Decisão sobre recusa de transfusão sanguínea traz de volta o debate sobre os ataques do STF à saúde

A Corte atribuiu a decisão do procedimento exclusivamente à ‘autonomia individual’, neutralizando a capacidade médica de preservação da vida em casos de risco. Essa não é a primeira vez que o STF profere tese desfavorável à saúde no país.

Decisão sobre recusa de transfusão sanguínea traz de volta o debate sobre os ataques do STF à saúde
Plenário do Supremo Tribunal Federal. Reprodução: STF.

Por Redação

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na quarta-feira (25) que pacientes que são Testemunhas de Jeová podem, por convicção religiosa, recusar tratamentos médicos com uso de transfusão de sangue. A decisão, fundamentada na realização do direito constitucional ao culto, vai contra o anterior entendimento relativamente consolidado, que permitia a recusa naqueles casos em que avaliado por profissional da saúde que a existência de tratamentos alternativos não colocavam em risco de vida ou morte o paciente.

A tese consolidada pela decisão teve a seguinte redação final:

“Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa.”

A decisão do plenário terá aplicação aos processos semelhantes que tramitam nas instâncias inferiores. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estipula que são 1.461 casos com os mesmos temas aguardando decisão.

O Supremo, ao atribuir a decisão acerca do procedimento médico exclusivamente à autonomia individual, concede ao campo da religião o que antes era determinado por avaliação médica, prezando, como critério último, pela preservação da vida em risco. Essa não é a primeira vez que o STF profere decisão desfavorável à saúde no Brasil.

Em dezembro de 2023, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7222, a Corte, por maioria de votos, decidiu implementar o piso salarial da enfermagem – uma das categorias mais impactadas pela pandemia de Covid-19 e que continua exposta a diversos riscos – para profissionais contratados sob o regime celetista de maneira regionalizada. O piso salarial foi garantido pela Lei 14.581/23, que estabelece R$ 4.750 para enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos de enfermagem e R$ 2.375 para auxiliares e parteiras. Após a decisão do STF, os valores passaram a ser definidos por negociação coletiva, prevalecendo o instrumento trabalhista sobre o que está estabelecido em lei. A decisão favoreceu os interesses de grandes empresas de saúde, beneficiados pela mercantilização dos serviços e que resistem à implementação do piso salarial da categoria.

A decisão do Supremo Tribunal Federal é vista como afronta às reivindicações da categoria, majoritariamente composta por mulheres. A decisão estabelece que o pagamento do piso será proporcional à carga horária de 8 horas diárias ou 44 horas semanais, o que, na prática, resultará em uma redução salarial para muitos profissionais. Além disso, a regionalização do piso permite que os valores sejam pautados pela legislação orçamentária e acordos e convenções coletivas de cada região, criando a possibilidade de que, em alguns lugares, o valor acordado em negociação coletiva seja inferior ao estabelecido pela lei. Tal postura vai contra as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), que é categórica quanto aos riscos ao profissional da enfermagem em jornadas acima de 30 horas semanais, considerando as particularidades específicas do profissional de saúde plantonista.

A descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez, que retornou à pauta de julgamento em setembro de 2023 no Supremo Tribunal Federal, teve seu julgamento suspenso pelo ministro Luís Roberto Barroso, para que continue no plenário físico, com direito a sustentações orais, ocasião que não ocorreu até o momento. Atualmente ministro da Corte, Flávio Dino afirmou lamentavelmente que o tema deve ser discutido pelo Congresso Nacional. Relembra-se que em entrevista ao Valor Econômico, o ministro fez a seguinte declaração de cunho abertamente reacionário em matéria de direitos reprodutivos:

“Eu sou filosoficamente, doutrinariamente, contra o aborto, e acho que a legislação brasileira não deve ser mexida nesse aspecto. Por que eu registro minha posição? Porque essa é a prova de que é um tema que não tem consenso nem no nosso campo político. Acho que temas que neste momento desunem devem ser evitados, porque o bolsonarismo precisa da polêmica.”

Para além disso, no início de setembro, o plenário da Suprema Corte formou maioria para estabelecer a tese de repercussão geral para permitir a judicialização para obtenção de medicamentos de alto custo em situações excepcionais, atendidos determinados critérios e requisitos.

Aos moldes da decisão, se o medicamento registrado na Anvisa não estiver incluído nas listas oficiais do SUS – Rename, Resme ou Remune – está afastado o direito à saúde, e o juiz só ordenará o seu fornecimento de forma excepcional. Nessa situação, os principais atingidos imediatos são as pessoas com doenças raras, para os quais a decisão do STF representa um grave retrocesso ao retirar a possibilidade de discussão do paciente com os órgãos competentes. É evidente que a judicialização visa afrouxar a responsabilidade do Estado com a saúde pública, relegando à iniciativa privada comercializar cada vez mais remédios, sem oferecer alternativa à população de fazer valer o direito a saúde senão arcar com burocráticos e custosos procedimentos judiciais, enquanto o Estado brasileiro continua permitindo que determinados medicamentos sejam comercializados a preços tão caros que apresentam óbices até para a sua aquisição pelas Secretarias da Saúde de municípios Brasil afora.

O STJ já havia endossado posição similar, quando, em junho de 2022, decidiu que os planos de saúde só estariam obrigados a financiar tratamentos expressamente listados no Reps. A posição foi parcialmente derrubada pela edição da Lei 14.454/22, que garante os tratamentos, terapias e medicamentos custeados pelos seus planos de saúde quando exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde de renome internacional.

O atual cenário da saúde no Brasil é preocupante. No último ano, o número de novas ações contra planos de saúde cresceu quase 33%, reflexo da ofensiva constante contra a saúde que é consenso nos três poderes, em sua função de melhor atender aos interesses da burguesia nacional no ramo e transformar a saúde pública em um grande balcão de negócios.