'De volta ao básico: foda-se a polícia' (Amanda M. e William Fogo)
Não estamos olhando de maneira crítica o suficiente ao debater inserção da militância nas forças armadas, incluindo as Polícias Militares.
Por Amanda M. e William Fogo para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
“[...] E eu posso ser bandido
Mas num sou tipo que fecha com polícia”
Don L. Bingo. Roteiro para Aïnouz Vol. 2, 2021.
“Não confio na polícia, raça do caralhoSe eles me acham baleado na calçadaChutam minha cara e cospem em mim, éEu sangraria até a morte, já era, um abraço!Por isso a minha segurança, eu mesmo faço”
Racionais MC's. Homem na Estrada. Raio-X do Brasil, 1993.
Enquanto comunistas, é nosso dever criticar e denunciar as débeis e limitadas instituições burguesas do Estado, sejam os órgãos executivos, legislativos ou judiciários, essas que estruturam e legitimam o capitalismo brasileiro. Porém, qual é a nossa posição referente às Polícias Militares, essas que protegem a propriedade privada dos meios de produção, que são racistas e agentes executivos das opressões de classe no país?
O capitalismo é o modo de produção que em si só já é a responsável pela desumanização em escala industrial, onde transforma a relação humana em uma supérflua relação entre coisas, entre mercadorias. Um tipo de sociedade que brutaliza seus indivíduos e reproduz uma diversidade de opressões diárias, não nos permitindo nos enxergar como iguais em meio às injustiças. Dito isso, devemos partir de alguns pressupostos básicos: as PMs não são disputáveis e não são um local onde possamos sequer aprender algo. Surpreendentes, ingênuas e infantis são quaisquer posições que achem estratégico se inserir e disputar as PMs. Elas são inimigas e o elemento primário a ser combatido para tomar o poder do Estado, seu único objetivo é combater os “inimigos internos”, impedir que essas populações denunciem, se mobilizem e superem a condição de exploração e subalternidade em que vivem. Queremos apontar aqui, desde aspectos históricos até práticos, o quanto devemos aprender sobre essa instituição e sua atuação assim como, a partir do marxismo-leninismo, propor sua contraposição de forma comunista e popular.
A história das Polícias Militares remonta ao período colonial, a raiz de toda a violência policial que é reproduzida no capitalismo dependente da América Latina. Essas instituições são herdeiras das estruturas do sistema escravista, que tinham como objetivo capturar, controlar e reprimir as populações indígenas e africanas escravizadas, o que possibilitou a espoliação colonial, o comércio e exploração brutal de escravizados, atendendo os interesses das classes dominantes na metrópole portuguesa e na colônia brasileira, reproduzindo ainda hoje esse caráter de dominação e opressão.
As milícias coloniais se organizaram durante o século XVIII, culminando na criação da Guarda Real em 1809, após a chegada de Dom João VI e da côrte portuguesa. Após a Independência do Brasil, durante o Período Regencial, um período de instabilidade política para o Império, a polícia tinha como principal função reprimir rebeliões populares nas províncias como a Revolta dos Malês, Cabanagem, Balaiada, Sabinada e Farrapos.
Com a Proclamação da República, em 1889, o Corpo Policial Permanente foi extinto, dando lugar às Forças Públicas de cada estado, compostas pela polícia e bombeiros, em decreto assinado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, então Presidente do Brasil, sendo a Polícia Militar do Estado de São Paulo a última a ter perdido a denominação de Força Pública em 1970, quando incorporou o efetivo da antiga Guarda Civil às suas fileiras.
Alguns elementos institucionais demonstram os valores e a missão nefasta da PMESP. Sua sede, o Quartel da Luz, antiga casa da Força Pública e atual sede da ROTA, começou a ser construída em 1888 e foi concluída em 1892, seguindo as convenções da arquitetura dos quartéis coloniais franceses da Argélia. Por que não se inspirar em uma das experiências imperialistas mais brutais no continente africano, que envolveu prisões arbitrárias, torturas e assassinatos na Argélia Francesa de 1830 até 1962 e matou mais de 1 milhão pessoas apenas na Guerra de Independência?
Entretanto, isso não se encerra apenas em homenagens arquitetônicas. Em 1906 o governo do Estado de São Paulo contratou uma missão de militares franceses para instruírem a Força Pública em um processo voltado à modernização da instituição. A Missão Francesa permaneceu até 1924, influenciando na organização e na formação do caráter da Polícia Militar, tendo ensinado técnicas diversas desenvolvidas pelo know how colonial na África e Ásia, que aliou a estética militar ao serviço de "policiamento ostensivo", reforçando o caráter paulista de opressão e violência.
Outro elemento marcante é o significado do brasão da instituição. Ele é feito em estilo português e possui 19 estrelas nas bordas vermelhas que representam "marcos históricos", listo aqui alguns:
• 3ª ESTRELA: Combate aos indígenas Caingangues para a colonização dos Campos de Palmas, sul do Paraná, em 1839;
• 8ª ESTRELA: Campanha de Massacre à Canudos em 1897;
• 9ª ESTRELA: Repressão a Revolta da Chibata de 1910 liderada por João Cândido;
• 10ª ESTRELA: Repressão à Greve Geral Operária de 1917;
• 13ª ESTRELA: Campanhas do Nordeste e Goiás de combate à Coluna Prestes;
• 16ª ESTRELA: Combate a Insurreição Comunista de 1935 e apoio a Ditadura do Estado Novo;
• 18ª ESTRELA: participação no Golpe Militar de 1964.
Podemos notar que marcos históricos e motivos de orgulho para eles são repressões brutais contra povos indígenas, repressão à greves e movimentos populares além de deixar ainda mais claro que é uma organização intrinsecamente anticomunista.
E quanto a cor dos uniformes da PMESP? Até mesmo o uniforme cinza característico é oficialmente nomeado de cinza bandeirante. Mas apenas simbolismo não bastam. Nada é por acaso e isso demonstra o caráter político e classista da Polícia Militar de São Paulo.
A famosa, igualmente desumana e assassina, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) foi instituída em 1970 durante a Ditadura Militar para o combate à resistência armada dos guerrilheiros nas cidades. Essa tropa se tornou a mais letal da PM, aquela que mata covardemente com 3 tiros de aviso pelas costas e deu origem aos esquadrões da morte nas periferias da capital e da Grande São Paulo. E nunca devemos nos esquecer do Massacre do Carandiru cometido por tropas do Batalhão de Choque e da ROTA a mando do ex-governador Fleury em 1992, ou as diversas repressões durante os quase 30 anos de governos do PSDB por ordens de Geraldo Alckmin, Mário Covas, José Serra, João Dória e agora continuado por Tarcísio (Republicanos) com a Operação Escudo na Baixada Santista. Um modus operandi que é feito por toda corporação, que une invasão de domicílios, execuções sumárias de inocentes, plantar armas e drogas além de outros abusos dos mais variados.
É importante citar que até mesmo toda a criminologia reproduzida pela PM é baseada até hoje nas idéias de Cesare Lombroso (1835-1909), psiquiatra e criminalista italiano. Ele desenvolveu a tese do "homem deliquente", em que homens nasceriam criminosos baseados na sua herança genética, definindo que pessoas negras teriam tendências a cometerem crimes por serem menos evoluídas e inferiores. Lombroso também era defensor da pena de morte e prisão perpétua aos criminosos. Suas conclusões são parte do auge do racismo científico e da eugenia, continuando a ecoar até hoje nas diferentes polícias do mundo.
Quando entendemos que a função das polícias dentro do sistema capitalista é de manutenção da estrutura, repressão e policiamento ostensivo exclusivo da classe trabalhadora, com ênfase em pretos e favelados, ainda se busca, como posição estratégica e tática do Partido Comunista, inserir seus militantes nessa instituição? É preciso entender como isso se daria.
A rotina de um policial militar não é como a maioria dos empregos, ela vai desde patrulhamentos ostensivos até cumprir mandados de prisão, busca e apreensão. Como sabemos, a atuação da PM é constantemente feita com extrema truculência para com as minorias, sendo incentivados a agirem assim tanto dentro da instituição como pelos colegas de trabalho. Sem essa de “bom policial e mau policial”. São todos muito parecidos e a maioria se protege para que a truculência permaneça. Não é um ambiente fácil de se estar, quando você não é um porco.
Dito um pouco sobre não ser fácil, estar em uma rotina que inspira e expira violência e preconceito pode ser extremamente traumatizante para um comunista. Já vivemos em ambientes que acarretam problemas de saúde mental e quando colocamos um militante em um ambiente deste, temos de ser responsáveis pela pressão e traumas psicológicos que este venha a sofrer.
Além de ser um ambiente doentio, teremos que lidar com o fato de que este militante teria que fazer uma agitação e propaganda clandestina dentro deste espaço. Como lidaremos se o militante sofresse alguma punição por ter um comportamento subversivo às praticas da polícia? E mesmo que consigamos um ínfimo avanço de agitação dentro da Polícia Militar, será um trabalho lento. Enquanto isso, o militante ficará fadado aquela rotina, correndo risco de ser morto e reprimindo a classe trabalhadora no seu dia-a-dia de trabalho.
Durante a etapa Regional do XVII Congresso Extraordinário em SP, se falou sobre a ilusão criada pelo crime organizado para com a juventude periférica e se discutiu sobre uma possibilidade de inserção nas PMs. Porém, pouco se fala que a polícia também possui seus meios de iludir e persuadir a juventude. E essa ilusão, que sustenta o discurso da Policia Militar, estará mais do que presente na rotina do militante inserido nesse meio. Deveremos contar com que exista uma disciplina ideológica desse militante? Sendo que dentro da organização já vemos diversos “deslizes” racistas e de caráter pequeno-burguês.
Não deveríamos fazer parte do braço do Estado que assassina corpos negros a todo instante. Não estamos olhando de maneira crítica o suficiente ao debater inserção da militância nas forças armadas, incluindo as Polícias Militares. Não estamos sendo críticos o suficiente com o trabalho e verdadeira função da Polícia Militar. E certamente não estamos preparados para inserir um militante nesse espaço.
Enquanto revolucionários, devemos elaborar práticas dentro do Partido Comunista que busquem minar o poder das Polícias Militares, lutar pela redução do orçamento dessa instituição, lutar contra qualquer novo contrato do Estado com as empresas bélicas estrangeiras, não fazermos parte delas e, principalmente, lutar pelo seu fim absoluto Isso passa por planejar táticas de segurança em protestos e greves e que, atualmente, não temos. Devemos saber como nos proteger e como reagir, como lidar com eventuais emergências médicas em situações de confronto. E temos totais condições de assumir e realizar essas tarefas.