'Diga as palavrinhas mágicas: “faço autocrítica!”' (igoRR)

Devemos destruir completamente qualquer medo ou receio que haja de realizar críticas, quaisquer que sejam e a quem seja, ao mesmo tempo que é construída uma camaradagem real, que não é baseada na pureza dês militantes.

'Diga as palavrinhas mágicas: “faço autocrítica!”' (igoRR)

Por igoRR para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

“Camaradas: reconhecendo o erro cometido quanto à minha participação na reunião da Plataforma Mundial Anti-imperialista, ocorrida em Seul, no âmbito do Congresso do Partido da Democracia Popular (Comunista), da Coreia do Sul, faço a devida autocrítica, já verbalizada na CPN e no CC, e assumo o compromisso de que esse erro não se repetirá.” – Eduardo Serra

Foi esta a autocrítica escrita pelo secretário de Relações Internacionais do PCB, e divulgada a toda a militância em 17 de julho de 2023, após ter ido diretamente contra nossas resoluções com a participação na Plataforma Mundial Anti-imperialista (PMAI). Esta infame citação, agora já conhecida dentre a nossa militância como a “autocrítica de três linhas”, é sim cômica, mas é também uma representação perfeita dos problemas do nosso modo atual de compreender o que é uma autocrítica.

Atualmente, quando ume camarada comete um erro e é avaliado que elu precisa realizar uma autocrítica, o que acostumamos por fazer é pedir que tal camarada escreva uma “carta de autocrítica”, que então é enviada às devidas instâncias e, com sorte, lida e referendada em uma reunião do pleno. Essa carta costuma seguir um roteiro padrão:

  1. Descrição do erro;
  2. Reconhecimento de que foi um erro;
  3. “Faço autocrítica”;
  4. [Opcional] promessa de que não vai errar de novo.

Camaradas, se é assim que entendemos que se dá o processo da autocrítica, a citação que trouxe acima está totalmente de acordo com o nosso entendimento, e seu maior pecado foi realmente apenas ter economizado no número de linhas. Em muitos casos como esse, ouvi falar como “tal camarada escreveu uma autocrítica, mas não realizou a autocrítica na prática”. Como que podemos considerar esses dois momentos como coisas separadas? O que é uma carta de autocrítica se não apenas um teatro do que aquelu criticade acha que outres esperam delu?

“Desenvolver em todos os militantes, responsáveis e combatentes, o espírito de autocrítica: a capacidade de cada um fazer uma análise concreta do seu próprio trabalho, de distinguir nele o que está bem do que está mal, de reconhecer os seus próprios erros e de descobrir as causas e as consequências desses erros. Fazer uma autocrítica não é apenas dizer ‘sim, reconheço a minha falta, o meu erro e peço perdão’, ficando logo pronto para cometer novas faltas, novos erros. Não é fingir-se arrependido do mal que fez, e ficar, no fundo, convencido de que os outros é que não o compreendem. Nem tão pouco fazer autocrítica é fazer uma cerimônia para depois poder ficar com a consciência tranquila e continuar a cometer erros. Autocriticar-se não é pagar um responso ou uma bula, nem é fazer penitência. A autocrítica é um ato de franqueza, de coragem, de camaradagem e de consciência das nossas responsabilidades, uma prova da nossa vontade de cumprir e de cumprir bem, uma manifestação da nossa determinação de ser cada dia melhor e dar uma melhor contribuição para o progresso do nosso Partido. Uma autocrítica sincera, não exige necessariamente uma absolvição: é um compromisso que fazemos com a nossa consciência para não cometermos mais erros; é aceitar as nossas responsabilidades diante dos outros e mobilizar todas as nossas capacidades para fazer mais e melhor. Autocriticar-se é reconstruir-se a si mesmo, para melhor servir.” – Amílcar Cabral

Considero essas palavras de Amílcar Cabral essenciais na prática da autocrítica. Perdura no movimento comunista brasileiro uma compreensão da crítica e autocrítica baseada em uma moralidade cristã, em que ume militante deve sempre permanecer puro de seus pecados, e quando peca, deve então pedir o perdão de sues camaradas, para depois se tornar puro novamente. O que é a carta de autocrítica se não justamente o momento em que confessamos nossos pecados, e aguardamos o perdão?

Para além disso, como podemos esperar que apenas a escrita de uma autocrítica possa corrigir quaisquer desvios que ume militante possua? No máximo, ê militante demonstra saber o que ês outres esperam delu, mas isso não é de qualquer forma uma evidência de que elu próprie tenha a mesma compreensão de qual linha deve ser seguida.

Para superarmos o modelo atual, devemos acima de tudo pensar a autocrítica sempre como um processo. Destruir quaisquer ilusões de que ume militante possa se transformar da noite pro dia, apenas por ter escrito uma autocrítica, por mais bem escrita que seja. Não existe autocrítica fácil, pois a construção de um novo sujeito passa pela destruição do velho.

Devemos também compreender o papel central que possui a crítica e a camaradagem no processo da autocrítica. O cuidado do indivíduo é um dever coletivo. Uma autocrítica não ocorre se ê militante não é criticade por sues camaradas quando incorre novamente em erros e desvios. Da mesma forma, ela também não acontece se ê militante se sente abandonade por sues camaradas, e sente que não pode mais voltar a ser parte plena da coletividade após ter errado uma vez.

Devemos destruir completamente qualquer medo ou receio que haja de realizar críticas, quaisquer que sejam e a quem seja, ao mesmo tempo que é construída uma camaradagem real, que não é baseada na pureza dês militantes. Nenhuma autocrítica surge do nada, ela ocorre apenas a partir da crítica, e apenas quando existe camaradagem.


Referências:

Circular da Comissão Política Nacional do Comitê Central do PCB de 17 de julho de 2023, documento interno;

Amílcar Cabral – Aplicar na Prática os Princípios do Partido, disponível em: https://traduagindo.com/2021/10/08/amilcar-cabral-aplicar-na-pratica-os-principios-do-partido/.