'“Do pão que o diabo amassou, fizemos ‘mochi’”: contribuição contra o orientalismo em nossas fileiras' (Kim)
É incomparável o racismo que existe contra pessoas negras, e o racismo que existe contra pessoas amarelas; entretanto, isso não é um critério que responde se um povo, uma etnia e uma cultura são ou não vítimas de racismo.
Por Kim para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas,
Em uma espécie de “tribuna interna” do núcleo que faço parte, recebi uma contribuição de um camarada após um debate levantado acerca de expressões e visões orientalistas utilizadas nos debates políticos não só do núcleo, mas das fileiras de maneira geral, e da herança liberal deixada pelas teses do PCB-TSE. Reproduzo, aqui, alguns excertos extraídos dessa contribuição (se é que podemos nomear dessa forma):
“(...) Hoje sou acusado de racista, contra uma pessoa que se identifica enquanto amarela, engraçado que a pessoa que me avisa, acusa camaradas de perseguição, de identitarismo, de linha rebaixada, de oportunismo; me pergunto: será que esta pessoa é tão avançada na teoria que já está à frente de todos(as)(és) e consegue assim como uma vidente apontar os erros de todo mundo, ou será que usa de “vitimismo” criando um racismo inexistente no Brasil para seu próprio benefício?”
“No último censo, a população amarela no Brasil é equivalente a 0,4% da população (uma porcentagem pífia), e estão presentes em sua grande maioria em cidades interioranas; não me lembro de ver pessoas amarelas morando nas ocupações que eu conheço, ou de estarem em sua grande maioria em vulnerabilidade social, de terem sido escravizadas e serem perseguidas pela PM e serem mortas todos os dias pela sua tonalidade de pele; as religiões de matrizes orientais e asiáticas elas sofrem perseguição e ilegitimação? Queria que alguém me apresentasse os dados de quantas pessoas amarelas foram mortas pelas forças de segurança simplesmente por serem amarelas; e qual a porcentagem de pessoas amarelas nos presídios? Quantas pessoas amarelas abandonaram o estudo pois suas condições socioeconômicas não lhes permitiram prosseguir os estudos.”
“Camarada, recomendo que você procure algo que seja frutífero para você e deixe de criar perseguições na sua mente; ao contrário de vossa pessoa, eu tenho mais o que fazer e o tempo que eu perco aqui rebatendo uma tolice dessas, eu poderia estar estudando, eu poderia estar dormindo, então orientação que você cace o que fazer!
Sem mais
Saudações.
Camarada Profº XXXX.”
Esta é só uma das variadas expressões do orientalismo que presenciei desde que ingressei às fileiras da juventude. Mas desde um mito liberal que trata a Coreia do Norte como isolacionista (e que se reproduz nas últimas teses do PCB-TSE) às diferentes reproduções de argumentos falaciosos de que os Kim regem há mil décadas a Coreia Popular, não abrindo espaço para outras direções dentro de sua estrutura política, esta foi a primeira vez que me deparei com um conteúdo de extrema violência sobre o retrato racial brasileiro, levantando espantalhos de que as minhas críticas são “dedos apontados”, e não a semente de um processo frutífero e coletivo de formação militante. Coincidentemente, não é a primeira vez que eu, enquanto uma mulher amarela que se posiciona criticamente, sou retratada como uma pessoa agressiva por alguns camaradas. Acontece que enquanto eu estiver convicta de que a nossa linha não é o orientalismo, não me darei por vencida, assim como estou convicta de que todas as formas de opressão que se reproduzem em nossas fileiras devem ser dizimadas através do avanço da nossa linha e do nosso trabalho. O estereótipo que carregam de mulher asiática passiva e domesticada não diz respeito a mim.
Posto isso, gostaria de elencar aqui algumas considerações sobre essa tribuna. Começo dizendo que socializei esta justamente por ser um exemplo claro de quando o orientalismo se expressa no anti-leninismo, mas mais do que isso, quando o debate perpassa por questões que vão além da vida interna do núcleo, e sim dizem respeito ao retrato racial brasileiro como um todo, vale mais externalizar o problema para o público, a fim de que todos possam contribuir significativamente.
A questão racial não é algo que se resvala somente em números. Nada que se origina em diferentes contextos políticos complexos, de exploração de mão-de-obra através da colonização e escravização de negros e indígenas, e posteriormente de movimentos migratórios forçosos motivados principalmente pela guerra imperialista, merece ser colocado em uma caixinha só, que ao invés de fazer uma análise precisa das especificidades que envolvem as opressões raciais, transforma-as em uma massa amorfa. Do contrário, entenderíamos que a população indígena brasileira (menos de 1% da população total do país) jamais seria vítima de opressões.
É incomparável o racismo que existe contra pessoas negras, e o racismo que existe contra pessoas amarelas; entretanto, isso não é um critério que responde se um povo, uma etnia e uma cultura são ou não vítimas de racismo. A régua que se estabelece para esta análise não deve rondar a experiência individual, e sim coletiva. Se o camarada responsável pela contribuição citada acima não enxerga racismo contra pessoas amarelas, vou esmiuçar alguns pontos sobre isso.
No caso do Brasil, a abertura dos arquivos de órgãos como o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo) foram essenciais para a compreensão do papel da ditadura militar na repressão dos povos amarelos. Há um discurso comum àquela época, principalmente reproduzido pela Polícia Militar, de que os inimigos estatais são pertencentes a “raças indesejáveis” e portadores de “ideias exóticas”. Através dessa política eugenista do Estado, de “filtragem” da população brasileira, os inimigos estavam declarados, e dentre eles, as pessoas amarelas. Daí, surge o termo ‘Perigo Amarelo’.
Aqui, é importante ressaltar que o Perigo Amarelo se divide em dois eixos de opressão um tanto quanto paradoxais. Se de um lado as pessoas amarelas vindas dos países asiáticos carregam o estereótipo supostamente positivo de mão-de-obra de alta qualidade, por outro, são vistos como uma ameaça ao Estado Brasileiro, pois estes seriam os fundadores do “Grande Império do Sol Poente” no interior do Brasil, onde trabalhavam como agricultores. Consequentemente, com algum esforço, não é difícil encontrar uma produção intelectual que nos ridiculariza enquanto amarelos naquela época, por sermos de uma personalidade e cultura insípidas aos olhos da branquitude academicista, nos restando a repressão que tenta nos impor o abandono da nossa cultura e dos nossos traços.
Se nos expandíssemos, e conseguíssemos nos desenvolver enquanto cidadãos qualificados para trabalho e estudo, a arma eugenista do Estado sempre esteve pronta e fez o possível para nos dizimar através da violência policial e do impedimento à entrada de refugiados vítimas de guerras. Se no filme ‘Parasita’ (2019) as famílias pobres da Coreia moravam (e moram) em depósitos nos bairros mais periféricos, aqui no Brasil a realidade não foi diferente com a intensificação do fluxo migratório durante a Guerra da Coreia: muitos estabelecimentos comerciais em bairros tradicionais como o Bom Retiro, em São Paulo, abrigavam famílias coreanas nos depósitos, que eram reprimidas e não podiam ter documentos, se naturalizar, e trabalhar formalmente, pois o mito do perigo amarelo era o que norteava, então, o instrumento repressor do Estado a essas famílias.
À princípio, parece muito contraditória a ideia de que ao mesmo tempo que éramos vistos como uma ameaça capaz de transformar quem domina os meios de produção no Brasil, éramos inferiores intelectualmente e moralmente, mas isto é elucidado com um simples fato: só éramos vistos como “bons trabalhadores” se servíssemos com obediência à agricultura e demais fontes da economia reacionárias. Do contrário, somos até hoje vistos como aberrações, não somos bem-vindos, coisa que se expressa em frases que ouvimos constantemente como “Volta para o seu país.”, “Pra passar na USP só matando um asiático”, além dos delírios eugenistas que buscam traçar até mesmo a diferença do formato do crânio e dos olhos entre um japonês e um chinês. A fim de trazer um exemplo mais palpável e recente, pandemias como as de Covid-19 sempre foram pretexto para que os racistas dissessem que estamos “espalhando doenças”.
Mas onde reside, então, o espaço das mulheres amarelas?
A Segunda Guerra Mundial é um ponto de partida interessante para delimitarmos esse escopo. As mulheres coreanas foram escravizadas sexualmente pelo Exército Japonês, e depois pelo Exército Norte Americano, que estuprava não só mulheres coreanas, mas também vietnamitas durante a Guerra do Vietnã. Assim, nasceu uma narrativa de que as mulheres amarelas são “dóceis”, “submissas”, e detentoras do papel de “bonecas exóticas”. Tal estereótipo se expressa até hoje na mídia ocidental de consumo, onde o entretenimento gira em torno do orientalismo. Fetichização e submissão são, assim, marcas comuns dolorosas às mulheres amarelas, e geram a expectativa de que nós iremos abaixar a nossa cabeça para o racismo.
Por fim, isso é só UMA faceta dentre outras muitas do orientalismo, porque ainda existe o orientalismo que é praticado contra os palestinos e contra os indianos, por exemplo. Não só, é comum que dentro do debate comunista, eu me depare com comentários extremamente ofensivos de que há uma “falsa Coreia”. Camaradas, a Coreia do Sul é exemplo válido de um país explorado pelas forças imperialistas norte-americanas; comumente, dia a dia pessoas são expulsas de suas próprias casas para terem a sua moradia transformada em um estabelecimento comercial. O direito à moradia é transformado em lucro para fornecimento às armas de um Exército aliado aos Estados Unidos, o que não significa que aquele povo mereça ter os seus direitos ameaçados, pois é isso o que a imposição dos interesses capitalistas faz, nos desumaniza, nos ridiculariza e tenta nos apassivar diante do único papel que nos resta: construir o futuro socialista.
Recomendações de leitura:
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Editora Companhia das Letras, 2007.
TAKEUCHI, Marcia Yumi; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O perigo amarelo em tempos de guerra,(1939-1945). (No Title), 2002.
TAKEUCHI, Márcia Yumi; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O perigo amarelo: imagens do mito, realidade do preconceito (1920-1945). 2004.
TOKUSATO, Leticia et al. Coronavírus: A nova variante do perigo amarelo. ÎANDÉ: Ciências e Humanidades, v. 6, n. 1, p. 46-58, 2022.
WON, Youngsu. Workers in South Korea and the 1980 Gwangju Uprising. If Not Us, Who?.