'Das contradições da classe trabalhadora brasileira e a necessidade de uma política robusta de finanças' (Fernanda Souza)
Não nego que há muitas limitações nas afirmações que podemos realizar a partir de presença nos nossos atos e figuras públicas lançadas, porém podemos estabelecer, tendo como referência a formação social brasileira, que nossa composição não corresponde ao perfil sócio econômico do nosso país.
Por Fernanda Souza* para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Escrevo essa tribuna como um convite aos camaradas para que pensemos sobre os rumos da organização partindo da necessidade candente da revolução socialista no Brasil.
Sendo o Brasil o país no qual se desenvolvem as contradições as quais temos a tarefa de analisar para formular nossa atuação, precisamos partir da realidade de que estamos em meio a uma guerra no sentido mais literal possível. A guerra que a classe trabalhadora brasileira, majoritariamente negra, enfrenta todos os dias é percebida, a partir do trabalho dos aparelhos ideológicos da burguesia, como rotina de normalidade. O cotidiano do povo latino americano na periferia do capitalismo é uma guerra franca. A sobrevivência e a "liberdade" não é garantida. Existe um futuro programado, através de políticas muito sólidas, leis, burocracia, protocolos, que deixa relegada a população negra o encarceramento (prisões/manicômios), o genocídio, postos de trabalho precarizados ao máximo, desemprego, fome, etc.
Essa contradição diz respeito, em termos materialistas e históricos, a literalmente a posição do Brasil enquanto um país de capitalismo dependente. A colonização somada a escravização de povos africanos foi o que garantiu as condições para o acúmulo primitivo do capital que garantiu que a burguesia dos países centrais exploradores dessem cabo a chamada revolução industrial se impondo enquanto classe dominante que, até hoje, goza de sua posição como exploradora dos países de capitalismo dependente que importam tecnologias dos países centrais as custas da matéria prima e commodities advindas da exploração sangrenta das terras e da mão de obra precarizados dos países da periferia. Uma dinâmica de retroalimentação que mantém, no grosso, colonizados como colonizados e colonizadores como colonizadores.
Como marxista-leninista entendemos que a quebra dessa dinâmica depende, necessariamente, da derrubada do capitalismo e do enfrentamento ao imperialismo. Por essa perspectiva, entendemos que deva existir o trabalho da vanguarda em dirigir e dar cabo do que é necessário para que a classe trabalhadora se organize enquanto classe para impor seu lugar sobre a burguesia e aniquilá-la. Gostaria de chamar a atenção justamente para isso, trabalho da vanguarda. Exercer tal trabalho, tarefa da vanguarda, demanda disponibilidade de tempo, energia, organização, disciplina, etc. Porém, sobretudo tempo.
Analisando, como disse no início, quem é a classe trabalhadora no Brasil e ao que somos relegados, tempo, necessariamente, está sendo empregado para sobreviver, tentar não ser preso, morto, não ver a família morta, etc. No momento em que tempo e força de trabalho são correspondentes e força de trabalho é a nossa única moeda de troca para se ter uma remuneração, militar custa caro. Custa caro porque o quanto se disponibiliza para a militância será somente cogitado após ter-se garantido o mínimo para a sobrevivência desse tempo que se tem no dia. Isso considerando um trabalhador já com consciência que está disposto a executar o trabalho da vanguarda. É com esse desafio que ele se depara, sobreviver e ser um militante na construção das condições para àquela que colocará fim a exploração que a sua classe sofre todos os dias.
Essa contradição, porém, não se manifesta de maneira homogênea entre as frações que compõem a classe trabalhadora. Quando estabelecemos um paralelo com frações de classe que, por motivos histórico-materiais, tiveram maior acesso a bens de consumo, direitos básicos negados à maioria da classe trabalhadora mais precarizada, vemos uma maior disponibilidade de tempo para se operar o trabalho militante, para se formular sobre a organização política e dar cabo de tarefas no dia-a-dia. Essas frações de classe, pela própria formação sócio-histórica brasileira, apresentam um perfil mais elitizado e com uma maior expressão de indivíduos brancos.
Sendo assim, se, portanto, a vanguarda deixar de atuar sobre essa contradição, teremos, em nossas fileiras, majoritariamente, militantes advindos de frações de classe que têm maiores garantias de disponibilidade de tempo e energia para o trabalho militante. Isso começa a desenhar muito do que se expressa hoje em nossa militância que é uma composição, quando comparamos com a classe trabalhadora brasileira, mais elitizada e composta por um grande contingente de pessoas brancas.
Importante ressaltar que os dados de raça, cor e renda da militância do complexo partidário não estão disponíveis para a base da militância como um todo, então podemos ter dificuldade de inferir determinadas coisas sobre a composição das nossas fileiras. Não nego que há muitas limitações nas afirmações que podemos realizar a partir de presença nos nossos atos e figuras públicas lançadas, porém podemos estabelecer, tendo como referência a formação social brasileira, que nossa composição não corresponde ao perfil sócio econômico do nosso país. Isso diz respeito ao caráter elitista e racista da nossa organização. Por que a camada mais proletarizada não está nas nossas fileiras? Por que nossos núcleos universitários na juventude permanecem em mais evidência nas nossas grandes tarefas?
Não digo isso de forma taxativa simplesmente, mas para que pensemos nossos desafios diante desse cenário. Afinal é imprescindível que nos debrucemos sobre nossas limitações, despreparos e contradições para que dialeticamente e a partir da práxis venhamos a superar aquilo que nos limita ainda enquanto vanguarda.
A partir desse panorama gostaria de colocar para a discussão dos comunistas a seguinte questão: como, no Brasil, país da periferia do capitalismo, racializado, em meio a um genocídio franco, com o aparato estatal pronto a atirar na cabeça da juventude negra do Brasil dentro das suas casas, daremos cabo a tarefa de disputar essa juventude para nossas fileiras, formar dirigentes e organizar nossa classe como um todo?
Como disse no começo, a contradição se dá na necessidade de tempo necessário para militar que implica em condições necessárias para que esse tempo para o trabalho militante exista. Só, antes de irmos para termos mais práticos, gostaria de propor um cenário:
Um jovem negro da periferia que, lidando com as contradições, precisou ter uma fonte de renda para sobreviver, com sua família, antes de concluir o ensino regular se depara com qual possibilidade de fontes de renda? As mais diversas dentro do que o capitalismo oferece de possibilidade: trabalhos com condições mais precarizadas, informais, o crime, tráfico de drogas, prostituição e por aí vai. Estar na base como trabalhador do tráfico de drogas, entrar para uma organização criminosa está entre as possibilidades, se é que podemos chamar assim, que muitos jovens têm. Nesse posto de trabalho, ele pode ser obrigado a carregar uma arma, fica sujeito aos riscos de retaliação da sua organização criminosa caso não seja seguida uma certa conduta, está sujeito a morrer ou ser preso nas mãos das polícias do Estado, tem uma carga de trabalho que não é curta (quanto tempo um menino tem que fazer em uma lojinha/biqueira por dia?).
O tráfico ser uma possibilidade, diz mais sobre como as outras alternativas, para além do tráfico, são praticamente quase que semelhantes ao tráfico para esse jovem que, mesmo que for para o telemarketing, corre o risco (talvez em menor escala mas sem preservação) de morrer ou ser preso nas mãos das polícias do Estado, ter uma carga de trabalho que não é curta, etc. O que ele não vai ter é uma arma na mão e a organização criminosa e as responsabilidades que isso traz. Eu pergunto então: o jovem entra para o tráfico apesar de todo o risco que isso traz, ele fica sob posse de uma arma e tem a noção de que os agentes do Estado tornam-se inimigos. Esse menino, se uma organização revolucionária desse conta de sua contradição mais imediata que é comer, morar e se vestir, com consciência de classe revolucionária, pegaria em armas por melhores condições para todos da favela, para todo o trabalhador, entendendo o aparato do Estado como parte da sua opressão? Ele pegaria em armas pela revolução brasileira?
Nosso trabalho com a juventude não é só de disputa ideológica, mas sim de criar as condições para forjar uma vanguarda que não só queira construir a revolução mas sim possa construir a revolução. Sei que não é tão simples como descrevi, porém associado a um trabalho de agitação e propaganda robusto uma política de finanças para a sustentação de militantes que sejam remunerados para fazer o trabalho, com todo seu tempo, que seria disponibilizado em trabalho precarizados para nem sobreviver direito, sendo disponibilizado para garantir o futuro de fato.
Os Racionais MCs e outros rappers e Mc's do funk são muito bons em desenhar o cenário que leva o jovem negro à base da organização criminosa. Eles alertam esses jovens a não ir por esse caminho, mas qual a alternativa? Quais os outros caminhos de fato são possíveis? A educação? Conquistar o sonho de ser jogador de futebol, cantor? Ser um trabalhador super explorado do mercado de trabalho formal e informal para não "perder a honra" no crime?
Longe de mim criticar os Racionais MCs, até porque eles carregam a radicalidade nas letras quando abordam a questão da juventude na periferia e as mazelas que cercam essa juventude, fazem um trabalho de agitação e propaganda que ultrapassa gerações fomentando consciência racial e de classe, consciência sobre o genocídio e encarceramento da população negra, sobre a guerras as drogas e a violência policial, sobre nossa falta de condições básicas de vida, sobre o assédio do crime organizado e seu lugar como alternativa da juventude que teve todas as condições arrancadas pelas mãos do capitalismo e do racismo. E isso não veio a partir do nada. Veio por meio de um trabalho de imersão sobre como falar com a juventude, como acessar a mente a partir das contradições da vida cotidiana da periferia. A minha crítica vai em direção, sem medo de falhar, ao movimento comunista brasileiro por não estar cotidianamente fazendo o mesmo trabalho, disputando a juventude para que a consciência se dê pela construção da revolução brasileira através da organização.
Mas qual organização seria apresentada para essa juventude hoje? Não seria a organização junto a qual esses jovens poderiam se dedicar. Haja vista o grande número de quebras de militantes proletarizados que temos na nossa organização que são empurrados a sair, muitas vezes por não terem condições de continuar esse árduo trabalho, e nosso total distanciamento de ser uma alternativa, no momento, a ser apresentada à essa juventude.
Para exemplificar o que disse sobre a radicalização que o rap já tem e que está muito além do que temos em nossas fileiras materializado em tarefas de fato, coloco a letra de uma das músicas dos Racionais MCs.
"Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério
Explode sua cara por um toca-fita velho
Click, plau, plau, plau e acabou
Sem dó e sem dor, foda-se sua cor
Limpa o sangue com a camisa e manda se foder
Você sabe por quê, pra onde vai, pra quê
Vai de bar em bar, de esquina em esquina
Pega cinquenta conto, trocar por cocaína
Enfim, o filme acabou pra você
A bala não é de festim, aqui não tem dublê
Para os mano da Baixada Fluminense à Ceilândia
Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia
De Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro
Ser um preto tipo A custa caro, é foda
Foda é assistir a propaganda e ver
Não dá pra ter aquilo pra você
Playboy, forgado de brinco, um trouxa
Roubado dentro do carro na avenida Rebouças
Correntinha das moça, as madame de bolsa
Dinheiro, não tive pai, não sou herdeiro
Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Por menos de um real, minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele moleque de touca
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
De quebrada sem roupa, você e sua mina
Um, dois, nem me viu, já sumi na neblina
Mas não, permaneço vivo, prossigo a mística
Vinte e sete anos contrariando a estatística
Seu comercial de TV não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
E nem a sua puta de olhos azuis
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Apoiado por mais de cinquenta mil manos
Efeito colateral que o seu sistema fez
Racionais, capítulo 4, versículo 3"
Trecho: "Racionais, Capítulo 4, versículo 3. de Racionais MCs
Quando teremos a organização a altura desta tarefa? De ser a alternativa para a classe trabalhadora que avança a passos largos em sua consciência de classe mas que não encontra a alternativa de luta coletiva organizada de fato. Isso não se resolve só com agitação. Só há organização que é alternativa quando entendermos a atuação militante enquanto um trabalho a ser profissionalizado no sentido mais amplo do que isso significa. Militantes com tempo disponível para executar o trabalho. Não só os que têm tempo porque isso já lhe é garantido.
Tem que ser pra ontem. Tem que ser agora. E isso só se consolida a partir de uma política financeira sólida voltada a liberação de militantes para que realizem o trabalho que tem que ser feito pelas nossas mãos. O Partido tem que ter estrutura financeira para que os MCs e rappers das nossas fileiras, por exemplo, possam se dedicar ao trabalho de agitação e propaganda no seu tempo completo. E se ele não tivesse que conciliar seu trabalho militante com a carga horária de um trabalho como telemarketing ou posto precarizado de uma empresa terceirizada?
Temos a oportunidade de, com as ferramentas do marxismo-leninismo, superarmos nossas contradições inclusive nesse campo da disputa no campo da cultura. Nossa juventude tem consciência avançada de suas mazelas. A vanguarda precisa atuar disputando a consciência para a necessidade de organização da classe trabalhadora onde ela estiver. Mas não só, precisamos garantir que esses militantes tenham como realizar o trabalho militante.
Em determinado momento da história, o PCB dispôs de estrutura financeira muito mais robusta do que se tem agora, algumas vezes clandestinas, que eram bares, academias, etc. Outros partidos comunistas ousaram em políticas financeiras de grande rentabilidade que empregavam camaradas e disponham de lucros integrados ao caixa da organização para que dessem conta da altura da tarefa que é forjar a revolução. Políticas financeiras que possibilitavam que grandes tarefas fossem tocadas. Não era à toa que o financiamento vindo da União Soviética fazia diferença para os movimentos comunistas, durante o período da Guerra Fria, mundo afora. Precisamos acumular sobre essas experiências, ter referência nelas para executar e ousar em políticas financeiras que garantam a viabilidade do trabalho militante.
É necessário firmeza no compromisso com a classe trabalhadora, camaradas. Nossas tarefas são grandes. Nossa classe tem sede de sobreviver e garantir a sobrevivência dos seus. Construiremos a organização a altura? Não é tempo de dormir. A fração do PCB-CC estava sentada em todas as possibilidades de desenvolvermos esse trabalho com seu burocratismo elitista, com sua concepção etapista da revolução e postura descompassada ao que a realidade da nossa classe é e necessita. Nossa classe precisa de uma organização a altura. Temos a oportunidade de não só sonhar, mas pôr em prática tudo aquilo que achamos necessário para que a revolução aconteça.
Não esmoreçamos diante da crise partidária. Que ela seja nosso momento de balanço para que nos atentemos a nossos erros e superemos o período de inanição e estagnação que não virá sem muito trabalho pois ainda não temos a organização de vanguarda que nossa classe demanda mas temos total condições de construí-la mas isso demanda disposição de construir essa organização, de formular sobre a nossa classe e partir das suas contradições.
Pela proletarização de nossas fileiras!
Pelo XVII Congresso Extraordinário do PCB!
Pela Reconstrução Revolucionária!
*Camarada Fernanda Souza, do Núcleo Zona Leste da UJC-SP.