível 2 e nível 3 de suporte) no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva. Desta população, de acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 85% dos profissionais autistas estão fora do mercado de trabalho, isso considerando a estimativa de cerca de 2 milhões de autistas no Brasil em 2023, que equivale a apenas um quarto do número estimado pela pesquisa de prevalência de autismo nos Estados Unidos, que aponta 1 em cada 36 crianças de 8 anos de idade estão dentro do Espectro Autista em 2023 (relação de 4 meninos para cada menina autista), o que significa cerca de 6 milhões de pessoas autistas no Brasil se fizermos a mesma proporção desse estudo, de acordo com o Centro de Controle de Prevalência e Doenças (CDC) dos Estados Unidos. Ou seja, o IBGE erra em aproximadamente 66% na contabilização de pessoas autistas no Brasil, em comparação ao CDC, que por sua vez não apresenta um número maior de prevalência do autismo devido a não consideração de laudos tardios, muito por conta do mascaramento social do autista nível 1 de suporte. O mascaramento pode contribuir para o esgotamento autista e levar a sérios problemas de saúde física e mental, como depressão e ansiedade. Lembremos também que a prevalência do autismo tem aumentado progressivamente de acordo com os maiores especialistas na área, o que é fruto de mais informação, mais conscientização, melhor capacitação de profissionais de saúde e educação. O número de autistas não aumentou, o que mudou foi o critério e a facilitação ao acesso diagnóstico (principalmente no Brasil), que se ampliaram desde 2004, quando passaram a estudar a prevalência de autistas nos Estados Unidos. 

Assim como a identidade de gênero dentro do espectro autista, a sexualidade também parece ser mais variada do que entre aquelas pessoas que não são autistas. Apenas 30% dos autistas, de acordo com o estudo de 2018 “Sexual Orientation in Autism Spectrum Disorder”, foram identificados como heterossexuais, em comparação com 70% dos participantes neurotípicos (não-deficientes). E embora metade das 247 mulheres autistas em um estudo de 2020 tenham sido identificadas como cisgênero, apenas 8% relataram ser exclusivamente heterossexuais. 

Vale ressaltar que o autismo pode vir acompanhado de condições coexistentes, que é “tudo aquilo que é carregado pela sua carga cerebral em conjunto com seu processo de neurodesenvolvimento” de acordo com a Organização Neurodiversa pelos Direitos dos Autistas (ONDA). Essa associação de condições tende a ser um catalisador de crises autísticas. Entre as manifestações mais comuns em uma pessoa autista estão os transtornos de ansiedade, epilepsia, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e o transtorno desafiador de oposição (TOD), podendo ir até a neurodivergências que não são muito faladas, como por exemplo a gagueira, com 5,5 vezes mais chance de ocorrência em pessoas dentro do espectro autista, de acordo com o estudo “A coexistência de condições incapacitantes em crianças que gaguejam: evidências da Pesquisa Nacional de Entrevistas de Saúde”, realizada pelos fonoaudiólogos americanos Patrick Briley e Charles Ellis Jr.. Além também dos distúrbios do sono, que são muito frequentes, podendo ultrapassar o percentual de 80% das crianças autistas, segundo a Academia Americana de Neurologia. 

E, claro, não podemos deixar de falar sobre o etarismo (discriminação etária), que perpetua estereótipos negativos aos idosos, os impedindo à participação ativa e produtiva das pessoas mais velhas, o que contribui com a exclusão social e o isolamento dessa faixa da população. 

Quando falamos de deficiência, por vezes falamos de “outros corpos”; “corpos distantes” e que “jamais serão vivenciados”, mas as estatísticas mostram o oposto: em 2022, 41,8% das unidades unipessoais (de apenas uma pessoa) eram preenchidas por idosos (60 anos ou mais), segundo o Jornal Estado de Minas em 2023, e de acordo com o IBGE, em 2019, haviam mais de 17 milhões de PcD, e dessa parcela da população quase metade (49,4%) era composta por idosos, dado que desperta aos olhos os desafios de ser uma pessoa com deficiência com mais de 65 anos. Além disso, mais de um terço dos adultos mais velhos e idosos brasileiros apresentam sintomas depressivos, e quando falamos da parcela destes que moram sozinhos, o risco de depressão é dobrado, muito por conta do isolamento social, baixa autoestima e a solidão. Além do risco de depressão, os cuidados com a mobilidade também se tornam redobrados para pessoas idosas, inclusive com maior potência em pessoas com deficiência, em especial as de natureza física. Frequentar locais de encontro como clubes, praças, centros culturais, pode ajudar bastante, porém, para as pessoas com deficiência, que sempre enfrentaram as barreiras de acessibilidade, essa pode ser, ainda mais com o envelhecimento, uma questão, literalmente, intransponível, aponta o Site Câmara Paulista para Inclusão. 

E para concluirmos sobre o tema, nada melhor do que falarmos da autora Leah Lakshmi Piepzna-Samarasinha, que é socialista, autista, queer e trans não-binárie. Elu, em seu livro “O futuro é deficiente”, faz perguntas provocativas: “E se, num futuro próximo, a maioria das pessoas for deficiente - e se isso não for uma coisa ruim? E se a justiça e a sabedoria dos deficientes forem cruciais para criar um futuro em que seja possível sobreviver ao fascismo, às alterações climáticas e às pandemias e conseguir a libertação?”. Para responder essa série de perguntas, colocamos sob perspectiva os dados do Censo de 2019, onde 49,4% dos idosos eram PcD, e a expectativa de vida dos brasileiros no ano de 2023 pelos dados do IBGE, que é de 77 anos. Há expectativa de 18 anos de vida como pessoa idosa, e de acordo com a OMS, até 2100, a expectativa de vida da população brasileira deve alcançar 88,2 anos. Ou seja, o futuro das pessoas com deficiência é agora, como bem aponta Leah Lakshmi, e mesmo assim também é uma luta do futuro, com uma forte perspectiva interseccional. “O futuro é deficiente” foi escrito ao longo de dois anos de isolamento para deficientes durante a pandemia. É um livro de cartas de amor para outres QTBIPOC (Queer, Trans, Negros, Indígenas de Cor) com deficiência, como a própria autora (e para aqueles preocupados com a justiça para deficientes, a crise de cuidados e a sobrevivência ao apocalipse). Assim, por base de “O futuro é deficiente”, abre-se espaço à discussão dos futuros corpos com deficiência, como aponta Ashley Shew, professora associada do Departamento de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Virginia Tech, na MIT Technology Review. Ashley diz: 

“É necessário abrir espaço para pessoas com deficiência e futuros com deficiência para enfrentar de fato o que está diante de nós. [...] Com muita frequência, vendem-nos a promessa de futuros que trabalham para eliminar a deficiência por meio de projetos eugênicos, edição de genes e terapias criadas para levar as pessoas a uma fala ou marcha perfeita. Muitas vezes, há um foco na cura ou na reabilitação como pré-requisito para a participação; um foco em “soluções” para indivíduos, em vez de infraestrutura para capacitar diversas comunidades. Há uma certa “resistência” injusta imposta a indivíduos que geralmente estão à mercê de sistemas maiores de exclusão. Pedimos que as pessoas se dobrem no tempo e no espaço para se adequarem a uma visão de dignidade, bondade, produtividade e retidão moral e física, que é absolutamente o oposto de inclusão, inventividade e abertura. Precisamos de mais maneiras de ser. Parte disso envolve buscar formas alternativas de sentir, processar, mover-se, compreender e comunicar-se, e ver essas formas como boas e valiosas. Abrir-se para o pensamento de acesso total e para a experiência de pessoas com deficiência significará um mundo mais habitável — um mundo em que todos nós possamos viver.“

O SISTEMA CAPITALISTA E A CLASSE TRABALHADORA COM DEFICIÊNCIA 

O capitalismo é uma contradição em processo. O dinheiro - nesse sistema - precisa se acumular continuamente, reprodutivamente e de modo aumentado para ter credibilidade existencial. A partir dessa perspectiva, não é possível admitir a justa distribuição. Quanto mais dinheiro, mais ele precisa se concentrar nas mãos de poucos para se reproduzir e aumentar enquanto capital. Esse processo de acumulação pela burguesia tende a prejudicar toda classe trabalhadora, dando origem à famosa frase que finaliza o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Porém, mesmo que haja essa compreensão de união da classe trabalhadora, a luta do proletariado, nacional e internacional, não é única e homogênea. Há diferentes frentes da classe trabalhadora que são, em maior ou menor grau, oprimidas pelo sistema capitalista, e é de suma importância que a vanguarda revolucionária marxista-leninista dê espaço às vozes que sofrem com menores taxas de empregabilidade e de expectativa de vida, para que de fato possamos organizar um levante revolucionário em que toda a classe trabalhadora seja incluída, em toda sua mais vasta identidade. Como bem pontuou Stalin, em seu livro “Sobre os Fundamentos do Leninismo”, no capítulo XVIII - O Partido, quarta parte: “É supérfluo demonstrar que, sem um partido capaz de reunir em torno de si as organizações de massas do proletariado e de centralizar, no curso da luta, a direção do movimento em seu conjunto, o proletariado na Rússia não teria podido instaurar a sua ditadura revolucionária.” 

Para escancararmos ainda mais a negligência e a sub-representatividade política da classe trabalhadora com deficiência a nível institucional, que abarca a necessidade de discussão no campo marxista-leninista, precisamos falar da quantidade de pessoas com deficiência no Congresso Nacional. De um total de 594 congressistas, onde 513 fazem parte da Câmara dos Deputados e 81 do Senado Federal, as pessoas com deficiência representam apenas 2,52% das assembleias do Congresso Nacional em 2022. 

Apenas 1,6% dos candidatos nas eleições de 2022 eram pessoas com deficiência, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Destes, apenas oito foram eleitos, sendo um senador, dois deputados federais, quatro deputados estaduais e um deputado distrital, além de outros três deputados federais com dados sigilosos, de acordo com a assessoria de imprensa da Câmara dos Deputados. Dos eleitos em 2018, quatro são pessoas com deficiência, segundo dados informados pela assessoria de imprensa do Senado, totalizando apenas 15 PcD no Congresso Nacional em 2022. Usando como base os dados do IBGE de 2010, onde aproximadamente 24% da população brasileira daquele ano era composta por pessoas com deficiência, é perceptível a diferença abrupta das PcD dentro e fora da política institucional burguesa. 

Outra informação valiosa a se ressaltar é que todos os 8 candidatos PcD eleitos em 2022 (não consideramos os que possuem dados sigilosos por motivos óbvios) contam com ensino superior completo, o que escancara o recorte socioeconômico dos pouquíssimos que chegam ao Congresso Nacional. Para Ana Rita de Paula, especialista em políticas públicas e militante PcD, o baixo acesso à educação de qualidade limita a eleição de candidatos com deficiência. “O que agrava a situação da maior escolaridade é que a maioria das pessoas com deficiência é de baixa renda, porque existe um vínculo socioeconômico da deficiência”, afirmou à CNN Brasil. 

Assim, é inquestionável, documentado neste texto, como corpos com deficiência possuem maior vulnerabilidade socioeconômica, além de se interseccionarem com raça, sexo, sexualidade e gênero, por exemplo. Além de que, por óbvio, também fazem parte da classe trabalhadora. Afirmamos isto com rigidez devido ao esvaziamento causado pelo liberalismo, este por vezes fantasiado de marxismo, que coloca corpos com deficiência enquanto corpos identitários de desvio liberal pequeno burguês. É preciso que as diferentes identidades marginalizadas da classe trabalhadora sejam devidamente incluídas na luta pela democracia do proletariado, ou perderemos parte dos nossos à cooptação por diferentes frentes políticas à direita, que em maioria partem da extrema individualidade dos indivíduos com deficiência, colocando-os como “corpos indesejados que precisam ser consertados”. O objetivo maior do corpo com deficiência, partindo do modelo biomédico, é fazer com que as pessoas se enquadrem na sociedade - e não a sociedade a pessoa com deficiência - por meio, por exemplo, de múltiplos remédios psiquiátricos e/ou intervenções terapêuticas, alguns desses remédios servindo apenas como placebo, deixando completamente a escanteio a emancipação dos corpos, visando apenas a utilidade, produtividade e funcionalidade do corpo com deficiência para que o sistema capitalista possa se apropriar ao máximo da força de trabalho, sem qualquer questionamento a estrutura que o aflige. Diferentemente, a perspectiva social da deficiência compreende que há uma estrutura capacitista que submete determinados corpos a posição de vulnerabilidade, e que este estado não simplesmente existe por limitações pessoais. Exemplo é a suposta disfuncionalidade na fluência posta a indivíduos com deficiência, como pessoas autistas, gagas e tourette, em contraponto a comunicação verbal identificada como típica e funcional. Assim, para aqueles que passam a ser lidos como pessoas com deficiência pela sociedade, com impedimentos de longo prazo, a dificuldade - e por vezes impossibilidade - de adentrar ao mercado de trabalho se torna uma realidade cruel, já que a deficiência é lida como inútil para o sistema capitalista, que apenas visa o lucro acima de tudo. Tanto é verdade que há benefício de abatimento do imposto de renda parte do “custo” de contratar pessoas com deficiência ao ultrapassar o número mínimo de contratos que a lei exige, visando “um estímulo à empresa do ponto de vista tributário”, segundo Otávio Leite, hoje do União Brasil, até então deputado federal pelo PSDB e relator do projeto na Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara. Ainda, mesmo com esses benefícios aos que contratam pessoas com deficiência, sete em cada dez pessoas com deficiência estão desempregadas, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua de 2022, que mostra que apenas 26,6% da população com deficiência está empregada. Esse número é alarmante por si só, porém não é compatível com a realidade material das pessoas com deficiência em nosso país, já que o IBGE se alinhou à coleta de dados do Washington Group on Disability Statistics, fragilizando a coleta de dados do Instituto. 

As barreiras atitudinais juntamente aos benefícios à classe dominante fornecidos pelo Estado burguês, demonstram a falsa inclusão dos corpos com deficiência no mercado de trabalho, onde estes passam a ser usados como token (símbolo) da instituição, com objetivo de melhorar a sua imagem diante dos consumidores e do mercado. Nesta ação “benevolente”, não há intenção de promover mudanças estruturais ou oportunidades reais de participação e poder, o que reflete nas exigências surreais postas aos corpos divergentes da heterocisnorma branca sem deficiência. Podemos usar como exemplo as vagas de emprego voltadas a corpos trans e travestis, que solicitam graduação, sendo que apenas de 0,1% a 0,3% possuem acesso à universidade, seja ela pública ou particular, o que deixa de fora mais de 99% deste recorte populacional da possibilidade de acesso ao emprego formal. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no ano de 2020 no Brasil, 90% das pessoas trans e travestis tem a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência. Já a advogada Gabriela Augusto, presidente e fundadora da Transcendemos, consultoria especializada em diversidade, complementa: “Até pouco tempo, não se via pessoas trans à luz do dia, só nas esquinas escuras durante a noite”. Já no recorte de corpos com deficiência, podemos usar como exemplo a etnografia de Valéria Aydos, de 2017, intitulada ““Não é só cumprir as cotas”: Uma etnografia sobre cidadania, políticas públicas e autismo no mercado de trabalho.””, onde em parte ela acompanha o desempenho de Tomás, que é uma pessoa que vivencia o espectro autista, a deficiência intelectual e o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), em seu ambiente de trabalho. Durante conversa com psiquiatra, foi relatado que “Não veremos um chefe cobrar que um cadeirante ande, mas é comum vermos a exigência de que pessoas dentro do espectro [autista] desenvolvam habilidades sociais, como entrosar-se com colegas ou atender ao público, o que para elas pode ser uma violência”. Já em diálogo com um colega de trabalho sobre Tomás, foi dito que ele “[...] não se relaciona. Aqui na empresa isso conta pra ser efetivado. Tem que se integrar com o grupo. No almoço ele fica sozinho, não senta com as outras pessoas no refeitório.” 

Para Valéria:

“O esforço para ser um bom funcionário parecia não ser suficiente para que Tomás correspondesse às exigências de “perfil” da empresa. Sua trajetória até ali parecia lhe impor uma barreira social que estava além da sua vontade individual. Eu sabia das estratégias de algumas empresas de contratarem turmas de aprendizes com deficiência para que pudessem prorrogar, por dois anos, o prazo para o cumprimento das exigências impostas pela lei de cotas. Imaginava também que, se fosse pela vontade dos gestores, Tomás não efetivaria sua vaga. Presenciei vários telefonemas e reações de descontentamento do gestor geral com a “pouca produtividade dos PCDs” e o fato de “não poder demiti-los por faltarem ao trabalho”. 

Assim como as barreiras atitudinais na iniciativa privada, o capacitismo arquitetônico é extremamente presente no dia a dia das pessoas com deficiência, impossibilitando o acesso a determinados espaços, sejam eles públicos ou privados, tombados como patrimônio histórico ou não. No caso dos patrimônios históricos tombados temos uma questão especialmente problemática, da qual não temos qualquer pretensão de propor uma solução. Nosso objetivo aqui é levantar a questão histórica de inacessibilidade de corpos por meio da arquitetura, do passado e do presente, que têm de ser questionadas e discutidas por diferentes campos de atuação. Por fim, seguimos, o fato é que a preservação histórica está acompanhada da preservação da opressão dos corpos com deficiência, já que as mesmas não foram moldadas para que diferentes corpos pudessem ir e vir de suas instalações. Há tentativa de adaptações arquitetônicas externas às construções, que visam acessibilidade à construção tombada, mas o acesso continua a ser, por muitas vezes, negligente e excludente aos corpos com deficiência. Para não ficarmos apenas no campo das ideias e termos materialidade na crítica, usamos como exemplo a Escola Técnica Estadual Doutora Ruth Cardoso, de São Vicente. Construída no fim do século 19 por maçons, a escola foi tombada em 2020 como patrimônio material paulista, e assim como outros tantos patrimônios históricos tombados, sofre com a não acessibilidade de diferentes corpos em sua instalação. Rampas externas de acesso não respeitam normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), porque para aplicação das normas de exigências seriam necessárias intervenções diretas ao patrimônio. Quanto às escadas internas e externas da “Ruthinha”, elas levam a diferentes níveis de piso, sendo o mais alto o da secretaria dos ensinos médio e técnico. Por ser patrimônio histórico tombado, com arquitetura que não respeitaria as restrições de implantação de um elevador, não há fácil acesso aos seus andares, para quaisquer pessoas que desejem acessá-los. Para alunos e demais, que queiram resolver diferentes questões com a secretaria de ensino público, sejam elas de alterações ou retiradas de documentos da instituição, é preciso atendimento presencial no andar mais alto do patrimônio, sem qualquer possibilidade de atendimento com acessibilidade para pessoas com deficiência. A acessibilidade colaboraria com a queda da principal barreira, a atitudinal, mas a negligência e a excludência continuam a ser perpetuadas, mesmo por instituições públicas, o que exclui corpos com deficiência da possibilidade de ensino público de qualidade. 

Esses exemplos de barreiras à corpos com deficiência, provenientes do capacitismo estrutural que ocorrem na atualidade, são reflexos de processos históricos que demonstram que desde o início do sistema capitalista, em sua primeira fase, o mercantilismo (também chamado de capitalismo comercial), tem por objetivo a opressão, o controle, a normalização e a inexistência dos corpos com deficiência. Colocamos abaixo alguns dos principais eventos históricos, em ordem cronológica.

ESCRAVIDÃO NO BRASIL 

A diáspora africana, também conhecida como escravidão, foi o processo mais brutal de desumanização e massacre populacional que ocorreu no Brasil, perdurando por mais de 300 anos consecutivos. Este período corresponde a mais da metade da história do nosso país enquanto Brasil pós “descobrimento” português. 

De acordo com André Lucena, em matéria à Carta Capital, de nome “Mais de 1 milhão de pessoas vivem em situação de ‘escravidão contemporânea’ no Brasil, aponta estudo”:

“Reflexo de um processo histórico incompleto, a escravidão persiste no Brasil. [...] o Brasil sente, mais de um século depois, os reflexos de um processo conduzido, segundo a literatura sobre o tema, sem levar em consideração a realidade concreta da massiva população libertada. Ano após ano, crescem os números de pessoas resgatadas em condição análoga à escravidão no país.” 

De acordo com estimativa feita pelo Global Slavery Index 2023, organização internacional de direitos humanos, no Brasil há mais de 1 milhão de pessoas que vivem em situação de “escravidão contemporânea”, ocupando a posição 11ª entre os países que têm mais pessoas nessa condição, em um ranking com 160 países. 

Durante o período de escravatura institucionalizada, o país tratou a população preta, sequestrada de seus lares, enquanto propriedade privada, posse dos escravagistas. Essa forma dada de exploração aos corpos pretos no Brasil estava inserida na infraestrutura do sistema capitalista, como pertencente a periferia do mundo, gerando por consequência processos de opressão do Estado burguês a essa parcela da classe trabalhadora na superestrutura, por meio de ação interseccional entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do quarto poder: a Mídia hegemônica, que por meio da propaganda tem a capacidade de influenciar mentes e corações a seguirem e perpetuarem seus ideais burgueses, ocasionando a continuidade da dinâmica do racismo estrutural. 

No caso da classe trabalhadora preta com deficiência, esse processo se deu de maneira mais intensificada, a começar pela inexistência da definição do termo deficiência em seu período histórico, além de que várias condições passaram a ser entendidas enquanto existentes apenas pós-escravidão, como por exemplo o espectro autista e outras neurodivergências. Há pouco material disponível hoje que aborde diretamente o termo “deficiência” em referência a época da escravidão, não como adjetivo, mas constitutivo da existência humana. Porém, ao que temos acesso na historiografia, se evidencia a posição em que pessoas com deficiência se localizam no modo de produção capitalista. Clovis Moura, em seu livro “Dialética Radical do Brasil Negro”, publicado em 1994, aponta que:

“[...] foi criado o tráfico com a África o qual supria de novos braços aqueles que morriam ou eram inutilizados para o trabalho nas condições do regime escravista: morte em epidemias de varíola, cólera, sarampo, ou nas engrenagens e caldeiras dos engenhos, ou mutilações que os deixavam aleijados, cegos, com deficiências que os colocavam sem condições de trabalhar. Muitos deles, nesses últimos casos eram alforriados para que aliviassem o senhor do ônus de alimentá-los.”

Ou seja, o trabalhador escravizado era posto enquanto mercadoria voltada a produção no sistema capitalista, produzindo para seu escravocrata dentro da lógica colonial, mas que, ao adquirir uma deficiência devido a grande intensidade de exploração, era liberto pela vontade de seu senhor, com motivo alegado o custo de “manutenção”, não sendo “digno” de ser escravizado. 

ALEMANHA NAZISTA 

“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”. Esta frase, escrita por Karl Marx e Friedrich Engels em 1932 no livro “A ideologia alemã”, escancara a principal base dos movimentos fascistas em todo o mundo. Estes movimentos são justificados e implementados após crises econômicas, comumente associados a um inimigo comum, seja ele interno ou externo. Estes bodes expiatórios na Alemanha nazista, assim como no Brasil, foram os comunistas. 

Hitler, em Mein Kampf (Minha Luta), escreve: 

“À proporção que me aprofundava no conhecimento da doutrina marxista e me esforçava por ter uma idéia mais clara das atividades do marxismo, os próprios acontecimentos se encarregavam de dar uma resposta àquelas dúvidas. A doutrina judaica do marxismo repele o princípio aristocrático na natureza. Contra o privilégio eterno do poder e da força do indivíduo levanta o poder das massas e o peso-morto do número. Nega o valor do indivíduo, combate a importância das nacionalidades e das raças, anulando assim na humanidade a razão de sua existência e de sua cultura. Por essa maneira de encarar o universo, conduziria a humanidade a abandonar qualquer noção de ordem. E como nesse grande organismo, só o caos poderia resultar da aplicação desses princípios, a ruína seria o desfecho final para todos os habitantes da Terra. Se o judeu, com o auxilio do seu credo marxista, conquistar as nações do mundo, a sua coroa de vitórias será a coroa mortuária da raça humana e, então, o planeta vazio de homens, mais uma vez, como há milhões de anos, errará pelo éter. A natureza sempre se vinga inexoravelmente de todas as usurpações contra o seu domínio. Por isso, acredito agora que ajo de acordo com as prescrições do Criador Onipotente. Lutando contra o judaísmo, estou realizando a obra de Deus.”

O processo mais intenso e agressivo do avanço fascista contra a classe trabalhadora se deu na Alemanha no seu período sob comando de Adolf Hitler que, dentro de toda a história mais recente, além de sua perseguição política aos marxistas, também perseguia grupos minoritários em geral, como por exemplo aos corpos com deficiência. A Alemanha nazista como Estado possuía um projeto eugenista em relação a esses e outros corpos que fugiam da norma imposta. Corpos que faziam parte do padrão hegemônico, portanto, branco, hétero, cisgênero e sem deficiência, tinham poder de ir e vir e eram valorizados pelo regime nazista, como objetivos finais a serem alcançados, como demonstra a filmagem do documentário “Olympia” durante a Segunda Guerra Mundial no Terceiro Reich, que exibia corpos atléticos alemães por ângulos grandiosos. 

Em relação a política eugenista, ela se dividia tanto no aspecto positivo, voltado ao melhoramento dos corpos e o incentivo para que pessoas que eram lidas enquanto “saudáveis” tivessem filhos, quanto no negativo, voltado a supressão de corpos entendidos como “não saúdaveis”, incluindo o assassinato de toda e qualquer pessoa “fraca” ao entendimento do regime. Nesse contexto, foi criado como uma política destinada a pessoas com deficiência, o Aktion T4, também conhecido somente como T4, programa eugenista voltado a eutanásia. O motivo da existência desse programa era o discurso de que pessoas com deficiência tinham uma genética considerada “ruim” e que davam mais gastos para a sociedade, que por sua vez “pagava a conta”, pelo entendimento fascista. 

No caso de pessoas no espectro autista, o maior algoz do regime foi Hans Asperger, psiquiatra e pesquisador austríaco, um dos principais responsáveis pelo assassinato de pessoas autistas em nome do Terceiro Reich. Em resenha ao livro de Edith Sheffer, intitulado “Crianças de Asperger”, Larissa Yule Amado Santos e Simone Silveira Amorim, no artigo “As origens do autismo na Viena nazista: Entre a vida e o extermínio”, escrevem que:

“[...] Sheffer apontou que, para Asperger, os meninos no espectro autista tinham falta de “gemüt”, o que os nazistas apontavam como um sentimento social. No nazismo, o “gemüt” era um dos elementos mais importantes, pois era um dos fundamentos do “reich”. Pessoas sem “gemüt” eram vistas com preocupação e passaram a ser exterminadas, já que eram vistas como indivíduos que não se encaixavam na coletividade e que, por esse motivo, “sujavam” a ideia de “raça superior” e “atrapalhavam o progresso”, e que “[...] “gemüt” era um termo que originalmente significava ‘alma’ no século XVIII. Asperger era um dos responsáveis a destinar crianças a Spiegelgrund, hospital que recebia crianças com deficiências em geral eque, raramente, voltavam para suas casas, sendo assassinadas ou deixadas à exposição da fome e da pneumonia até a morte, dentro do hospital. Sheffer aponta que o que acontecia em Spiegelgrund não era considerado assassinato, mas eutanásia de “vidas indignas de serem vividas”. 

De acordo com a Enciclopédia do Holocausto, o programa de eutanásia iniciou em 1939 e terminou somente em 1945, final da Segunda Guerra, porém, a política de eutanásia se estende, em menor grau, até os dias de hoje em países da centralidade do sistema capitalista, como Alemanha, Bélgica e Espanha, de acordo com o SIC Notícias na reportagem “Os cinco países na Europa onde a eutanásia é há vários anos uma realidade”. Assim, é evidente a prática de eliminação sutil de corpos com deficiência, prática essa que pertence ao modo de produção onde pessoas são lidas enquanto mercadoria.

EM DEFESA DO COLETIVO PELOS CORPOS COM DEFICIÊNCIA 

Em consideração aos dados apresentados neste texto, onde abordamos parte da vasta interseccionalidade da classe trabalhadora, a luta pelos corpos com deficiência se vê cada vez mais explícita no campo marxista-leninista. No passado e no presente, os processos eugenistas disfarçam-se no senso comum, com argumentos de ajuda “no progresso” e na “qualidade de vida” de toda civilização, enquanto corpos que necessitam de acessibilidade, equidade e respeito em sua diversidade são negados à vida e ao convívio em sociedade. 

Para embasar a importância da frente marxista na luta das pessoas com deficiência, precisamos evidenciar como a direita faz a cooptação das pautas PcD, enquanto temos pouquíssimas frentes de atuação nas esquerdas. Abaixo, citamos algumas figuras da direita que deram luz às pautas da deficiência. 

MARA GABRILLI 

Mesmo sendo pessoa tetraplégica que atua na política institucional, Mara Gabrilli é a prova que ser pessoa com deficiência não a faz ser a favor da luta da classe trabalhadora, com ou sem deficiência. Até então do PSDB, em 2023 foi compartilhada por Flávio Bolsonaro e Carla Zambelli, em vídeo em que concedeu entrevista à Jovem Pan News, dizendo existir um suposto esquema que visava desvincular Lula e o PT ao assassinato de Celso Daniel, em 2002. À época da entrevista, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) multou e determinou liminarmente a remoção dos conteúdos das redes de Zambelli, Flávio Bolsonaro e Mara Gabrilli, alegando se tratar de “conteúdo expressa e judicialmente já reconhecido como desinformativo e ofensivo”. Em 2019, votou a favor da reforma da previdência de Jair Bolsonaro, e em 2017 a favor da reforma trabalhista de Michel Temer. 

CAPITÃO FÁBIO ABREU 

Pessoa de direita, até então de um partido ultradireitista como o Partido Liberal (PL), o mesmo partido de Jair Bolsonaro, Capitão Fábio Abreu está pautando na política institucional aquilo que é dever das esquerdas, como a luta pelos direitos políticos de pessoas com deficiência que não são abraçadas pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI) por falta de especificidade nominal enquanto corpos com deficiência. Ele é autor do Projeto de Lei 2630/2021, pronto para entrar na pauta de votações na Comissão de Saúde (CSAUDE). O PL propõe que a pessoa TDAH seja considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais. 

MICHELLE BOLSONARO 

Então primeira-dama do Brasil, em 1º de janeiro de 2019, Michelle Bolsonaro quebrou o protocolo para discursar antes de Jair Bolsonaro em sua posse, se comunicando em língua de sinais brasileira (Libras) durante a cerimônia. A performance pública da Libras pela primeira-dama engajou a comunidade de pessoas com deficiência, especialmente quando disse durante o evento: 

“Gostaria de modo muito especial de dirigir-me à comunidade surda, às pessoas com deficiência e a todos aqueles que se sentem esquecidos: vocês serão valorizados e terão seus direitos respeitados. Tenho esse chamado no meu coração e desejo contribuir na promoção do ser humano”. 

Além do contexto da posse presidencial, em participação à recepção a novos funcionários com deficiência da Caixa Econômica Federal, também em 2019, Michelle ressaltou a importância de se cumprir a lei de cotas, mas defendeu uma nova cultura organizacional, independentemente da legislação, o que deveria ser pautado de forma intensa e constante pelas esquerdas, em especial a esquerda radical. Ela disse: "É importante que as empresas não tenham como objetivo apenas alcançar a porcentagem exigida pela lei, mas sim que busquem gerar mudanças na cultura da organização, a fim de trazer naturalidade na convivência entre seus trabalhadores", e que "O grande desafio para a inclusão está na mudança dos olhares. Na aceitação do próximo como profissional, e não como deficiente." 

JAIR BOLSONARO 

Ex-presidente ultradireitista, possuía um intérprete de Libras ao seu lado em vários de seus discursos institucionais, enquanto o que temos de mais próximo de inclusão aos corpos com deficiência a nível federal pelas esquerdas é o presidente Lula, que pratica uma inclusão conservadora. Vale ressaltar que Lula é pessoa com deficiência adquirida em acidente de trabalho enquanto torneiro mecânico, em 1964.

Esses exemplos evidenciam o avanço da direita e extrema-direita sobre pautas que deveriam ser de cunho popular, mas que estão sob o domínio das igrejas e das clínicas, essas que são representantes da classe dominante. 

RITA VON HUNTY 

No campo da esquerda radical temos a drag queen, professora, educadora popular, atriz e produtora de conteúdo, Rita Von Hunty, interpretada pelo Guilherme Terreri, que em suas gravações para seu canal no YouTube, “Tempero Drag”, utiliza do trabalho do intérprete de Libras Thyago Santos, desde setembro de 2020, com objetivo de combater o capacitismo e lutar pela inclusão das pessoas com deficiência. 

Guilherme Terreri, em seu vídeo intitulado “Inclusão”, fala sobre o motivo do acréscimo da Libras em seu conteúdo, em resposta a uma polêmica no Instagram, onde Emerson Faria, pessoa com deficiência que assiste ao Tempero Drag, havia perguntado em seu privado: “Rita, eu adoro o seu trabalho, eu sou surdo oralizado e é difícil acompanhar, você pode legendar?”, a qual teve como resposta: “Querido, queremos muito, mas não temos tempo”. 

Ainda durante o vídeo de resposta à crítica, onde Gulherme (enquanto Rita Von Hunty) explica sua decisão de implementar essa acessibilidade, disse:

“Eu preciso ler essa crítica como uma crítica política, e entender como eu posso usar isso como uma ferramenta pra [sic] propor uma reflexão e falar sobre algo, e esse algo sobre o qual a gente precisa falar é como os nossos conteúdos, meios, debates, à esquerda ainda estão pouco, ou extremamente pouco, acessíveis para pessoas PcD [sic].”

Aqui, vale ressaltar a importância da autocrítica e da acessibilidade da informação no campo marxista-leninista, já que a luta de classe se dá por diferentes identidades, que precisam de diferentes abordagens comunicacionais para além da oralizada estereotipada. 

PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL) 

Hoje, como partido de vanguarda no campo da luta pelos corpos com deficiência na esquerda, o mais “radical” é o PSOL. A nível institucional, o partido possui uma setorial voltada exclusivamente às pautas de pessoas com deficiência. Já no campo de mandato, há políticos que encampam na área da educação a inclusão de pessoas com deficiência, como a deputada federal Luciene Cavalcante, o deputado estadual Carlos Giannazi (SP), e seu irmão, Celso Giannazi, vereador (São Paulo). 

Dessa forma, levando em consideração os dados aqui demonstrados nesse documento, sendo eles: 

● O avanço histórico do sistema capitalista no processo eugenista de normalização de corpos dissidentes, com o objetivo de formar “corpos perfeitos” para o trabalho; 

● A urgência de resgatar materiais e memórias constituintes da historiografia da deficiência que se interseccionam com o campo marxista; 

● O como a pauta da deficiência é sobre o passado, o presente e o futuro, da qual todos nós precisamos dar a devida importância, pensando na interseccionalidade dos corpos. 

● A falta de mobilização das esquerdas, em especial da esquerda radical, em pautar o debate da deficiência, partindo do campo do materialismo histórico dialético;

● A cooptação da pauta das pessoas com deficiência pelo (neo)liberalismo e, principalmente, pelos campos conservadores e reacionários; 

Assim, concluímos a importância do presente documento, que visa dar luz à urgência da luta dos corpos com deficiência no campo marxista-leninista.


Bruna Luisa Gago Silva (ela/dela) 

É pessoa autista, gaga, travesti e mulher trans, que vivencia o transtorno do processamento sensorial (TPS) e o transtorno de ansiedade generalizada (TAG), além da pansexualidade, demissexualidade (dentro do guarda-chuva da assexualidade) e da não monogamia. Transativista, atua pelos Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Coletivo Orgulho Gago, onde levanta a importância de uma perspectiva interseccional referente aos corpos com deficiência, que inclui a transgeneridade, não binariedade e a travestilidade em sua vasta gama de intersecções. É graduada em Administração pela União Brasileira Educacional (UNIBR), com formações técnicas em Edificações e Instalações Prediais pela Escola Técnica Estadual (ETEC). Além disso, é estudante de Tecnologia Nuvem e IA da Microsoft, palestrante na área da escrita desde 2020 e produtora de conteúdo do TRANSgressão, projeto que visa desmistificar temas da comunidade LGBTQIAP+ e da deficiência, a partir de uma perspectiva interseccional e materialista. Seu atual foco de pesquisa reside na intersecção entre as identidades marginalizadas e a diversidade sexual e de gênero. 

Ricardo Augusto de Souza Oliveira (ele/dele) 

É pessoa autista e com TOC, bissexual e ativista pelos Direitos Humanos das pessoas com deficiência. É especialista em Direitos Humanos na América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), especialista em Mídias e Redes Sociais pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM), e graduado em Comunicação Social pela Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC). Além disso, é estudante de Tecnologia Nuvem e IA da Microsoft, palestrante na área dos Direitos Humanos das pessoas com deficiência e produtor de conteúdo do Autismo Pensante, projeto que visa desmistificar temas da deficiência, a partir de uma perspectiva interseccional e materialista. Seu atual foco de pesquisa reside na intersecção entre o campo da deficiência e do materialismo histórico dialético.