'Dar adeus aos manuais soviéticos: uma resposta ao camarada Rafael Neves' (Lencastre de Távora)
De todos estes conceitos abstratos em formas ideais que o camarada coloca, nao há esforço algum em qualquer momento do texto para dar se quer uma medida concreta do que significam para o Brasil e qual sua forma particular.
Por Lencastre de Távora para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, em primeiro lugar gostaria de saudar este tão precioso espaço de debate aberto e público, essencial para a polêmica e avanço dos debates de nosso campo. Em segundo lugar, gostaria de fazer alguns apontamentos, enquanto apenas amigo da organização e não mais parte integrante dela, sobre uma tribuna recente do camarada Rafael Neves, intitulada “Aprofundar a Reconstrução Revolucionária Brasileira”. Recomendo a leitura de todes para que se possa seguir um debate construtivo.
Está tribuna não não se pretende a ser não uma resposta a tese central do camarada, por que está não passa de papagaiar bordões pró forma, no entanto o problema central que desejo apontar é justamente a falta de conteúdo que nosso campo se encontra quando fica fixo no jargão, estética e lógica dos manuais soviéticos da década de 30-50. Não temos o luxo de nos prendermos num passado que não existe mais e num horizonte teórico que pertence a outro tempo histórico. O tempo inexorável fez questão, e faz questão, de destruir qualquer um que não conseguir superar as formas antiquadas que não suportam mais o peso do devir.
Creio que um grande problema do campo marxista-leninista hoje no Brasil, pois aí que se limitam meus conhecimentos, é o do abstratísmo, no sentido de, infelizmente, sermos aparentemente incapazes de falar sobre qualquer concretude do Brasil enquanto formação social particularizada. Uso o advérbio infelizmente porque nos pretendemos ser revolucionários brasileiros, ainda sim copiamos a linguagem tosca e démodé dos manuais soviéticos ou dos livros aforismáticos da revolução cultural - sem sequer o mínimo exame crítico sobre o que dizem, como dizem ou porque dizem tal e tal coisa. Nesse sentido, exatamente como esses manuais de outrora, fugimos completamente do nosso objeto a ser transformado: o Brasil. Desta maneira, como muito da esquerda hoje, nos prendemos em linguagens saudosistas e formas já irrelevantes para ora.
Não darei o desprazer ao leitor de fazer acusações vagas:
“Somente um disciplinado e organizado partido proletário marxista-leninista poderá dirigir amplas massas do povo em direção à Revolução Brasileira e Anti-imperialista ininterrupta ao Socialismo, evitando os caminhos das derrotas que, hipoteticamente, possam ser impostos pela burguesia brasileira, por seus partidos e pelo revisionismo. O Partido que, com a ajuda das grandes massas do povo, devemos reconstruir, não deve ser um partido voltado para a disputa de eleições ou para conquistar um ou outro cargo na administração de governos burgueses, mas sim para organizar e orientar as lutas operárias, camponesas, estudantis, etc. por suas reivindicações políticas e econômicas, pela construção de um novo Estado democrático operário, popular e socialista, sob o controle direto das massas organizadas. Isso nada tem a ver com a velha democracia burguesa imposta pelos poderosos, que consiste na velha rotina de apertar um botão a cada dois anos para, depois, não mais se falar nisso.”
Este trecho, escrito pelo camarada em sua tribuna, traz vários aspectos que exemplificam bem a problemática que tento levantar. São levantados diversos aspectos centrais para o autor, o partido marxista-leninista, a direção de amplas massas do povo, a revolucao brasileira, o anti-imperialismo e o socialismo. De todos estes conceitos abstratos em formas ideais que o camarada coloca, nao há esforço algum em qualquer momento do texto para dar se quer uma medida concreta do que significam para o Brasil e qual sua forma particular. O texto, intitulado “aprofundar a reconstrução revolucionária brasileira” não se dá ao cuidado mínimo de lançar qualquer base real para sustentar qualquer uma das suas reivindicações, estas que, por outro lado, também se colocam de forma absolutamente genérica. Quem é o Povo Brasileiro? Quais são as lutas operarias no Brasil? O que caracteriza um estado proletário, no Brasil em particular, além do truísmo autoexplicativo? Qual a particularidade do campo brasileiro que devemos nos atentar para encontrar tração no movimento camponês? e tautológico que esta palavra apresenta? Que revisionismo é este e como de fato ele se manifesta? Além, é claro, do típico apontar de dedos a torto e a direito com o velho jargão desgastado de acusações que, por mais que certas, carregam nenhum peso por não fazerem sentido fora de sua forma abstrata, como “O novo Partido, de caráter proletário, portador da ideologia do marxismo-leninismo, não pode ser uma agremiação eclética de caráter social-democrata ou trotskista; deve combater com firmeza toda ideologia e concepções alheias ao socialismo científico”.
Esse tipo de preocupação abstrata com revisionismos e trotskismos fantasmagóricos que servem de espantalhos toscos para não sermos cobrados de fato confrontar os erros teóricos e práticos que tais organizações ou teóricos que discordamos com é um fenômeno muitíssimo presente dentro do nosso campo e honestamente não avança em nada qualquer debate sobre a revolução brasileira.
Novamente procedeu nosso respondido: “A Reconstrução Revolucionária deve se bater firmemente para a aplicação desses princípios na luta pela reconstrução revolucionária do Partido Comunista”.
Camarada, veja bem, os princípios que foram elencados, de forma completamente abstrata e idealista, não devem ser, de forma tão leviana aceitos como tal. Afinal, qual estudo sério sobre a particularidade da revolução brasileira tem sido feito a nível partidário nos últimos 10 anos? Esta riquíssima tradição de interpretação do Brasil que foi levada com grande rigor teórico desde os anos 30, por diversos intérpretes da teoria social brasileira está caindo em completo abandono mesmo dentro da universidade brasileira, no entanto se nós estamos nos propondo a fazer a Revolução brasileira, devemos ser nós a nova vanguarda da crítica social brasileira, não só pensando no que já foi feito, mas renovando essa tradição única brasileira, agindo como força positiva, política e politizante ao criar novos caminhos interpretativos e de ação da realidade que vivemos.
Justamente por isso que me assusta tremendamente a rapidez com que o camarada parte pra cima de outros camaradas e companheiros que não são marxistas-leninistas, como os trotskistas a título de exemplo. Acho que isso fica muito claro percebendo a voracidade em que os camaradas do partido fazem uma leitura acritica de Caio Prado Junior, como se esse fosse o maior historiador marxista do Brasil, mas ignoram ou desconhecem as críticas muitas vezes interessantíssimas feitas por Mário Pedrosa à obra Caio-pradiana. Como nos pretendemos pensar a revolução brasileira sem uma reflexão séria e honesta sobre textos como “opção brasileira” e “opção imperialista”? Textos do mesmo autor supramencionado, meramente porque ele foi um dos expoentes do trotskismo no Brasil já na década de 40 que iremos nos privar de uma leitura e crítica tão importante para entendermos de fato o que concretamente significa no Brasil a revolução?
Coloquei este autor por que é o que me vem em mente agora, mas acho que inúmeros exemplos são possíveis. Muitos pensadores da esquerda brasileira fungiram do marxismo-leninismo ortodoxo promulgado pelo PCUS em seus manuais e sua linguagem milimetricamente pensada, linguagem esta que o texto do camarada regurgita letra por letra, não apenas no jargão mas também no universalismo de suas “leis” e “princípios” da revolução, como se fossem categorias universais e imutáveis. Devemos superar o positivismo metodológico e todas os erros crassos do marxismo ortodoxo oficial soviético, pra ontem.
A verdade é que o marxismo brasileiro tem que fazer um duro acerto de contas com, por um lado, a própria sociedade brasileira - que foi sistematicamente ignorada quando se pensa em teoria revolucionária, principalmente no PCB-CC -, e, por outro lado, com esse marxismo manualístico que rigorosamente fazemos questão de copiar ano após ano na nossa forma de propaganda e aprendizado. Não falo de um abandono, mas sim de um acerto de contas. A verdade é que a heterodoxia marxista brasileira, e muitas vezes até fora do marxismo, tem feito um trabalho mil vezes melhor de interpretação do Brasil do que nós fomos capazes em qualquer momento. Afinal, a teoria social brasileira, e mesmo o que lhe antecedeu no século XIX, foi centrada, por motivos históricos, entender a particularidade do Brasil, e infelizmente esse ramo de pensamento nunca foi hegemonizado pelo marxismo. Se torna mister então pensar nos fatores determinantes da brasilidade, já que, em primeiro momento, é o Brasil que pretendemos revolucionar. Precisamos chegar a conclusões mais claras de quem é a classe trabalhadora brasileira, quem é a vanguarda dentro dessa classe, como historicamente se organizou no Brasil a classe de potencial revolucionário (pensando desde a colônia até a nova república). Esse panorama que devemos ter antes de bradar bordões vazios de épocas já encerradas sob o inexorável fluxo da história. Buscar isso em manuais soviéticos da década de 30 ou da década de 50 seria como procurar peixes dentro de abacaxis, algo completamente ensandecedor e ilógico. Para entendermos na concretude o nosso objeto de ação, devemos por consequência estudá-lo em sua particularidade, e isso perpassa um estudo crítico de Sérgio buarque, Caio Prado, até mesmo Gilberto Freyre, sem falar de trotskistas como Edmundo Muniz e Mário Pedrosa, ou luxemburguistas como Moniz Bandeira.
O empedernimento teórico do marxismo-leninismo é já o último prego no caixão, não o primeiro sinal de sua doença. Para que não cheguemos neste ponto, se pretendermos de fato completar a reconstrução revolucionária, para além do partido, mas do próprio marxismo-leninismo enquanto ideologia da classe trabalhadora, devemos antes entender qual que é e qual o lugar do brasil no marxismo-leninismo e qual o lugar deste de forma reflexa na particularidade brasileira. Eis o sentido da questão nacional que se coloca perante nossos olhos.
Saudações vermelhas.
Lencastre de Távora