Denúncias contra Alysson Mascaro trazem à tona assédio nas universidades

Não é necessária uma análise minuciosa para verificar que a burocracia universitária prioriza a expulsão de militantes e estudantes pobres do que o combate aos assediadores, que a regra é “punição exemplar de grevistas, impunidade exemplar aos assediadores”.

Denúncias contra Alysson Mascaro trazem à tona assédio nas universidades
Reprodução/Foto: Instagram/Alysson Mascaro.

Por Redação

No dia 3 de novembro, o Intercept Brasil publicou uma série de denúncias de abuso sexual contra Alysson Mascaro, professor na Faculdade de Direito da USP e figura notável da esquerda brasileira. As denúncias trazidas por alunos e ex-alunos, que tiveram suas identidades protegidas, contam detalhes dos abusos e das dificuldades de realizar qualquer denúncia pela posição de autoridade e prestígio do professor. Algumas semanas depois, uma nova reportagem do mesmo jornal acrescentou o relato de mais vítimas, nesse caso não apenas de estudantes, mas de outras pessoas que também tiveram contato profissional com o professor.

As denúncias geraram repercussões imediatas, encorajando outras possíveis vítimas a apresentarem suas denúncias e relatos, mas também trazendo à tona alegações conspiratórias, como no portal Brasil 247, de uma pequena parcela de admiradores de Mascaro, questionando as denúncias e as vítimas, sob o pretexto de que haveria uma “trama da direita” ligada às denúncias.

Ainda que chocante, considerando o número de vítimas e a influência do professor em alguns meios de esquerda, o caso está longe de ser uma exceção dentro do ambiente acadêmico. Não é incomum ouvir relatos e denúncias similares sobre docentes à boca pequena nos corredores das universidades burguesas, nas quais as relações de hierarquia permitem que essa categoria possua grande poder de influência, favorecendo o surgimento de um cenário forrado de violência, opressão e impunidade.

As denúncias contra Mascaro abrem espaço para uma discussão mais profunda sobre as relações de poder dentro da universidade burguesa e a constante do assédio nesse ambiente, mesmo em círculos ditos de “esquerda”.

Enquanto as denúncias contra Mascaro perpassam quase duas décadas de completa impunidade do professor, essa mesma USP, desde 2023, está ameaçando militantes solidários à causa palestina de expulsão. Não é necessária uma análise minuciosa para verificar que a burocracia universitária prioriza a expulsão de militantes e estudantes pobres do que o combate aos assediadores, que a regra é “punição exemplar de grevistas, impunidade exemplar aos assediadores”.

A própria legislação interna da USP, que se mantém vigente desde o período da ditadura empresarial-militar, reforça essa lógica: enquanto os estudantes são processados com base no arts. 248-250 do Regime Disciplinar da Ditadura, podendo ser expulsos por diversas condutas políticas como “afixar cartazes” ou “propaganda partidária” (porém, sem nenhum tipo de infração dedicado à opressões).

Já os docentes só podem ser processados com base nos arts. 251-253 do mesmo Regimento, muito mais lenientes, mas que também não apresentam nenhuma sanção à violência, opressão ou assédio, para além da sanção de demissão para professores que pratiquem “ato incompatível com a moralidade e dignidade universitárias”, disposição genérica, e apenas caso essa sanção seja proposta pela Congregação e aprovada pelo Reitor.

Em ambos os casos, os órgãos responsáveis pela investigação são compostos integralmente por docentes, e o julgamento por conselhos compostos por 70% de representantes dos docentes, e apenas 15% de estudantes e 15% de representantes dos trabalhadores da administração direta.

Dessa forma, os docentes são sempre investigados e julgados exclusivamente por seus colegas, que frequentemente são omissos e lenientes na responsabilização de agressores com os quais eles compartilham inúmeros laços sociais, de amizade e, principalmente, corporativos. Essa dinâmica de poder e impunidade aparece claramente nas denúncias contra Mascaro, que orbitam frequentemente no poder político, nas amizades e na influência do professor, tanto dentro da USP como com as demais instituições burguesas, chegando até a contatos no Supremo Tribunal Federal (STF).

Porém, essa dinâmica não é exclusiva da USP. No primeiro semestre de 2023, uma série de denúncias contra o professor português Boaventura de Sousa Santos, sociólogo de esquerda de notoriedade internacional, revelou situações similares de opressão e agressão contra diversas mulheres no ambiente universitário. As mulheres que denunciaram, estão sendo processadas por Santos.

Na Universidade de Brasília (UnB), protestos de mulheres denunciaram o caráter estrutural e institucional da opressão, após um professor acusado de assédio ser sancionado com apenas 15 dias de afastamento remunerado. Com os protestos, a imprensa apurou que entre 2013 e 2023, de 210 denúncias de assédio moral e sexual apresentadas, apenas 6 resultaram na abertura de processos administrativos disciplinares, e destes apenas um resultou em uma sanção contra o acusado de assédio sexual: suspensão de 60 dias.

Ainda em 2024, um professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) foi condenado pela justiça por assédio sexual. Mesmo com o caso ocorrendo em 2019, apenas em 2024, após a condenação em segunda instância, a FURG pronunciou-se e demitiu o acusado.

Todos esses casos demonstram que não é possível ignorar a existência de uma estrutura favorável à opressão e à impunidade nas universidades públicas. Os casos de assédios de professores são reforçados pela própria estrutura universitária: as hierarquias criadas pelo sistema de orientação e necessidade de ser “apadrinhado” por um professor “influente” para ter acesso a certos espaços, vagas e bolsas. A procura dos estudantes por estabelecerem boas relações com mentores em busca de uma carreira acadêmica é um processo aprofundado pelo sucateamento e redução dos investimentos na universidade e agências de fomento – principalmente nas políticas de permanência e a redução de bolsas de pesquisas, de maneira geral.

Por outro lado, a falta de transparência e democracia nos espaços institucionais da universidade dificulta a denúncia e apuração dos casos de violência, tornando regra as relações corporativas e escusas. Ainda, o perfil da maioria do corpo docente das universidades – branco, masculino, de setores de classe média ou mesmo descendentes de braços da burguesia – enfraquece ainda mais a possibilidade de denúncia.

Para além desse cenário, a própria estrutura hierárquica e patriarcal da sociedade capitalista reforça o surgimento de terceiros prestando “solidariedade”, não às vítimas, mas aos agressores acusados, questionando a veracidade das denúncias e atacando as vítimas, reforçando o sofrimento dessas vítimas que não se restringe à agressão em si, mas também na reação à denúncia.

Isso ocorre, inclusive, nos meios de esquerda, apresentando narrativas “conspiracionistas”, como se o acusado estivesse sendo “perseguido” o que apenas reforça a opressão e a violência. A influência dos professores, a conhecida impunidade e a possibilidade real de represálias e perseguições posteriores contra os denunciantes explicam porque casos de violência sexual são tão subnotificados, com muito mais ocorrências conhecidas do que denúncias formais.

Estudantes e trabalhadores, e em especial as mulheres e LGBTI+, se mobilizam com frequência para enfrentar essa opressão e violência, denunciar cada caso individual e desenvolver estruturas para prevenir o assédio e combater os assediadores, mesmo que isso os coloque contra as instituições e estruturas nas quais precisam trabalhar e estudar.

Enfrentar essa estrutura exige algumas medidas mínimas para o enfrentamento de cada caso: comissões e casas de acolhimento capazes de prestar os cuidados necessários à cada vítima e encaminhar suas denúncias com segurança e sigilo; regulamentos e mecanismos democráticos e eficientes de afastamento preventivo e proteção das vítimas; processos de investigação, apuração e julgamento realizados por organismos ao máximo isentos de ligação com o acusado e democráticos, contemplando participação paritária de todas as categorias da universidade (estudantes, trabalhadores e professores), evitando relações corporativas; e, em geral, o aumento da transparência e prestação de contas nos projetos de pesquisa, especialmente na distribuição de recursos, e a implementação de mecanismos universais e efetivos de permanência na Universidade.

Na USP, por exemplo, isso significa a revogação imediata do Regime Disciplinar da Ditadura, a instituição de órgãos paritários e democráticos para a investigação e o julgamento de processos administrativos disciplinares, a organização, com apoio institucional, de comissões de acolhimento e ouvidorias eficientes. Além disso, seria também a democratização dos Conselhos Diretivos em todos os níveis, o afastamento completo da iniciativa privada e da utilização privada de recursos públicos, o aumento de orçamento para a permanência estudantil e o reconhecimento da pesquisa na pós-graduação como regime de trabalho, com a conquista de direitos trabalhistas e a diminuição do poder dos orientadores sobre os estudantes.

Somente um movimento de estudantes e trabalhadores, organizado, unido e mobilizado, pode conquistar mesmo parcialmente estas ferramentas mínimas para combater o assédio e a violência sexual no ambiente universitário.

Mas, mesmo todas essas ferramentas ainda são insuficientes para o combate efetivo ao assédio e à violência, pois não combatem a raiz do problema, ou seja, a estrutura capitalista da opressão de gênero e sexualidade, combinada à hierarquia e a concentração de poderes na Universidade que favorecem a perpetração de violências, a coação das vítimas e a impunidade dos agressores.

Essa estrutura decorre diretamente da forma capitalista de produção e gestão do conhecimento humano, dirigida e mantida pela burguesia através de uma burocracia controlada e ligada à classe dominante por inúmeros laços e que concentra, portanto, nas mãos de uma ínfima minoria, majoritariamente masculina e branca, os recursos e o controle das Universidades, inclusive as Universidades públicas – não custa destacar que o Reitor da USP, único capaz de aprovar a demissão de qualquer docente, é indicado diretamente pelo Governador do Estado de São Paulo.

Nesse sentido, combater o assédio envolve, também, combater diretamente a estrutura de poder e hierarquia da universidade burguesa, colocando ela sob controle da classe trabalhadora, que constitui a imensa maioria da população, extirpando o corporativismo, a impunidade e a concentração de poderes.