Editorial: Literatura partidária, liberdade de crítica e unidade de ação
As polêmicas fundamentais (...) do Movimento Comunista não são determinadas nem pela nossa vontade, nem por possíveis interesses mesquinhos e particulares; pelo contrário, são determinadas pela realidade concreta de nosso tempo histórico e das tarefas que daí extraímos.
Esta liberdade absoluta é uma frase burguesa ou anarquista (porque, como concepção de mundo, o anarquismo é um burguesismo virado do avesso). Não se pode viver na sociedade e ser livre em relação à sociedade. [LÊNIN, Organização partidária e literatura partidária (1905); in: O Centralismo democrático de Lênin, Lavrapalavra, 2021, p. 215].
O lançamento de nossas Tribunas de Debates, em agosto de 2023, representou um primeiro passo no esforço de superar a completa ausência de correspondência dos militantes do velho PCB com os organismos de direção e, sobretudo, o monolitismo teórico que caracterizava o Partido, pautado pela vedação das polêmicas públicas, e na concentração da formulação teórica (tanto na formação quanto na propaganda) em poucas cabeças “doutas”: os academicistas antileninistas, que se utilizavam de maneira oportunista da crítica (correta) contra o centralismo teórico, para fazer vicejar no velho PCB um ecletismo teórico que contrabandeava ideologias estranhas ao marxismo-leninismo, em consonância com o “marxismo” típico da carreira acadêmica.
Desse modo, mesmo antes do lançamento de nosso Caderno de Teses, em novembro de 2023, o debate estava lançado. Isso, por si só, já nos serve como baliza para a conceituação das Tribunas de Debates: um espaço de polemização pública que não se limita ao debate congressual e às suas respectivas pré-teses. Na realidade, tratando-se de um congresso cuja existência se fundamenta pela necessidade de forjar uma unidade efetiva de nosso partido, em sentido contrário à unidade formal do velho PCB, os debates políticos deveriam ser, e têm sido, amplos, versando sobre as mais variadas questões candentes, com bastante relevância das questões de princípios.
No tempo transcorrido até aqui, podemos observar que as tribunas são um instrumento importante para a organização do espontâneo, isto é, na prática cotidiana nos deparamos com diversas questões candentes – tarefas políticas, discussões táticas, organização da militância para efetivamente dar cabo de tais táticas – e, diante delas, fazem-se necessárias a formulação das abstrações (teóricas) corretas acerca de nosso partido dentro de sua interação indissociável com as relações sociais em nível totalizante. Somente este exercício de síntese é capaz de superar a dimensão espontânea e imediata de nossa atuação política para, de fato, atuarmos enquanto vanguarda. Nesse sentido, as Tribunas constituem um instrumental importante para o nosso acúmulo político – por meio dos debates e das divergências – e de nossa formação.
Ainda assim, é evidente que a importância das polêmicas públicas não deve abrir espaço para qualquer tipo de interpretação anárquica sobre o princípio da liberdade de crítica. Por um lado, seria equivocado qualquer tipo de cerceamento contínuo das Tribunas em seu pleno andamento – o que geraria confusões e um caráter antipedagógico, formulando-se mais e mais restrições ao se tentar resolver normativamente o problema político-ideológico da organização da polêmica –; por isso, temos nos limitado a uma análise caso a caso das Tribunas enviadas, mantendo assim os critérios pré-estabelecidos que garantem ao mesmo tempo a liberdade de crítica e a unidade de ação (vide nosso editorial do início de janeiro). Por outro lado, é dever do centro ideológico do partido organizar a polêmica de maneira a potencializar seu caráter pedagógico e delinear coletivamente as questões fundamentais em debate.
Sobre isso, a título de exemplo, uma polêmica que vem se desdobrando continuamente desde a abertura das Tribunas é a da questão da proletarização de nosso partido – problema que diz respeito, essencialmente, não somente ao debate sobre os setores estratégicos do proletariado, mas também sobre o próprio conceito de proletariado e de trabalho produtivo, para além da análise crítica de como tais conceitos se materializam objetivamente na produção social brasileira, bem como as decorrentes táticas a serem adotadas diante dessa realidade. Para além das várias Tribunas debatendo o tema, nossa Biblioteca Marxista-Leninista disponibilizou quatro textos visando municiar nossa militância para o enfrentamento de tais questões: O Conceito de trabalho produtivo, de Ruy Mauro Marini; Produtividade do capital, trabalho produtivo e improdutivo, de Karl Marx; As Teses de Lyon, de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti; e Como forjar um Partido Bolchevique, de Ossip Piatnitsky.
De modo semelhante, a nota política da CNP de novembro de 2023 a respeito da questão Palestina vem de encontro ao esforço aqui ressaltado de organização da polêmica e reforço de seu caráter pedagógico para nossa militância, ao criticar fraternalmente os Partidos Comunistas que no cenário internacional ainda nutrem ilusões quanto à “solução de dois Estados”, na medida em que não se limita a uma condenação geral dos partidos que assim a defendem, mas sim esclarece o porquê de tal posição se tratar de um grave erro tático e estratégico, demarcando assim nossa posição crítica e também a necessidade de um debate a longo prazo de maneira a qualificar a questão.
Vemos, portanto, que é papel das direções apresentar sínteses no sentido de formulações resolutivas para as questões candentes de nosso movimento. Da mesma forma, também podemos observar que, atualmente, existe uma debilidade de nossas direções em lidar, acolher e compreender as principais polêmicas de nossa atuação política, bem como identificar nessas, de maneira precisa, as principais divergências e posições em disputa. Destacamos que isso vale não apenas para as direções nacionais, mas também para as intermediárias e mesmo locais, na medida em que vemos muitas tribunas que se restringem a apontar problemas, mas falham em apontar suas causas e soluções. Mesmo que, de fato, constituam elementos importantes para compreendermos o estado geral de nossa militância, não podemos prescindir de nossa necessidade de aprendermos e nos educarmos diante de nossas debilidades coletivas.
Em um primeiro momento da cisão, a abertura das Tribunas para pessoas de fora da organização foi um aceno para uma maior liberdade de opinião e participação no sentido de uma aproximação com o PCB-RR. Atualmente, as Tribunas amadureceram o suficiente de maneira que podemos concluir que tal abertura, nos mesmos moldes, não faz mais tanto sentido, pois as Tribunas conformaram-se, em maior ou menor grau, ao longo do tempo como um instrumento de organização das polêmicas partidárias. Salientar isso implica a compreensão de que as Tribunas se constituíram como a “nova forma” de disciplina partidária (consciente e ativa) em contraponto ao burocratismo do velho PCB. Em suma, a experiência das Tribunas orienta-se no sentido geral da constituição de uma literatura partidária comum, nos moldes leninistas.
Dessa forma, assim como já destacamos no editorial do início de janeiro, cabe retomarmos a conceituação da qual partimos quando falamos da liberdade de crítica para o leninismo:
O princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações partidárias locais implica uma liberdade universal e plena de crítica, desde que isso não perturbe a unidade de uma ação definida; exclui todas as críticas que perturbem ou dificultem a unidade de uma ação decidida pelo Partido. [LÊNIN, Liberdade para criticar e unidade de ação (1906); in: O Centralismo democrático de Lênin, Lavrapalavra, 2021, p. 257].
O que Lênin salienta no parágrafo acima, e mais ainda em todo o texto em questão, é a centralidade da publicidade da atividade crítica para o partido revolucionário — afinal, o líder bolchevique está criticando justamente a concepção menchevique do centralismo democrático (que também vigorava no velho PCB) que permitia a crítica e agitação partidária nos limites das reuniões fechadas, mas vedava a crítica e a agitação partidária nas reuniões públicas.
Isso, porém, não abre margem para uma concepção liberal da liberdade de crítica, que coloque à frente dos interesses concretos do proletariado revolucionário os interesses particulares de quem quer que seja, isto é, não fundamenta uma visão anárquica da liberdade de crítica, justamente porque está atrelada ao respeito à unidade de ação, de maneira que a totalidade dinâmica do conceito em si pressupõe a organização de um complexo publicístico organizado e concentrado que permita ao proletariado revolucionário, por meio de seu partido de vanguarda, enfrentar a hegemonia burguesa de maneira contínua e sistemática como um exército regular em campanha. Este ponto, já destacamos no editorial a respeito dos 100 anos da morte de Lênin, do qual enfatizamos novamente, a seguir, uma importante citação do líder bolchevique:
Precisamente porque “a multidão não é nossa”, é insensato e indecoroso bradar pelo “assalto” imediato, uma vez que o assalto é o ataque de um exército regular e não a irrupção espontânea de uma multidão. Precisamente porque a multidão pode ultrapassar e desestruturar o exército regular é que se faz absolutamente necessário que o nosso trabalho de “organização extraordinariamente sistemático” no exército regular se desenvolva no mesmo passo do ascenso espontâneo, pois que, se isso for obtido, será maior a probabilidade de o exército regular não ser ultrapassado pela multidão, marchando à sua frente, na sua vanguarda. [LÊNIN, Que Fazer? (1902), Expressão Popular, 2015, p. 242].
Com isso, chamamos atenção para o fato de que as polêmicas fundamentais de nosso XVII Congresso (Extraordinário) e, mais ainda, do Movimento Comunista no geral, não são determinadas nem pela nossa vontade, nem por possíveis interesses mesquinhos e particulares; pelo contrário, são determinadas pela realidade concreta de nosso tempo histórico e das tarefas que daí extraímos para sermos capazes de organizar a revolução proletária em nosso país e no mundo. Tratando-se do período histórico da reconstrução revolucionária não apenas do Partido Comunista no Brasil, mas do Movimento Comunista Internacional, é preciso que redobremos as atenções a respeito do que entendemos como a unidade da teoria marxista-leninista, na medida em que a luta ideológica é o fundamento organizador do partido revolucionário de vanguarda, de modo que “não se pode suprimir nenhum princípio fundamental, nenhuma parte essencial desta filosofia do marxismo fundida num só bloco de aço, sem se afastar da verdade objetiva, sem cair na mentira reacionária burguesa” [LÊNIN, Materialismo e Empiriocriticismo (1908), Editorial Estampa, 1975, p. 294].
Desse modo, a maneira correta de combater todo tipo de monolitismo em nosso partido, é justamente por meio do combate à “liberdade de crítica burguesa”, através da edificação de uma literatura partidária comum nos moldes leninistas:
Em oposição aos costumes burgueses, em oposição à imprensa empresarial e mercantil burguesa, em oposição ao carreirismo e ao individualismo literários burgueses, ao “anarquismo aristocrático” e à corrida pelo lucro, o proletariado socialista deve erguer o princípio da literatura partidária, desenvolver este princípio e aplicá-lo da forma mais completa e integral possível.
Em que consiste este princípio da literatura partidária? Não é só no fato de, para o proletariado socialista, a atividade literária não poder ser um instrumento de lucro de pessoas ou grupos; ela não pode ser de modo nenhum uma atividade individual, independente da causa proletária geral. Abaixo os literatos apartidários! Abaixo os literatos super-homens! A atividade literária deve tornar-se parte da causa proletária geral, a “roda e a engrenagem” de um só grande mecanismo social-democrata posto em movimento por toda a vanguarda consciente de toda a classe operária. A literatura deve tornar-se parte integrante do trabalho organizado, planejado e unido do Partido Social-Democrata. [...] Os jornais devem tornar-se órgãos das diferentes organizações do partido. Os literatos devem obrigatoriamente fazer parte de organizações do partido. As editorias e depósitos, lojas e salas de leitura, bibliotecas e diferentes comércios de livros, tudo isto deve tornar-se do partido e ser sujeito à prestação de contas. O proletariado socialista organizado deve seguir todo este trabalho, controlá-lo todo, introduzir em todo este trabalho, sem qualquer exceção, a corrente viva da causa proletária viva, retirando deste modo toda a base ao velho princípio russo meio oblomoviano* e meio mercantil: o escrito escreve, o leitor lê. [LÊNIN, Organização partidária e literatura partidária (1905); in: O Centralismo democrático de Lênin, Lavrapalavra, 2021, p. 212-213].
Portanto, compreendemos que a importância das polêmicas públicas transcende o período delimitado pelo XVII Congresso (Extraordinário) não apenas porque será tarefa do futuro Comitê Central, quando eleito, delimitar quais serão os termos do debate público fora dos períodos congressuais – isto é, o “futuro” das atuais Tribunas de Debates –, mas, sobretudo, porque a luta ideológica através da polêmica pública é um fundamento organizador do Partido Comunista, pelo qual este próprio deve se edificar tendo como instrumento o centralismo democrático.
A importância e a seriedade das polêmicas travadas nos conduz ao enorme trabalho de estruturarmos um complexo de imprensa leninista nos moldes de uma literatura partidária comum a todos para assim construirmos uma unidade partidária realmente efetiva, superior a qualquer unidade meramente formal, na medida em que se estrutura pelo debate franco e aberto (rigorosamente fraterno e, portanto, sem ataques pessoais), pela demarcação clara e precisa de posições, pelo trabalho de síntese a nível geral, e pela autocrítica como método de trabalho.
Nesse sentido, é preciso qualificar o nosso entendimento sobre as polêmicas públicas – até porque as Tribunas são um instrumento de debate limitado aos períodos congressuais, cabendo a nós definirmos, no próximo período, qual será a forma adequada – e seus critérios basilares – para debatermos cotidianamente.
A polêmica pública é uma forma democrática de debate e de apresentação das divergências visando qualificar nossa atuação política não apenas internamente, mas, sobretudo, a nossa atuação com as massas. Por isso mesmo, a liberdade de polêmica não deve se sobrepor à liberdade de associação, porque trata-se de uma instrumento necessário para o aperfeiçoamento constante da construção de nossa literatura partidária comum, assim, permitindo discussões e ajustes políticos sempre que necessário (com base em tais debates e sínteses). Desse modo, a liberdade de polêmica não é apenas um conceito abstrato, mas, na realidade, é uma maneira para forjar uma unidade ideológica efetiva através da construção cotidiana de nosso partido.
Nota
* Oblómov é o personagem principal do romance homônimo do escritor russo Gontcharov. Lênin utiliza o termo oblomovismo como sinônimo de falta de força de vontade, letargia, um estado de falta de atividade e de preguiça.