'Duas tribunas sobre questões de organização' (Gabriel Landi Fazzio)
O grau de maturidade e cuidado com que um PC debate teoricamente suas questões organizativas é um indício do quanto essa organização venceu em si o espontaneísmo e o espírito de círculo familiar, e avançou rumo a um verdadeiro espírito partidário revolucionário.
Por Gabriel Landi Fazzio para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Dessa vez, reúno para publicização duas tribunas escritas para o XVI Congresso do PCB sobre questões de organização – que, se nada mais, ao menos podem ser úteis a fim de atestar que os problemas do centralismo democrático pecebistas não são nenhum raio em céu azul.
A hipertrofia das Comissões Políticas
Por Gabriel Landi Fazzio
Antes de mais nada, registro algumas das preocupações definidas pela maioria congressual do partido nos seus últimos anos, as quais assumo como minhas integralmente, e que balizam todas as preocupações que apresento a seguir:
“10. Para que as resoluções deste Congresso não fiquem apenas no papel, mas transbordem para a vida real da luta de classes, temos que deixar de ser apenas um partido de boas opiniões, para nos transformarmos realmente em um partido com uma prática revolucionária individual e coletiva [...], regido pelo verdadeiro centralismo democrático, que ainda não vigora plenamente entre nós.” Em A Reconstrução Revolucionária do PCB: Balanço e Perspectivas, resolução do XV Congresso do PCB.
“20. O centralismo democrático significa também trabalho coletivo de direção e uso da regra da vitória da maioria simples, sem prejuízo da busca pelo consenso[1], para a tomada de decisões, bem como se expressa na proibição de grupos e no respeito às opiniões minoritárias, caracterizado no direito estatutário de todo militante encaminhar recursos e solicitar informações a qualquer instância. O princípio do trabalho coletivo de direção parte do pressuposto de que os organismos partidários são coletivos nos quais todos os militantes propõem e debatem em igualdade de condições, usando a crítica fraterna, mesmo quando precisa ser contundente, e a autocrítica.
34. Nunca é demais insistir na necessidade de combatermos a tendência à hipertrofia dos comitês intermediários e de suas comissões políticas [...].” Em Resoluções sobre organização partidária da Conferência Nacional Política e de Organização de abril de 2016.
Registro essas nossas preocupações partidárias a fim de caracterizar o seguinte relato como um esforço para lançar luz sobre problemas de vida interna que todos reconhecemos existir, e para os quais devemos todos buscar soluções. Em outras palavras, esse texto não é uma “mera lavação de roupa suja”, como alguns poderiam sentir-se tentados a ver. Na verdade, acredito que seja não só saudável, mas imprescindível que os relatos de problemas e situações locais se expressem nas esferas gerais de discussão partidária - na etapa nacional do Congresso em especial. Só assim podemos tirar do reino da abstração nossos debates de “vida interna”, e dar solução prática aos problemas. Só assim podemos combater em nosso partido o espírito de círculo, e forjar um verdadeiro espírito de partido, sem particularismos federalistas.
Enfim, ao mérito.
Ao longo deste ano, uma polêmica repetitiva tomou horas de discussão no Comitê Regional paulista do Partido. Repetitiva, porque se prolongou ao longo de quatro reuniões. A polêmica, a meu ver, é parte de uma questão maior, que também se repetiu ao longo do ano, sobre nossos métodos de trabalho e organização. Por diversas vezes vi-me em polêmicas com o Secretário Político de nosso CR, Antônio Carlos Mazzeo, em torno desse tema geral: por defender a obediência rigorosa aos nossos métodos estatutários, fui chamado de burocrata; enquanto o camarada achou por bem defender aquilo que chamou por diversas vezes de “tradição” ou de “normas consuetudinárias do partido”.
Não tenho dúvida de que, muitas vezes, a realidade nos coloca desafios que vão além dos nossos estatutos, nem de que a experiência revolucionária de nossa classe é muito maior que nossos estatutos. Mas o argumento da tradição, pela tradição, sem a fundamentação de mérito para tal ou qual conduta - ainda mais no caso de condutas que violam a literalidade de nossas regras públicas comuns, em nome das quais voluntariamente nos associamos (ao menos essa é a concepção leninista do centralismo democrático) - é algo inaceitável em nossa “cultura comunista” (outro termo fartamente utilizado pelo camarada). Desnecessário dizer o quanto esse tipo de raciocínio é terreno fértil para o mandonismo: se a tradição vale mais que as regras comuns[2], então os mais velhos serão sempre a “voz da experiência” onisciente, e os mais jovens sempre serão culpados de “coitados, não ter ainda aprendido suficientemente nossos métodos”.
Mas no caso mais particular, toda a polêmica foi disparada por uma solicitação, por parte de um camarada dirigente pleno do Comitê Regional, de relatórios e informes das atividades, deliberações e debates da Comissão Política Regional. Afinal, para poder adequadamente deliberar sobre o estado do trabalho na região, o CR precisaria de informações sobre as atividades da CPR entre uma sessão pela e outra do CR. Em uma discussão que se iniciou a respeito da extensão da responsabilidade da CPR em manter o CR informado de suas atividades e debates, uma declaração do camarada Secretário de Organização do CR inflamou a polêmica: em sua concepção, a CPR é uma instância superior ao CR e, portanto, era absurdo exigir prestações de contas minuciosas da CPR ao CR.
Apesar de ser razoavelmente grave que o Secretário de Organização, acima de todos, manifeste posições tão contrárias aos nossos estatutos, a questão poderia ser facilmente resolvida, bastando a consulta aos Estatutos. O que dizem as regras congressualmente aprovadas pelos comunistas? Que (artigo 45) aos Comitês (municipais, regionais e central) compete “a) planejar e dirigir a execução das deliberações dos organismos e instâncias superiores do Partido” e “b) eleger a sua Comissão Política” (além de suas atribuições na indicação de candidaturas eleitorais). “À Comissão Política de cada Comitê compete” (artigo 51) “a) Dirigir a atividade do Partido, na sua jurisdição, no intervalo de reuniões do Comitê respectivo, e aplicar as deliberações da Conferência e do Comitê respectivos” etc. É bastante nítido, então, que a Comissão Política é um mero[3] secretariado executivo de seu respectivo Comitê - nada muito diferente, exceto por sua responsabilidade, do Secretariado de uma célula. A questão não deveria causar mais problemas: como organismo subordinado, a CPR deve prestar aos membros do CR todo e qualquer esclarecimento[4] solicitado. Mas, em tempos pandêmicos (nos quais presenciamos uma hipertrofia das Comissões Políticas em relação aos seus respectivos Comitês), a crítica feita à posição do camarada Secretário de Organização do CR gerou uma estranha resposta defensiva: o camarada Mazzeo negou que o camarada Secretário de Organização estivesse equivocado, e atribuiu toda a polêmica à “falta de conhecimento de nossos métodos pelos membros mais jovens do CR”. Portanto, em vez de uma retratação do Secretário de Organização, o que a CPR propôs foi que o Assistente do CC organizasse uma “formação” sobre o tema, para a reunião seguinte.
Na segunda reunião, então, o Assistente foi inquirido, e evidentemente defendeu o ponto de vista estatutário: a subordinação da CPR ao CR. Mas qual não foi minha surpresa quando, antes da reunião seguinte (a terceira, então), a CPR apresentou por e-mail sua proposta de pauta informando que decidira remover a camarada Secretária de Formação de suas funções! E então a mesma polêmica se repetiu: a CPR tinha poderes para determinar, sem consultar o CR, a destituição de uma Secretária?[5] Precisamos de muitas tensões e longos debates para que, finalmente, na reunião seguinte, a CPR apresentasse um documento admitindo seu erro metodológico e reconhecendo que a competência para nomear e destituir Secretários do CR não é da CPR, mas do CR!
Esperemos, portanto, que a situação tenha produzido um acúmulo tal que situações e confusões desse tipo não se repitam, causando tensões desnecessárias por conta da inabilidade na condução dos assuntos internos da organização. Mas me pareceu que um relato, mesmo que breve, poderia ser interessante e instrutivo, uma vez que certamente diversos problemas semelhantes são vividos diariamente em todo país.
São dores naturais do crescimento de um partido que passou tantos anos lutando para reconstruir-se e manter-se e, finalmente, começou a reencontrar seu caminho para as massas avançadas da classe trabalhadora (e que, então, não é de surpreender que tenha formado muitos dirigentes que pensam e trabalham com métodos sectários e espírito de círculo). Por isso mesmo, nada mais saudável do que debatermos com rigor, cuidado e profundidade nossas questões organizativas e nossos métodos comuns de trabalho revolucionário: só assim será possível, por um lado, instruir as novas gerações de dirigentes no espírito do centralismo democrático leninista; e, por outro lado, sacudir a poeira acumulado sobre alguns quadros que, a despeito de acreditarem conhecer melhor que todos os métodos leninistas pelo motivo de estarem a mais tempo no Partido, revelam diariamente desvios mandonistas, federalistas, burocráticos etc.
O grau de maturidade e cuidado com que um PC debate teoricamente suas questões organizativas é um indício do quanto essa organização venceu em si o espontaneísmo e o espírito de círculo familiar, e avançou rumo a um verdadeiro espírito partidário revolucionário.
Comitê Regional ou Comitê Estadual?
Por Gabriel Landi Fazzio
Escrevo esta breve contribuição à nossa Tribuna movido por algumas polêmicas locais, expressas na etapa regional paulista de nosso Congresso. Refletindo sobre essas polêmicas, noto entre nós uma série de confusões em matéria de organização. Assim sendo, gostaria de abordar a natureza regional de nossos comitês intermediários, os CR[6].
Na prática, hoje, nossos CR se apresentam como organismos estaduais. Esse fato prático não deve jamais ser confundido como um princípio organizativo. Não é o que ocorre, infelizmente – não apenas muitos de nossos militantes concebem os CR como organismos naturalmente estraduais, como nossos próprios coletivos partidários incorrem formalmente nesse entendimento, nomeado seus organismos intermediários como “Coordenação Estadual”. Ocorre, no entanto, que os CR possuem por natureza uma flexibilidade muito maior: podem abranger mais de um Estado, em regiões com poucas células; podem abranger apenas regiões parciais de um mesmo Estado, onde haja uma quantidade de células que inviabilize o trabalho de coordenação por parte de apenas um Comitê Regional.
Entendimento diverso produziria dois tipos de problemas. Por um lado, poderíamos enrijecer nossa organização rumo à disfuncionalidade: um CR só, responsável por uma centena de células, demandaria um número de quadros que faria deste organismo quase que uma plenária congressual. A outra opção seria a proliferação de organismos intermediários secundários (Comitês Zonais, Subregionais, Municipais, etc), cujas tendências ao burocratismo, ao isolamento e ao agravado distanciamento em relação ao Organismo Central são autoevidentes e já longamente debatidas em nossas teses congressuais pregressas.
Em alguns estados, hoje, já nos aproximamos aceleradamente da necessidade da separação dos CR (São Paulo me parece ser um desses estados), ainda que nos faltem as condições, em matéria de quadros, para tanto. Não devemos nos precipitar, é evidente. Mas, ao mesmo tempo, se perdermos de vista essa natureza flexível e "divisível" dos CR, ataremos de partida nossas mãos para a melhor solução do problema em questão. Ademais, devermos ter nitidez de nossos métodos leninistas, em matéria de organização de novos CR: a deliberação de uma tal divisão pode ser demandada localmente, mas apenas nosso Comitê Central tem competência para aprovar uma tal medida, bem como para selecionar e constituir a direção deste organismo recém-criado - que, em seus primeiros momentos, demandará assistência redobrada e atenta, para que não incorra em toda uma série de desvios regionalistas, negligenciando a unidade da política contra, digamos, um mesmo governo estadual contra o qual se batam as células de mais de uma região.
[1] No CR de São Paulo, tornou-se um mau hábito frequente prezar pelo consenso acima de tudo, e acusar aqueles que demandam votações de “desejar fracionar o partido”. É evidente que é sempre desejável um debate extenso e minucioso, que permita elaborar as melhores sínteses e minimizar as divergências secundárias. Mas confundir isso com a busca constante pelo consenso significa nada mais que suprimir todas nossas polêmicas, recusando uma tomada de posição naquelas questões que levantam muitas divergências que não se sanam ao longo do debate.
[2] Um exemplo também frequente: Nosso estatuto prevê, com nitidez, no ponto d) de sua décima cláusula, o direito de todo militante “Encaminhar propostas, teses, sugestões, reclamações e recursos, inclusive sobre assuntos disciplinares, a qualquer organismo ou instância partidária.” Esse direito não aparece condicionado a nada. Contudo, o CR de São Paulo por diversas vezes se recusou a enviar diretamente ao CC cartas e questões apresentadas por militantes e células, acusando o exercício desse direito de “luta-internismo”. Os camaradas deveriam se preocupar não com as críticas, que tentam calar: que as críticas sejam feitas por canais partidários lícitos é demonstração de disciplina e lealdade da militância, não algo a ser condenado e coibido.
[3] Com essa palavra, não desejamos minimizar, mas sim delimitar as competências: assim como o Secretariado de uma célula pode legitimamente tomar decisões urgentes em nome de toda a célula entre suas reuniões, o mesmo ocorre com as Comissões Políticas. Ainda que sua função seja “apenas” essa, a utilização da palavra restritiva aqui não visa esconder a grande importância desse papel dos secretariados executivos, sem o que desarmaríamos nosso centralismo democrático para os giros bruscos da conjuntura, local ou nacional. Mas deve ser evidente também que essa “urgência na decisão” deve ser justificada e informada ao Comitê pleno respectivo, que poderá, posteriormente, revogar e criticar a decisão tomada, caso discorde dela no mérito ou no método.
[4] Aqui, não raro, ouvimos a ressalva: “exceto informações envolvendo questões de segurança”. De fato: mas, então, essas omissões devem ser ao menos informadas em termos gerais e políticos, justificando os riscos envolvidos e omitindo apenas as informações efetivamente sigilosas (endereços ou nomes, por exemplo), e não toda questão. Não faz sentido, por exemplo, argumentar que a CPR deve esconder dos dirigentes plenos do CR suas divergências internas “por questão de segurança”. Aliás, vale destacar: o Secretariado que exige de seus membros centralismo mesmo perante o Comitê ao qual estão subordinados e do qual também são membros incorre em flagrante fracionismo, na ilusão de que a “unidade da direção” deva ser a unidade da CPR frente ao CR, e não a unidade do CR, somente após suas decisões coletivas, frente às bases. É lamentável que membros das CPR sejam coagidos a mentir para os seus respectivos CR alegando a existência de “consenso” absoluto nas CPR em todas decisões, sendo mal-vistos se expuserem abertamente aos CR aos quais pertencem posições suas que foram minoritárias nos debates da CPR. Mais um exemplo de espírito de círculo por parte da direção, algo que é tão danoso e frequente na nossa tradição revolucionária, e contra o que o único remédio é o verdadeiro centralismo democrático.
[5] E, de novo, o debate também contemplou as exceções: é evidente que seria lícito à CPR remover de imediato um secretário se o motivo fosse a) a descoberta de um espião; b) um crime cometido contra o partido; etc etc etc. Há várias exceções que podem ser concebidas, e tornariam aceitável que a CPR primeiro agisse, e depois apenas ratificasse no CR sua ação. Mas essa, mais uma vez, não pode ser a premissa permanente, nem o “normal” - ou, então, o CR não seria um órgão de direção coletiva (como definem nossas Resoluções), mas uma assembleia consultiva.
[6] Para considerações mais profundas sobre o tema, veja-se as contribuições do camarada Gabriel Lazzari às Tribunas de Debates 9 e 16, que apresentam uma exposição cristalina da concepção leninista em matéria de comitês intermediários. Ademais, veja Lênin, em “Carta a um camarada”.