'É preciso nos apropriarmos do debate ambiental e incluí-lo em nosso estatuto' (Gabriel Lima)
Abordar a conservação ambiental não mais se restringe apenas à uma classe média que teve acesso à informação como se poderia pensar, os impactos já são diretos e sentidos no presente pela classe trabalhadora; precisamos nos apropriar do discurso e radicalizá-lo.
Por Gabriel Lima para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
O Brasil é segundo país que mais matou ambientalistas na última década, segundo o relatório Standing Firm da ONG Global Witness, perdendo apenas para Colômbia. Até 2022 ocupava a primeira posição, e nesse ano 88% dos ambientalistas assassinados estavam na América Latina. Ainda de acordo com o mesmo relatório, 36% foram mortes de indígenas. Nessa perspectiva é válido revisar nosso estatuto e ao concluir que não há nenhuma linha sequer voltada para questão ambiental de forma direta e objetiva, o que é verdadeiramente preocupante, pensarmos essa construção enquanto partido. É provável que essa lacuna reflita uma ausência de militantes das ciências ecológicas e da natureza nos nossos quadros, o que seria também algo a ser discutido como solucionar. De qualquer forma, aproveitando esse espaço, trago abaixo um pouco da visão ecológica em uníssono com o marxismo-leninismo e faço um apelo para que pensemos células voltadas ao tema dentro das frações existentes, bem como precisamos explicitar em nosso estatuto de forma clara nossa posição no que diz respeito ao ambientalismo.
Temos bem estabelecido que o sistema de produção capitalista para além de moldar as relações produtivas influencia nossa socialização, nossas mentes, moldando como encaramos a realidade que nos cerca, transformando tudo em um produto a ser consumido. Logo, a ideologia dominante traz uma perspectiva típica do colonialismo ocidental que separa nossa espécie da natureza a seu redor, a vislumbrando apenas como recurso a ser desbravado e consumido. A sanha do capital traz um projeto fisicamente impossível travestido de lógico e técnico na fala dos economistas liberais. Dessa forma, é preciso pensar além das mudanças das relações de produção, também alterações nas relações de consumo e repensar a dinâmica com a natureza que nos cerca. O próprio Marx, como bem exemplificado por John Bellamy Foster, traz no vol. 3 do capital o conceito de metabolismo, explicitando sua visão da relação da nossa espécie para com o meio natural, falando como no socialismo era necessário “governar o metabolismo humano com a natureza de forma racional”. Ademais, é preciso beber da fonte de filosofias ancestrais de povos que, têm em seu íntimo, a integração e harmonia com o meio natural, podendo trazer o pensamento indígena e africano ancestral para o seio da nossa formulação teórica, ademais precisamos adentrar com propriedade no debate ambiental que tem sido dominado pelo eco-capitalismo, denunciando sua demagogias. Torna-se mais evidente para os trabalhadores o impacto direto das mudanças climáticas e precisamos usar isso como combustível para chegar ao socialismo.
As filosofias indígenas são um verdadeiro patrimônio ancestral e de resistência, um tesouro imaterial que nos foi legado pelos povos indígenas. A filosofia indígena da “cultura do bem viver” abordada por Krenak, traz uma perspectiva de aprofundamento cosmo-ontológico sobre a vida no nosso planeta. Traz a visão da terra como algo vivo e do qual somos parte indissociável, explicitando que é algo apenas alcançado de forma coletiva, eliminando desigualdades, sem cair em demagogias como a do desenvolvimento sustentável. Termo esse, inclusive, que é classificado corretamente pelo autor como mera vaidade pessoal, quando não associado a discussão sobre o sistema produtivo e desigualdades que ele produz: “[…] O que eu queria dizer com isso é que, se a gente vive em um cosmos, em um vasto ambiente, onde a desigualdade é a marca principal, como que, dentro dessa marca de desigualdade, nós vamos produzir uma situação sustentável? Sustentável para mim? A sustentabilidade não é uma coisa pessoal. Ela diz respeito à ecologia do lugar em que a gente vive, ao ecossistema que a gente vive […]”. Portanto, coloca nossa espécie como peça de uma intricada teia de relações, possuindo uma grande responsabilidade, por ter poder de influenciar equilibrando e desequilibrando essas conexões.
Ainda na cosmovisão indígena, Daniel Munduruku ao aborda a unidade corpo-mente-espírito fala sobre a visão de futuro para o povo Munduruku “O ‘futuro’ é, pois, um tempo que não se materializou, não se tornou presente e, por isso, impensável para a lógica que rege nossa existência. Em alguns povos sequer existe palavra para expressar futuro tal como elaborou o ocidente mais no sentido utilitarista ligado à economia e à produção de riqueza. Para o pensar indígena a ideia de acumular, produzir, poupar ou guardar traz consigo uma concepção de tempo que empobrece a própria existência porque torna as pessoas mais vazias e egoístas. Claro está que pensar assim dentro de um mundo marcado pela especulação esta sim uma visão utilitarista do tempo nos leva a uma compreensão dos motivos que marcaram a relação do ocidente com os povos originários”, explicita também como sua vivência é muito marcada pela ancestralidade e de como o presente é uma dádiva que só existe graças aos ancestrais, dessa forma fica claro como sua cosmovisão traz noções diferentes de espaço, tempo e matéria. Em adição, Munduruku traz uma visão muito clara e lúcida sobre o capitalismo, como um sistema que oferece “conforto e bem estar” ilusórios em troca de vender sua dignidade e ancestralidade, sendo na visão desse autor um dos principais fenômenos ao qual a filosofia indígena precisa resistir.
Na filosofia Ubuntu-Bisoidade, a dicotomia sociedade-natureza é desafiada, trazendo uma visão unificadora, trazendo inclusive uma perspectiva de intersubjetividade e natureza muito interessante, abordando os outros e o meio natural como espelhos que mostram para cada um sua própria subjetividade e o que os torna únicos. Em adição se opõe a visão do humano que domina a natureza, trazendo uma relação coletiva da nossa espécie com o meio ambiente, semelhante as filosofias dos povos originários brasileiros. O movimento e a reciprocidade é considerada categoria ontológica e epistemológica fundamental, apresentando a harmonia entre relações humanas e natureza. Além disso, considera outras espécies como um referencial de identidade, apontando semelhanças e diferenças com eles na construção dessa identidade, o que difere da visão ocidental que vê nisso uma animalização do ser humano. Essa perspectiva ancestral africana é por vezes refletida e revisitada em manifestações de resistência no Brasil como na Capoeira, na qual ladainhas, corridos, nomes dos movimentos e apelidos constantemente trazem a biodiversidade brasileira como referenciais de identidade. Exemplo: “Nos olhos da cobra verde, aprendi uma lição, capoeira bem jogada é feito cobra pelo chão…”; meia lua de frente; plantar bananeira; movimento de cameleão; macaquinho; etc. Dessa forma, essa cosmologia cria uma relação íntima das comunidades humanas com a natureza e com a terra que vivem. Para Danford Chibvongodze, no seu artigo “Ubuntu is Not Only about the Human!An analysis of the role of African philosophy and ethics in environment management”os saberes e métodos pré-coloniais de conservação da natureza são constantemente invisibilizados, trazendo uma perspectiva colonial, substituindo os saberes tradicionais pelos técnicos, fomentando refúgios e áreas de conservação que separam o homem da natureza de forma artificial. O método científico é importante e fundamental quando se pensa conservação, mas ele não precisa ser dissociado dos conhecimentos e métodos tradicionais que podem adicionar e muito aos planos de conservação.
Além da perspectiva teórica, é importante ressaltar a configuração concreta no campo das disputas envolvendo pautas ambientais. O discurso dentro das políticas públicas volta-se muito a uma lógica mercadológica de suposta sustentabilidade. Bom exemplo é o mercado de créditos de carbono, que apesar de ser aplaudido por muitos (compreensível para quem estava numa situação de política zero voltada para o tema), na verdade fortalece desigualdades e não altera muito concretamente a dinâmica de emissões de carbono na atmosfera. Basicamente, o sistema funciona numa moeda de troca, de forma que empresas e pessoas físicas (grande maioria do norte global), pagam para poder emitir gases estufa na atmosfera a quem realize uma atividade compensadora, sendo uma tonelada de carbono o equivalente a 1 crédito e cada crédito valendo entre 5 a 20 dólares, a certificação de créditos é fornecida por governos ou instituições certificadoras. Isso ocorre da seguinte forma, imagine que no Brasil há uma grande reserva e com base em certos cálculos ela realiza um sequestro de 400 mil toneladas de carbono, uma empresa que emite essa mesma quantidade em poluentes pode comprar esses créditos de carbono e assim “compensar” sua poluição. Outro detalhe preocupante é que o cálculo leva em conta apenas o CO2 absorvido, sem abordar se as mudas são nativas, a biodiversidade local e serviços ecossistêmicos, ou seja, numa situação hipotética que eu utilize uma cultura como o trigo que absorve mais CO2 do que emite, poderia comercializar créditos de carbono. Dessa forma, um país pode alcançar suas metas para redução de emissões, mesmo que ela não tenha sido alcançada concretamente, passando para outros a atividade de “compensação”. Esse não é o único exemplo sobre como o eco-capitalismo simula soluções e não muda realmente a realidade concreta de forma profunda como se faz necessário na situação global atual, e são soluções como essas que predominam nos discursos organizativos, jurídicos, as vezes até acadêmicos, portanto, saliento aqui a necessidade de ocupar esses espaços com propostas realmente radicais que abordem o cerne das questões expondo a demagogia liberal no tema ambiental.
Por algum tempo tinha-se a impressão que a classe trabalhadora não se importava tanto com questões ambientais ou/e de preservação. De fato, faz sentido pensar que em perspectiva de dificuldade de manter as condições de reprodutibilidade da vida, dentro do capitalismo, questões materiais mais imediatas são o foco principal de todos. Inclusive, é verdade que, em estudos sobre conservação, a pobreza e desigualdade são problemas diretamente relacionados com a questão, afinal ninguém pode pensar em conservacionismo enquanto passa fome. No entanto, é verdade também que no capitalismo sempre existirá esse problema e não podemos nos dar o luxo de aguardar a revolução para abordar as questões ambientais, afinal são também pauta central e ponto de partida para usarmos enquanto propomos horizontes de superação do sistema. Na atualidade, a classe trabalhadora como um todo sente cada vez mais os impactos das mudanças climáticas globais, o relatório da Organização Internacional do Trabalho publicado dia 28 de abril, mostrou que 70% dos trabalhadores no mundo sentem diretamente esse impacto, desenvolvendo doenças cardiovasculares, leões dermatológicas, câncer, doenças respiratórias, degeneração macular e problemas mentais. Essas patologias são desenvolvidas por seis fatores principais, segundo o relatório, sendo: calor excessivo, radiação UV, poluição do ar, zoonoses, uso de agrotóxicos e evento climáticos extremos. Ademais, nunca antes o tema ambiental foi tão pautado nos grandes veículos de mídia, com governantes utilizando a questão enquanto trampolim político. Portanto, abordar a conservação não mais se restringe apenas à uma classe média que teve acesso à informação como se poderia pensar, os impactos já são diretos e sentidos no presente, precisamos nos apropriar do discurso e radicalizá-lo.
Nessa perspectiva o aparelho produtivo precisa ser repensado e não apenas apropriado da forma como está pela classe trabalhadora, uma transformação radical no metabolismo como descrito por Marx é essencial, novos horizontes para além da visão utilitarista que coloca a natureza apenas como algo a ser disputado pelo poderio político e econômico, mas como algo vivo e sujeito de direitos como na perspectiva dos povos originários da América do Sul e da ancestralidade Africana. Sabemos que isso só será possível a partir da superação do capitalismo, via revolução brasileira, mas como bem apontado por Rosa Luxemburgo em “Revolução ou Reforma”, as lutas imediatas da classe trabalhadora são instrumento de formação política, sendo importante lutar por reforma com vias de uma construção revolucionária, portanto, também precisamos disputar espaço e estar presentes nas discussões ambientais sejam elas regionais, nacionais ou até internacionais, mostrando nosso comprometimento e mostrando que a única forma de mantermos um planeta habitável é com o fim do capitalismo, evidenciando como o sistema é incompatível com nossa perpetuação enquanto espécie na terra. Em conclusão, a luta ambiental perpassa diversas outras e tem uma importância basilar, pois diz respeito a nossa sobrevivência, enquanto a burguesia tem horizontes como colônias em outros planetas e bunkers luxuosos de sobrevivência, nós, enquanto classe trabalhadora, precisamos lutar para manter nosso planeta habitável para as futuras gerações esse é o nosso horizonte, trabalhar menos, trabalhar todos, produzir o necessário e redistribuir tudo.
Aqui está uma sugestão de artigo a ser adicionado no estatuto do partido:
- Artigo Xº: Todas as frações deverão ter pelo menos 1 célula especificamente voltada para o meio ambiente/questões ambientais que deverão pautar na perspectiva do Maxismo-Leninismo a defesa e real conservação da biodiversidade e fontes de bens naturais essenciais para a vida. As células deverão fomentar proposições práticas em relação à sua realidade, ou seja, com foco mais local/regional, mas sem dispensar questões nacionais e internacionais.
PS.: Trago um relato anedótico, mas que pode ser de grande valia: conversando com um membro do movimento indígena de Pernambuco, recebi o desabafo que os partidos da esquerda não davam a devida importância às questões ambientais, que eram meramente eleitoreiros. Disse também que isso tirava a perspectiva de muitos indígenas em relação a qualquer instituição partido, visualizando um futuro apenas no movimento indígena em separado. Vejo que temos a oportunidade mostrar o contrário e inclusive através dessas pautas entender melhor as demandas dos movimentos indígenas do nosso país em sua complexidade.