'Educação audiovisual, cinema popular e emancipação das narrativas do capital' (Gabriel da Silva)
E é papel do partido comunista, que se propõe ser revolucionário, proporcionar essa educação audiovisual como um instrumento de emancipação cultural da classe trabalhadora em direção à construção de um cinema popular e um audiovisual revolucionário, feitos por e para os trabalhadores.
Por Gabriel da Silva para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Atribui-se a Vladimir Lênin a seguinte afirmação: “O cinema é para nós a arte mais importante.” Embora não seja possível confirmar se o revolucionário comunista proferiu realmente essa frase, ela proporcionou aos comunistas uma fonte de reflexão. Desde suas origens, o cinema tem sido um poderoso instrumento para narrar histórias, despertar emoções e explorar as complexidades da condição humana. Em contextos revolucionários, o papel do cinema é inegável. Isso ficou evidente na União Soviética, na Coreia Popular, na China, em Cuba entre outros. Muitas vezes, encontrava-se na linha de frente, no meio dos conflitos, como nos casos dos cinejornais de guerra ou o grande exemplo de cinemas africanos que registravam praticamente em tempo real as histórias dos movimentos de esquerda que lá ocorriam durante a sua libertação colonial.
O cinema, como linguagem, continua a desempenhar um papel essencial na sociedade nos dias de hoje. Contudo, no contexto atual, presenciamos uma metamorfose na materialização cinematográfica, difundida e consumida de maneiras que transcenderam as concepções do passado. Atualmente, as novas mídias e tecnologias operam uma transformação na experiência cinematográfica, extrapolando as fronteiras das tradicionais salas escuras. As plataformas de streaming proporcionam um vasto repertório de conteúdos cinematográficos e televisivos, permitindo aos espectadores acessar uma biblioteca de filmes a qualquer momento e em qualquer lugar. Essa conveniência redefine a relação entre o espectador e a narrativa audiovisual, transformando o consumo de conteúdo cinematográfico em uma experiência personalizada, adaptável às demandas individuais.
Além disso, o advento das redes sociais e das plataformas de compartilhamento de vídeos, como YouTube e Vimeo, ampliou significativamente a produção audiovisual. A publicidade e a comunicação visual incorporaram plenamente o potencial do audiovisual, utilizando vídeos envolventes em campanhas publicitárias para transmitir mensagens. Outdoors e telas digitais nas cidades tornaram-se espaços para a exibição de conteúdo visualmente impactante. A convergência de meios outrora distintos, como televisão e internet, cria um ecossistema onde o audiovisual desempenha um papel central na transmissão de informações e na construção de narrativas. Em suma, o mundo de hoje se configura como essencialmente audiovisual, refletindo as transformações nas formas de comunicação e na percepção da realidade.
A influência dos capitalistas na indústria cinematográfica é um fenômeno imperialista cultural claro. As narrativas presentes nos filmes que chegam até as salas de cinema muitas vezes refletem e perpetuam os valores, visões e interesses das elites econômicas e políticas que detêm o controle sobre a produção e distribuição cinematográfica. Os grandes conglomerados empresariais estadunidenses e europeus, que possuem estúdios cinematográficos e estão inseridos em diversas indústrias, incluindo a financeira e militar, exercem influência direta sobre os meios de produção cinematográfica. Essa interconexão de interesses molda as decisões sobre quais histórias são contadas e como são representadas nas telas.
O capital opera ideologicamente no cinema hegemônico. O receio de desagradar patrocinadores ou de enfrentar represálias políticas leva à suavização de conteúdos que poderiam ser interpretados como críticos às instituições ou políticas dominantes. Grupos étnicos, sociais e culturais muitas vezes são representados de maneira distorcida, alinhada às perspectivas da burguesia. Muitas vezes propagam valores individualistas e consumistas, reforçando ideologias que sustentam o capital e desencorajam a crítica ao sistema econômico imposto à classe trabalhadora. Com a globalização, a cultura cinematográfica das grandes potências econômicas exerce uma influência marcante em escala mundial. E essa influência no Brasil fica clara quando observamos a ocupação das salas de cinema por parte desses filmes provenientes desses países, em detrimento do nosso cinema nacional nos dias de hoje.
Nesse contexto, a educação audiovisual surge como um instrumento potencialmente emancipador. Ao produzir uma compreensão aprofundada da linguagem audiovisual e as suas operações, ela capacita a classe trabalhadora a decodificar e questionar as mensagens propagadas pelas obras cinematográficas aliadas ao interesse do capital em suas especificidades estéticas e formais como movimentos de câmera, cores, som, música, montagem e etc. Essa ferramenta crítica não apenas promove uma visualização mais consciente das representações audiovisuais, mas também fomenta uma análise mais específica das estruturas de opressão que operam através de aspectos estéticos e narrativos subjacentes, presentes no tecido audiovisual. Essa educação audiovisual, portanto, não se limita a dotar a classe trabalhadora com conhecimento técnico, mas busca instigar uma consciência reflexiva sobre como as imagens em movimento moldam perspectivas e mantém o regime de opressão imposto à classe trabalhadora.
Lênin sabia da importância dessa formação e dessa educação audiovisual para a construção do socialismo, o mesmo autorizou em 1919 que Vladmir Gardin fundasse a VGIK, ou o Instituto Estatal Russo de Cinema, a mais antiga faculdade de cinema do mundo, que funciona até hoje em Moscou. Lev Kuleshov, Sergei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin, grandes nomes do cinema soviético e do pensamento cinematográfico mundial foram formados nessa universidade dedicada ao cinema.
Esse processo de formação audiovisual não apenas fortalece a reflexão crítica da classe trabalhadora, mas também estimula a produção audiovisual dentro dela mesma, um cinema verdadeiramente popular. Ao municiar a classe com habilidades e conhecimentos relacionados à linguagem audiovisual, essa formação não só liberta, mas também capacita como produtores ativos de suas próprias narrativas. Uma nova leva de um cinema popular feito pelos e para os trabalhadores que contenha as suas próprias histórias, representando suas experiências, perspectivas e desafios de uma maneira autêntica. O acesso a ferramentas, principalmente os materiais necessários para a produção de um filme, e esse conhecimento pode nivelar o campo de atuação, proporcionando à classe trabalhadora a capacidade de criar e disseminar histórias e perspectivas que são marginalizadas, negligenciadas e censuradas pelo grande capital.
Essa formação é imprescindível, uma vez que, após a revolução e a instauração de um estado verdadeiramente proletário, torna-se necessário desenvolver um projeto definido para um cinema popular, visando impulsionar a produção cinematográfica nacional e contrapor o colonialismo cultural presente no cinema europeu e estadunidense. São esses mesmos segmentos da classe trabalhadora que deverão fomentar a criação de um cinema nacional popular, contribuindo assim para a construção de uma identidade nacional revolucionária. Embora tenhamos observado iniciativas individuais de personalidades empenhadas em avançar o cinema brasileiro em direção a esse ideal popular e profundamente conectado às questões inerentes ao proletariado brasileiro, tais esforços, mesmo bem-sucedidos em suas produções, lamentavelmente não conseguiram alcançar de maneira abrangente todas as camadas dos trabalhadores no Brasil, muitas vezes restringindo-se por diversos motivos a determinados círculos ligados à produção cultural no país.
Essa educação audiovisual também exerce um papel vital para além de tudo isso na profissionalização da agitação e propaganda do partido comunista. Ao capacitar os militantes do partido com uma compreensão mais profunda da linguagem audiovisual, abre-se uma possibilidade para uma atuação mais estratégica e incisiva. Isso sem falar nos ganhos para a imprensa do partido num contexto mais amplo.
Tudo isso deve ser construído coletivamente hoje. E é papel do partido comunista, que se propõe ser revolucionário, proporcionar essa educação audiovisual como um instrumento de emancipação cultural da classe trabalhadora em direção à construção de um cinema popular e um audiovisual revolucionário, feitos por e para os trabalhadores. É necessário que se olhe para essa questão. Em cada comitê municipal, em cada célula, em cada estado brasileiro em que o novo partido se fizer presente e nos futuros, a formação audiovisual deve ser pautada como uma questão crucial.
Camaradas experientes e com conhecimento na área podem e devem se voluntariar para ser agentes nessa luta e se colocar à disposição do partido para a criação de cursos, oficinas, grupos de formação continuada e inclusive cineclubes que socializem o conhecimento sobre as técnicas empregadas na feitura de um filme ou de outras obras audiovisuais.
Sugiro também um caderno básico para essa formação, para compor a biblioteca do partido, de modo que haja uma unificação desses conhecimentos e uma mais efetiva disseminação dos mesmos. Em um ponto mais à frente seria benéfico que a própria produção audiovisual dos militantes do partido percorra o país através de exibições promovidas pelo partido, esses cineclubes ou em alguma plataforma online para toda a militância a fim de disseminar também esses materiais. Todos esses movimentos partem de uma necessidade de se olhar para o cinema e para o audiovisual como uma categoria mais ampla como uma pauta importante a ser debatida no partido, inclusive no XVII Congresso Extraordinário, e que ações coordenadas sejam articuladas pela militância e pela direção partidária no intuito de tratar de todas essas questões aqui apresentadas.