'Dezembro vermelho e uma das tarefas comunistas sobre a sexualidade' (izacloss)

Escrevo esta tribuna para trazer alguns pontos sobre a questão da sexualidade tendo como disparador e mediador a campanha do dezembro vermelho, que marca uma grande mobilização nacional na luta contra o vírus HIV, a Aids e outras IST’s.

'Dezembro vermelho e uma das tarefas comunistas sobre a sexualidade' (izacloss)
"É poder refletir sobre como os entrecruzamentos das opressões ocorreram, para que, assim, possamos pensar em formas de identidade e autoestima, adentrando na luta de classes reconhecendo, reivindicando, engajando e construindo o perfil sobre gênero/sexualidade mais perto do nosso contexto brasileiro."

Por izacloss para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Salve, camaradas! Escrevo esta tribuna para trazer alguns pontos sobre a questão da sexualidade tendo como disparador e mediador a campanha do dezembro vermelho, que marca uma grande mobilização nacional na luta contra o vírus HIV, a Aids e outras IST’s. Além de estarmos no mês da campanha e podermos nos debruçar sobre as questões relativas à saúde pública, acredito que localizar pontos importantes sobre epidemia de HIV/AIDS — e movimentos sociais anteriores, dentro e fora da epidemia — é poder avançar nas nossas percepções sobre sexualidade/gênero na estrutura capitalista bem como refletir sobre como poderemos superá-la ou subvertê-la quando tivermos nosso estado socialista brasileiro.

De saída é importante dizer que a classe dos trabalhadores é composta por toda a sua diversidade, e vejo como importante fazermos dialeticamente esse vai e vém entre a história dos movimentos mais populares — que invariavelmente caem no institucionalismo do estado burguês — até às nossas pautas de luta de classe e revolução; de proposições e combates ao estado burguês para que não caiamos nos famigerados desvios, tais como reformismo e sectarismo, sendo o sectarismo um que julgo fácil de cair quando se é comunista e não se consegue dialogar com as contradições e entrecruzamento das opressões com a questão de classe. Esse retorno aos movimentos sociais LGBT e de gênero faz com que percebamos como os próprios comunistas, tais como Marx e Engels e comunistas do próprio PCB, tinham uma visão de que as lutas ditas de “minoria” seriam secundárias e a “grande luta”, a maior, seria a luta de classes. Embora “bicha” fosse sinônimo de comunista, essa LGBTfobia por parte dos comunistas também ocorreu aqui no Brasil em períodos anteriores, entre e depois da epidemia do HIV/AIDS. (1)

A primeira epidemia de doenças sexualmente transmissíveis foi a da sífilis, que ocorreu por volta dos anos 1495 mas foi somente em 1943, com a descoberta da penicilina, que se encontrou a cura para a doença. De uma maneira mais globalizada, a epidemia do HIV/AIDS marcou profundamente a história sobre a sexualidade, sendo retratada, pesquisada e documentada. E é a partir dos documentos e pesquisas envoltas em debates sobre a sexualidade da população LGBT e das intensas disputas dentro da arena do que é moral e imoral sexualmente na sociedade, ou seja, tendo a ver com a normatização que a estrutura monogâmica sobre a sexualidade e reprodução da vida, que a epidemia do HIV/AIDS se estruturou. (2)

Fazendo um apanhado breve sobre os movimentos sobre sexualidade anteriores à epidemia, no Brasil, em meio a ditadura entre os anos 60 e 70, muitas pessoas estavam sendo arbitrariamente presas, torturadas e assassinadas, sendo a imprensa colocada sob rígida censura. Nos EUA a situação era diferente, pois em meio a influências de perspectivas como as da revolução cubana, a invenção do anticoncepcional, o rock e o movimento hippie, ocorre a batida policial realizada no bar Stonewall Inn, em Nova Iorque, que provocou revolta dos homossexuais, reunidos em protesto público por três dias. Após a invasão do bar Stonewall, os homossexuais se reúnem em praça pública nos anos subsequentes, para celebrar a vitória obtida no ano anterior. Durante o processo de abertura política, a partir da década de 70, aqui no Brasil, várias manifestações das classes operárias e estudantis ocorreram, exigindo a democracia e condições sociais mais justas para os trabalhadores e para a sociedade em geral. (2)

Diante dessas contradições e atmosfera de mudança, surge em 1978,  o jornal “O Lampião da Esquina”, um jornal feito principalmente de homens gays, que tratava de temas associados à sexualidade, cultura, gênero e discriminação racial. Embora fosse um jornal de homens gays feito principalmente para homens gays — com uma linguagem nos termos das provocações e tiradas de bichas/viados —, continha conteúdos seríssimos falando de forma livre e divertida sobre coisas que até hoje não conseguimos falar tranquilamente. Assim, foi um importante veículo alternativo sobre questões de opressões da época da ditadura, recebendo apoio internacional quando confrontado pela justiça da ditadura cis hetero burguesa empresarial-militar. (1) (2) (4)

Influenciados também pelo jornal, homossexuais de São Paulo começam a se reunir informalmente, criando a a primeira organização em defesa de seus direitos: o Somos – o Grupo de Afirmação Homossexual, em 1979. Alguns rachas dentro dos movimentos sociais sexuais ocorreram, importante frisar os que tange às questões de machismo envolvidas na falta de visibilidade das mulheres e mulheres lésbicas. É nossa tarefa observar como essas contradições e rachas ocorreram e perceber a viscosidade do machismo, misoginia e conservadorismo em todos os espacinhos que eles se enfiam. Ainda hoje encontramos rachas sobre as cores e siglas LGBT, especialmente de mulheres que são feministas radicais (radfem). (9)

Sob tais influências, no final dos anos 70, velhos tabus nacionais começam a ser derrubados: a bissexualidade começa a ser a prática sexual mais discutida e a androginia (a não definição entre o masculino e o feminino) começa a ser valorizada. A sexualidade no Brasil, antes da epidemia do HIV/AIDS pode ser retratada como uma forma de resistência à ditadura, sendo que nos espaços socializados de pessoas com sexualidades dissidentes à norma, a experiência sexual se mostrava livre e intensa embora nas ruas encontrássemos preconceitos e inclusive mortes por LGBTfobia. Antes da epidemia, os ambientes de socialização LGBT eram mais heterodoxos e livres, com a epidemia tal cenário mudou e o pânico começou a surgir: transar agora ficou mais complicado e poderia levar à morte. A militância neste momento se voltou ao combate da aids de maneira mais “séria”, pois a necessidade agora era sobre a vida: de pesquisa, de medicações, de hospitais, etc, para que pessoas parassem de morrer. (4) (2)

Houve intensos momentos de perseguição durante a ditadura, e, instrumentalizada principalmente pelo delegado José Wilson Richetti e com apoio popular, uma operação que visava eliminar a população LGBT da cidade de São Paulo. Em junho de 1980, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo, em oposição a essa ação que foi chamada de “Operação Limpeza”, ocorreu o que bem poderia ser lido como um Stonewall brasileiro. Cerca de mil pessoas caminharam pelas ruas do centro de São Paulo numa manifestação contra a violência policial e homofobia institucional. No início do documentário sobre a história do jornal Lampião da Esquina encontramos um jornalista indagando cidadãos nas ruas se achavam que matar homossexuais ou travestis era correto, muitas pessoas respondem à luz do dia que concordam e que poderia inclusive estar na lei. (2) (4) (9)

A principal figura colocada no cerne da epidemia foram os homens gays (brancos), inclusive a epidemia foi chamada de "peste gay", o que além de ser homofobia institucionalizada, acabou também por apagar os diversos movimentos LGBT envolvidos no combate a AIDS (como as casas de acolhimento) bem como atrasou pesquisas com pessoas de outros gêneros, como no caso de pessoas que gestam sobre a transmissão vertical, que é o tipo de transmissão de quem gesta para quem está nascendo. Hoje existe um protocolo clínico que assegura a não transmissão vertical. Já o caso da amamentação ainda é insegura e não deve ser feita por pessoas soropositivas. (3) (8)

Durante a epidemia do HIV/AIDS, o jornal Lampião da Esquina e o grupo SOMOS começaram a se desintegrar e na necessidade de reivindicações sobre saúde pública que atingia principalmente a população LGBT, surgiram duas principais organizações que dialogaram com a institucionalidade burguesa sem o caráter de luta pelo fim do estado capitalista, são elas: o Grupo Gay da Bahia (GGB) e o Triângulo Rosa, do Rio de Janeiro, que buscaram, em um entendimento direto com o Estado, as condições legais de proteção e políticas voltadas para a população LGBT. (3) (7) (9)

Sobre as questões discursivas sobre a sexualidade, Cazuza antes de vir a falecer de AIDS disse: "a AIDS caiu como uma luva para ser o modelinho perfeito da direita da Igreja". Pois, associado a comportamentos ditos promíscuos, o vírus foi utilizado como instrumento de controle social, apresentando noções do que é o correto e higienizado no que tange às formas de se relacionar sexualmente. Deste modo, a epidemia marcou intensas relações e disputas sobre a questão da sexualidade na sociedade. É preciso colocar no debate, em sua ordem do dia, como a questão da sexualidade é um tema denso no imaginário social porque vem atrelada à um ideal de família que é formado ideologicamente pela noção de monogamia estrutural cis branco e heteronormativa, tendo o trabalho de reprodução da vida alienados ao capital. Em 2020 a pastora Ana Paula Valadão viralizou demonstrando esses entrecruzamentos ao tocar no tema da aids dizendo que a aids é doença de homossexual e que o único sexo seguro se chama aliança do casamento. Um dado importante é que na época da epidemia, nas décadas de 80 e 90, embora associado à pessoas LGBT, o vírus foi amplamente contraído por mulheres heterossexuais casadas e religiosas. (5) (6)

Por conta da LGBTFOBIA e da MONOGAMIA ESTRUTURAL, encontramos muitos profissionais que atuam na área da saúde com postura de crenças pessoais em seus atendimentos sobre as demandas da saúde sexual e sexualidade. O que traz agravantes principalmente para o tratamento da população LGBT e pessoas que se relacionam não-monogamicamente, e, nas  relações monogâmicas que se utilizam da “traição”, existe o estigma na hora de falar francamente sobre sua vida sexual. Assim, a monogamia não é método de prevenção e nos casos de relações monogâmicas cis heterossexuais, o peso sempre recai sobre as mulheres que acabam correndo risco de contrair ISTs de seus companheiros pois pedir pelo uso da camisinha geraria desconforto e violência na relação. Ao buscar atendimento em saúde, muitas pessoas têm dificuldade em falar sobre suas vidas sexuais pois tem receio do julgamento moral sobre como se relacionam, seja porque são casados, ou seja porque são julgados como pessoas consideradas promíscuas, como trabalhadores sexuais, pessoas LGBT e de quem se relaciona não monogamicamente. (6)

Em relação à educação sexual, sabemos que ela é invariavelmente conduzida de forma cis-heterocentradas, o que faz com que entre os jovens LGBT ocorra falta de informação e entedimento sobre suas vidas sexuais. As meninas adolescentes apresentam uma das piores posições porque tem dificuldade em se colocar na hora do sexo, por falta de educação sexual e também porque quando recorrem ao serviços de saúde ainda muitos profissionais só aceitam atendê-las caso estejam com acompanhantes. Em um sociedade cis-heteropatriarcal apenas as relações entre cishetero e monogâmicas são consideradas como legítimas e isso acarreta em ações de prevenção que não levam em consideração especificidades sobre a diversidade sexual mas são baseadas em discriminações e preconceitos ligados à sexualidade, assim como raça e classe. (6)

O HIV ainda não tem cura, mas com tratamento adequado, as pessoas podem viver uma vida saudável por muitos anos. Temos 1 milhão de pessoas que vivem com o HIV no Brasil e com avanço da ciência é perfeitamente compreensível e é necessário ser assegurado a essas pessoas o  direito humanitário básico ao sigilo. Hoje contamos com políticas de prevenção ao HIV e outras ISTs que estão para além do uso de preservativos, como é o caso do PEP (profilaxia pós-exposição) e do PrEP (profilaxia pré-exposição). O tratamento de pessoas com HIV é uma forma de prevenção, pois com a carga viral indetectável, as pessoas soropositivas vivem uma vida saudável, inclusive sem transmissão do vírus para seus parceiros. (6)

Desta forma, camaradas, trago com esta tribuna, uma apresentação de proposta do porquê de aprender sobre a história da epidemia do HIV/AIDS — fazendo ganchos necessários com as lutas LGBT’s e feministas — é de fundamental importância para nós comunistas! É, além de saber sobre saúde pública, focalizar um olhar mais aprofundado para a história brasileira de lutas pela libertação da diversidade sexual e de gênero. Como temos como objetivo construir uma luta revolucionária que se propõe a superar as ideologias que dão vida à sociedade capitalista no Brasil, precisamos entender melhor como podemos forjar nossa luta no reconhecimento sobre nossa formação social em relação à sexualidade/gênero. É poder refletir sobre como os entrecruzamentos das opressões ocorreram, para que, assim, possamos pensar em formas de identidade e autoestima, adentrando na luta de classes reconhecendo, reivindicando, engajando e construindo o perfil sobre gênero/sexualidade mais perto do nosso contexto brasileiro.


REFERÊNCIAS:

  1. MORETTI-PIRES, Rodrigo Otávio; TESSER JUNIOR, Zeno Carlos  and  KOVALESKI, Douglas Francisco. Homofobia e os socialistas brasileiros em “O Lampião da Esquina” (1978-1981). Rev. Estud. Fem. [online]. 2018, vol.26, n.3, e45989. ISSN 1806-9584.   https://www.scielo.br/j/ref/a/NHyRMqvnbKvtHqbMPPJVRRv/?lang=pt.
  2. Guia de Prevenção das DST/Aids e Cidadania para Homossexuais. Ministério da saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manHSH01.pdf
  3. O movimento sexual e a aids. Ministério da saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manHSH202.pdf
  4. Documentário Lampião da Esquina feito pela cineasta cofundadora do grupo Mirada - Estudos de Gênero e Audiovisual, Lívia Perez.
  5. O HIV sob uma ótica marxista. LGBT Comunista https://lgbtcomunista.org/2023/08/17/o-hiv-sob-uma-otica-marxista/
  6. OLIVEIRA, I.L.; LIMA JR, N. S. Não-monogamia Política, saúde sexual e prevenção a ISTs. NM em Foco. 2020. Disponível em: https://naomonoemfoco.com.br/nao-monogamia-politica-saude-sexual-e-prevenco-a-ists/. Acesso em: 22, dezembro, 2023.
  7. Movimento LGBT: da luta antissistêmica à institucionalidade. LGBT comunista: https://lgbtcomunista.org/2021/05/07/movimento-lgbt-da-luta-antissistemica-a-institucionalidade/
  8. Documentário HIV 40 anos: Aids e suas histórias: transmissão vertical: um assunto proibido, ep 1. Agência de Notícias da Aids:
    https://www.youtube.com/watch?v=I3jvAugB1A8
  9. Quando ousamos existir: itinerários fotobiográficos do movimento LGBTI brasileiro (1978-2018): https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2021/02/quando-ousamos-existir_interativo-1.pdf