'Da Senzala ao Presídio Privado' (Camarada Pedro)

À medida que o escravismo perdeu espaço para o capitalismo, da abolição do tráfico em 1850 à abolição da escravatura em 1888, a pessoa escravizada transformou-se em proletário e o senhor, em capitalista, passando de propriedade privada, uma carne, um objeto, para trabalhadores assalariados. E

'Da Senzala ao Presídio Privado' (Camarada Pedro)
"Todo esse sofrimento, que dói tanto na pele do proletariado brasileiro, é fruto de uma escolha feita pela burguesia brasileira, que é racista e odeia o povo brasileiro."

Por Camarada Pedro para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

A história do proletariado brasileiro começa com o surgimento das empresas coloniais: grandes latifúndios de cana-de-açúcar plantadas por escravos indígenas ou africanos, com administração colonial, estabelecidas por diferentes nações europeias com o intuito de produzir muita riqueza para o paladar doce dos europeus da época. Para que esse sistema fosse lucrativo tanto para os colonos no Brasil quanto para a burguesia mercantil que nascia na Europa, o trabalho escravo era necessário, assim os colonos se tornam senhores de escravos, senhores de carne humana porque, somente através do medo do açoite, foi possível produzir tanto açúcar quanto se exigiu a boca dos exploradores europeus.

A ideia que tiveram foi, a princípio, escravizar as próprias populações indígenas que já habitavam as terras aqui achadas. Contudo, uma outra ideia muito mais lucrativa lhes veio à mente: estabelecer outras colônias na África, sequestrar pessoas e vendê-las para explorar sua mão de obra nas colônias da América. Assim, chega ao Brasil um grande número de africanos trazidos à força para trabalhar, seja nos engenhos de açúcar, nas minas de ouro e diamante, nas fazendas de café ou qualquer outro dos vários trabalhos que tiveram ao longo de mais de 300 anos que perdurou o sistema escravista. A senzala, local onde dormiam os negros sequestrados durante a escravidão no Brasil, representava o capital de seu senhor, africanos escravizados que produziam toda a riqueza ostentada pela sua casa grande.

Para se ter ideia da quantidade de pessoas que foram sequestradas:

“Em 1798, dez anos antes da chegada de Dom João VI ao Brasil, a sua população escrava era de 1.580.000, perfazendo 47,9% do seu total. Em 1818, três anos antes de seu regresso (26 de abril de 1821), tinham entrado 350.000 escravos africanos, elevando, com isto, para 52,5% o seu percentual no total da população.

Durante o reinado de Dom Pedro I, o tráfico dinamizou-se ainda mais e os traficantes tornaram-se personalidades importantes no Rio de Janeiro. José Honório Rodrigues escreve a respeito que ‘(...) Maria Graham obteve dados oficiais de mais 21.000 e quase 30.000 negros importados entre 1821 e 1822. O oficial alemão Schlichthorst fez o mesmo cálculo: 20 a 30 mil escravos eram importados e vendidos no Rio de Janeiro e cercanias. Era um negócio muito animado, no qual os traficantes investiam grandes capitais, especialmente por estarem temerosos de que a Grã-Bretanha acabasse por impor o fim da importação. Disse ele quando chegava um negro bronco entre 15 e 20 anos era comprado por 150 mil réis; uma rapariga valia menos. Um ano depois, o mesmo negro valia 200 mil réis.

O alemão chegou em abril de 1824 e em 1825 já a importação devia ter subido a níveis mais altos. Os traficantes eram os negociantes mais ricos da cidade, e muitas de suas casas podiam ser consideradas verdadeiros palácios’.” (Dialética Radical do Brasil Negro, 2020, p. 74)

Essas pessoas sequestradas de África e trazidas como escravas, meras mercadorias negociadas no mercado assim como os bois, exploradas ao máximo possível são a origem histórica do proletariado negro brasileiro, que hoje representa 55,9% da população, aproximadamente 110 milhões de pessoas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Também as origens históricas da burguesia brasileira são os senhores e traficantes de pessoas escravizadas, como escreve Clóvis Moura sobre a abolição do tráfico negreiro em 1850:

“A extinção do tráfico negreiro, de um lado, criou as condições propícias para que os coronéis decadentes, para quem o escravo já era um ônus mais do que um fonte de receita, pudessem vendê-lo às áreas do café, de outro lado, permitiu uma fase de especulação em larga escala com movimentos de capitais que eram anteriormente aplicados pelos traficantes do comércio de carne humana e que foram transferidos para outros ramos da economia nacional. Inúmeras sociedades anônimas foram criadas. Em 1851, funda-se o segundo Banco do Brasil. A primeira linha telegráfica é inaugurada em 1852 e, um ano após, funda-se o Banco Rural Hipotecário, que chegou a distribuir dividendos superiores aos do Banco do Brasil. Em 1854 inaugura-se a primeira linha de estradas de ferro ligando o porto de Mauá à estação de Fragoso (14 quilômetros). Um ano mais tarde teremos outra estrada de ferro funcionando: a que ligará Rio de Janeiro a São Paulo. De 1850 a 1860, escreve um historiador, se concederam 71 privilégios industriais, para a incorporação de 14 bancos de depósitos e descontos e alguns de emissão; criaram-se 3 caixas econômicas, organizaram-se 20 companhias de navegação a vapor, 23 companhias de seguros, 4 de colonização, 8 de estradas de ferro, 2 de rodagem, 4 de carris urbanos com tração animal, 8 de mineração, 3 de transportes e 2 de gás.” (Rebeliões da Senzala, 2020, p. 86) [1]

À medida que o escravismo perdeu espaço para o capitalismo, da abolição do tráfico em 1850 à abolição da escravatura em 1888, a pessoa escravizada transformou-se em proletário e o senhor, em capitalista, passando de propriedade privada, uma carne, um objeto, para trabalhadores assalariados. E, apesar da brava luta travada por essas pessoas pela sua própria libertação, que foi fundamental para a Abolição, o escravismo nesse período já não era tão lucrativo para os próprios senhores quanto foi no passado, o que fez surgir duas alas do abolicionismo, uma radical, ligada aos escravos e ex-escravos, e outra moderada, ligada aos intelectuais brancos e livres. O resultado desse processo histórico foi uma abolição que reestruturou o pacto de dominação: o Brasil continuou sendo um país que produz riquezas para o exterior às custas do povo negro, mas agora sob a forma do capitalismo e não mais do escravismo. A consequência disso todos nós conhecemos: fome, desemprego, violência, feminicídio, desmatamento, estupros, guerra, chacinas etc. Todo esse sofrimento, que dói tanto na pele do proletariado brasileiro, é fruto de uma escolha feita pela burguesia brasileira, que é racista e odeia o povo brasileiro.

Muitas coisas aconteceram de 1888 aos dias de hoje que demonstram esse ódio, como é o caso das prisões no Brasil. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, contando com aproximadamente 800 mil pessoas, sendo 67,5% de pessoas negras, ao passo que a população brasileira é formada por 56% de pessoas negras. Além disso, muitos detentos estão presos por roubo ou “tráfico” de drogas, crimes sem sangue. Em outras palavras, tamanho é o ódio da burguesia brasileira pelo proletariado brasileiro, que ela criou um Estado terrorista que encarcera em massa proletários negros por qualquer razão esdrúxula, como furto ou “tráfico”, independente das acusações serem verdadeiras ou não e independente, inclusive, de julgamento, já que 25%, aproximadamente 200 mil pessoas que estão encarceradas, nem sequer foram julgadas, segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). Como se tudo isso não fosse o suficiente, essas prisões não possuem infraestrutura adequada para receber tantas pessoas, ficando todas amontoadas em celas superlotadas e sob abusos e torturas sistemáticas de policiais e facções criminosas, como admitido pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) em Medida Cautelar da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental N° 347/2015.

A burguesia, no entanto, normalmente não suja suas próprias mãos, mas deixa esse trabalho terrorista contra nosso povo à cargo de seus administradores: juízes, generais, grandes meios de mídia, seus políticos etc. Seguindo essa linha, o governo Lula, no dia 25 de abril de 2023, alterou o decreto N° 8.874/2016 de Michel Temer, que criou os Programas de Parcerias de Investimentos (PPI), através do decreto N° 11.498, de forma a privatizar presídios por meio de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Agora, sem o juridiquês, o que isso significa é que o governo Lula busca começar um processo de privatização, em que empresas privadas possam receber dinheiro do governo em troca dos seus serviços de administração de presídios, mesmo que o status jurídico da propriedade ainda seja pública, assim como seu policiamento.

Esse decreto, assinado pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSDB), e Ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), apresenta novos incentivos à violência contra o proletariado negro brasileiro. Entre eles, “taxas mínimas de lotação das unidades prisionais, aliadas à remuneração da empresa por cada pessoa encarcerada, com a submissão dos corpos negros a trabalhos forçados e aumento das margens de lucro com a precarização ainda maior do sistema prisional”, como denunciado pela Nota Técnica Conjunta Contra a Privatização no Sistema Prisional e os Recentes Incentivos do Governo Federal para a Transferência da Gestão dos Presídios à Iniciativa Privada, assinada por 86 entidades de todo Brasil.

O governo Lula também participa diretamente da privatização dos presídios brasileiros através do financiamento feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), presidido por Aloizio Mercadante (PT), banco público do governo federal, que vai emprestar dinheiro às empresas interessadas em assumir a gestão de presídios, o que diminui os riscos para o capitalista que pretende entrar nesse negócio. Os capitalistas, então, ganham tudo do governo Lula: tanto o direito de lucrar com a prisão de pessoas pretas quanto o dinheiro necessário para explorar esse novo “negócio”.

Esses novos mecanismos legais dados de presente pelo governo Lula para a burguesia brasileira representam o ódio histórico que essa burguesia sente pelo proletariado. As situações desumanas a que são jogados irmãos e irmãs proletários em presídios superlotados por qualquer razão menor são agora fonte de grandes lucros para a classe capitalista brasileira. Assim como nas senzalas os africanos eram explorados e torturados de forma sistemática em nome do lucro de seus senhores, também hoje, com o apoio do governo Lula, os capitalistas, descendentes dos senhores de escravos, lucram com o leilão de presídios, habitados majoritariamente por proletários negros, descendentes dos antigos escravizados. O escravismo tornou-se capitalismo, mas a exploração racista e desumana continua, inclusive, sob o que o hoje o juridiquês chama de “trabalho análogo a escravidão”.

O proletariado brasileiro que votou majoritariamente em Lula frente aos perigos que o fascismo de Bolsonaro representa, que confiou e confia nesse governo, recebe de volta do presidente a política racista realizada pelos seus subordinados no governo federal. Independente das intenções do coração de Lula, na sociedade dividida em classes, especialmente na nossa com seu passado escravista, as decisões do presidente sempre beneficiam ou a burguesia racista ou o proletariado. Frente às atitudes tomadas pelo governo federal, é necessário denunciar ao povo trabalhador brasileiro de que o governo trai sua confiança, de que o contrário do fascismo representado por Bolsonaro não é o liberalismo desse novo governo, mas sim o poder popular. As raízes dos grandes males que afetam o nosso povo, a fome, a violência policial etc são o capitalismo, a sociedade dominada pelos descendentes dos senhores de escravos que odeiam o proletariado brasileiro. Assim como, no passado, os escravos lutaram contra a senzala, sendo o ápice dessa luta o Quilombo dos Palmares, hoje, os proletários devem segurar com orgulho o legado dado por Zumbi dos Palmares e dizerem: “Não à privatização dos presídios! Viva o poder popular e o socialismo!”.


Notas:

[1] O historiador citado é Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil


Referências:

MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. 3. ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020. [2] MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: Quilombos, insurreições, guerrilhas. 6. ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020.