'Em Defesa da Crítica da Economia Política – Uma “resposta” a Ouriço Azul e Lhama Roxa' (Doni)
Faço um apelo, camaradas: não tenham medo de ler o Capital, não tenham medo das abstrações e não deixem de pensar criticamente sobre nossa sociedade para que possamos transformá-la radicalmente.
Por Doni para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, digo que se trata de uma “resposta” pois só escrevi o presente texto porque a leitura de algumas partes do texto dês camaradas Ouriço Azul e Lhama Roxa me trouxe bastante inquietação acerca dos rumos de nossos debates sobre a crítica da economia política.
Não li o texto completo, não me proponho a responder todos seus argumentos e pontos levantados, apenas duas questões problemáticas que identifiquei:
Excerto 1:
“Invista seu tempo em produzir e se utilizar da realidade e se livre das garras da abstração mental, o fascismo está há tempos presente e não podemos nos dar o direito de relaxarmos em debates idealistas irrelevantes.”
Excerto 2:
“O Capital é um excelente guia para o entendimento das forças produtivas capitalistas e de sua lógica, tal qual tudo que Marx desenvolveu. No entanto, o que estamos argumentando enquanto tentamos explicar o que é socialismo com características chinesas é que, se utilizando de Marx, Engels, Lenin, O pensamento Mao Zedong, O pensamento Deng Xiaoping e O pensamento Xi Jinping, as bases filósoficas e científicas do socialismo com características chinesas são expostas a realidade e não simplesmente a discussões vázias do que Marx disse ou não disse. De quem é comunista de verdade ou não. E isso, para além de uma aplicação prática do que Marx e Engels elaboram do socialismo ciêntífico, é a única maneira possível de se fazer a construção socialista em um país: aplicando o método neste país de acordo com as condições deste país.”
O primeiro fragmento chama a atenção por não estar muito longe de algo que um “coach” qualquer diria a ume trabalhadore cujo patrão deseja que elu trabalhe mais e reclame menos, ganhando o mesmo salário. Entretanto, não foi essa a parte que me incomodou (mais), mas a segunda, “o fascismo está há tempos presente e não podemos nos dar o direito de relaxarmos em debates idealistas irrelevantes.”
Nesse momento eu gostaria de poder perguntar a Ouriço Azul e Lhama Roxa: por que vocês são comunistas?
Vocês são comunistas porque lutam contra o fascismo? Porque lutam contra o neoliberalismo? Porque apoiam o anti-imperialismo chinês contra a besta imperialista estadunidense?
Ou são comunistas porque entenderam que a sociedade capitalista, em “condições normais”, sem neoliberalismo, sem fascismo, sem imperialismo estadunidense, ainda assim produz uma classe parasita e uma outra, explorada, violentada, famélica, mas que não tem nada a perder?
Lênin explica melhor do que eu o principal problema dessa primeira concepção [1]:
A sociedade capitalista, considerada nas suas mais favoráveis condições de desenvolvimento, oferece-nos uma democracia mais ou menos completa na República democrática. Mas, essa democracia é sempre comprimida no quadro estreito da exploração capitalista; no fundo, ela não passa nunca da democracia de uma minoria, das classes possuidoras, dos ricos. A liberdade na sociedade capitalista continua sempre a ser, mais ou menos, o que foi nas repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade de senhores fundada na escravidão. (grifo nosso)
Quantas vezes o fascismo já foi “vencido” pra apenas milagrosamente retornar depois?
O partido neonazista alemão “AFD” tem atualmente 78 deputados eleitos no parlamento. Na Itália, um partido abertamente fascista (“irmãos da Itália”) governa o país, com 118 deputados e 66 senadores.
No Brasil, sabemos muito bem o risco de um novo governo de extrema-direita e de um novo golpe militar-empresarial, uma vez que a última tentativa foi impedida por acaso, acriticamente, de forma inocente e com um sorriso no rosto de agradecimento aos golpistas.
O que se espera de comunistas é que não caiam nesse jogo ridículo de esquecer a causa do fascismo, do neoliberalismo e seja lá do que for, isso é, de esquecer de lutar contra o capitalismo. Afinal de contas, deve ter algum motivo pra essas ofensivas burguesas continuarem acontecendo, certo? Podemos nos concentrar nisso ou isso é estar nas “garras da abstração mental”?
É impossível lutarmos contra o capitalismo se sequer entendemos o que é capitalismo. Além disso, é evidente que se pretendemos entender a sociedade burguesa, a leitura do Capital é inescapável: trata-se de uma análise científica das relações sociais que caracterizam uma sociedade capitalista independentemente do país em que elas são observadas e com uma clara exposição de suas contradições como resultado da irracionalidade de seus pressupostos internos.
É nesse sentido que vai esse trecho do prefácio à primeira edição do Capital [2]:
“O físico observa processos naturais, em que eles aparecem mais nitidamente e menos obscurecidos por influências perturbadoras ou, quando possível, realiza experimentos em condições que asseguram o transcurso puro do processo. O que pretendo nesta obra investigar é o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de produção e de circulação. Sua localização clássica é, até o momento, a Inglaterra. Essa é a razão pela qual ela serve e ilustração principal à minha exposição teórica, mas, se o leitor alemão encolher farisaicamente os ombros ante a situação dos trabalhadores industriais ou agrícolas ingleses, ou se for tomado por uma tranquilidade otimista, convencido de que na Alemanha as coisas estão longe de ser tão ruins, então terei de gritar-lhe: De te fabula narratur [A fábula refere-se a ti]!” (grifo nosso)
O segundo trecho dês camaradas Ouriço e Lhama nos diz que “O Capital é um excelente guia para o entendimento das forças produtivas capitalistas e de sua lógica, tal qual tudo que Marx desenvolveu.”
Camaradas, vocês estão errados. Leiam atentamente a esse pequeno trecho acima e percebam comigo que embora as relações de produção capitalistas ainda não tivessem tomado a Alemanha completamente em 1867, o que o camarada KM escreve é justamente que isso aconteceria (e aconteceu), ou seja, que a despeito das particularidades da Inglaterra e da Alemanha, em ambas havia um movimento comum de desenvolvimento dessas relações de produção.
Marx não tentou entender as “forças produtivas capitalistas”, uma vez que forças produtivas nem mesmo são exclusividade de sociedades capitalistas, afinal de contas antes da burguesia já existiam técnicas produtivas e diferentes instrumentos de produção como moinhos e arados, p. ex., que alteravam a quantidade de produtos obtidos a partir do mesmo tempo de trabalho empregado (forças produtivas). Limitar o estudo de nossa sociedade ao estudo das forças produtivas é um absurdo completo.
Ao contrário, seu objetivo maior foi justamente “investigar [é] o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de produção e de circulação”, de modo que agora é possível para nós, ao ler essa obra, ter um ponto de partida sobre essas relações sociais essenciais/necessárias, seus agentes e suas consequências sem precisar sair do zero.
Assim, podemos refletir sobre essas relações sociais necessárias (a mercadoria, o dinheiro, o capital, o trabalho assalariado, a propriedade privada dos meios de produção, a dívida pública, o mais-valor, etc.) em conjunto com as circunstâncias particulares de tempo e espaço, ou seja, como essas relações sociais necessárias se apresentam de diferentes formas no Brasil e na China, na Rússia e na Austrália, na França e no Mali e mesmo assim possuem características essenciais comuns entre si.
Portanto, camaradas, embora a tribuna de vocês tenha 139 resultados para a pesquisa “Marx”, me parece que vocês estão ignorando os pontos mais básicos da obra de Marx e dando mais importância ao “pensamento Mao Zedong”, ao “pensamento Deng Xiaoping” e ao “pensamento Xi Jinping” (?) do que a um estudo cuidadoso acerca do que é capitalismo e de suas relações sociais de produção, e de como essa forma social em condições “normais” é uma máquina de moer gente.
Faço um apelo a vocês e a todes outres camaradas, não tenham medo de ler o Capital, não tenham medo das abstrações e não deixem de pensar criticamente sobre nossa sociedade para que possamos transformá-la radicalmente, não apenas nos livrar do fascismo, do neoliberalismo e do que quer que seja, sem tentar reinventar a roda e sem esquecer do nosso objetivo revolucionário.
[1] O Estado e a Revolução, p. 106, ed. Expressão Popular;
[2] O Capital, Crítica da Economia Política, Karl Marx, Prefácio à primeira edição: https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/prefacios/02.htm;